Política Indigenista Governamental no Território dos Waimiri-Atroari e Pesquisas Etnográficas

 

Stephen G. Baines, DAN/UnB1
Professor do Depto. de Antropologia, Universidade de Brasília e pesquisador nível 1B do CNPq.
Brasília, 1997

Examino o papel de pesquisas etnográficas com sociedades indígenas em situações norteadas pela implantação de grandes projetos de desenvolvimento regional, a partir da minha própria experiência com os Waimiri-Atroari. Abordo o papel do pesquisador, refletindo sobre como essas pesquisas podem contribuir para a redefinição da política indigenista governamental através de leituras indigenistas dos seus resultados por parte dos funcionários administrativos. No caso dos Waimiri-Atroari, utilizando uma retórica construída em oposição à pesquisa antropológica. Após comentar o papel do pesquisador em situações complexas de pesquisa de campo com grandes projetos de desenvolvimento, na segunda parte do trabalho, chamo atenção à necessidade de tomar em consideração o fato de que tanto as interpretações daqueles índios que têm voz, quanto as dos antropólogos, refletem a sua posição dentro de um contexto maior de diferenciais de poder. Seja na hierarquia burocrática de uma administração indigenista no caso de lideranças indígenas nela encapsuladas, seja, no caso dos antropólogos, numa multiplicidade de identificações como membros de comunidades acadêmicas em estadosnações, num mundo dividido por extremas desigualdades.

Realizar pesquisas etnográficas independentes das empresas em áreas de implantação de grandes projetos coloca o pesquisador numa situação em que enfrenta uma retórica desenvolvimentista acionada por representantes das empresas para justificar os projetos. Como afirma Escobar, apud Pigg, a maioria dos antropólogos tem se posicionado, ou como insiders em projetos de desenvolvimento, ou como outsiders, defensores do que é autenticamente indígena e `do ponto de vista nativo'. "Assim eles fazem vista grossa para as maneiras em que o desenvolvimento opera como arena de contestação cultural e da construção de identidade" (1995:15).

Muito tem sido escrito a respeito do antropólogo optar por uma posição, por um lado, de outsider ou de "crítico-sem-adesão" a grandes projetos de desenvolvimento, ou, por outro lado, por uma posição crítica-com-adesão ao projeto à maneira de insider (ver Ribeiro, 1992:104). Enfatizo que, em situações que envolvem a implantação de grandes projetos, a decisão sobre se ou não o antropólogo pode realizar (ou continuar) pesquisas na área raramente fica com o antropólogo. Ou ele(a) é convidado(a) a participar, ou a sua presença é vista como inconveniente e assim ele(a) é proibido(a) de ter acesso à área.

Mesmo que essas situações possam se reverter, as decisões não são tomadas pelo antropólogo. E quando é convidado a participar de grandes projetos, "o antropólogo geralmente trabalha em/para seções ou departamentos quase que totalmente desprovidos de poder nos sistemas de decisão internos destas instituições" (Ribeiro, 1992). As posições insider/outsider se colocam aqui na situação "antropólogo da empresa"/"antropólogo não vinculado à empresa".

De fato, atuando como antropólogos perante administrações indigenistas que põem em ação uma política indigenista subordinada aos interesses de grandes empresas, estamos inseridos em situações sobre as quais temos muito pouca ou nenhuma voz para influenciar as decisões. Embora nossa situação seja muito diferente daquela de líderes indígenas encapsulados numa hierarquia burocrática de uma administração que os subordina e os coage a aceitar as interpretações dos indigenistas (ver, por exemplo, Trigger, 1992:142, 172), estamos, também, diante de forças desmedidamente poderosas. Em tais situações, como aponta Escobar, a antropologia "tem que rehistoricisar a sua própria prática e reconhecer que esta prática é modelada por numerosas forças que estão muito além do controle do etnógrafo" (1995:16).

O caso dos Waimiri-Atroari revela como uma administração indigenista tem se preocupado em criar imagens de autenticidade indígena nas suas campanhas de publicidade, respaldadas por imagens gravadas de lideranças indígenas que transmitem uma retórica de autodeterminação indígena (Baines, 1993). Quando interessa aos dirigentes da administração, esta retórica é colocada em oposição à presença de pesquisadores que examinam questões como a política indigenista.

Minha própria pesquisa para o doutorado (1982-1985) em antropologia (UnB) no território dos Waimiri-Atroari, que examina o indigenismo da FUNAI, como aquela de Márcio Ferreira da Silva (UNICAMP) que focaliza o parentesco (1987), realizadas na época da Frente de Atração Waimiri-Atroari da FUNAI (FAWA), podem ser caracterizadas como pesquisas vigiadas (Silva, 1993; Baines, 1991). Depois, foram interrompidas e proibidas por iniciativa da administração do Programa Waimiri-Atroari (FUNAI/ELETRONORTE2 - PWAIFE). Na época da FAWA, os meus relatórios de pesquisa submetidos à sede da FUNAI em Brasília, apesar das denúncias sobre a situação de extrema dominação a que os Waimiri-Atroari estavam sendo submetidos, somente chamaram a atenção da administração central da FUNAI quando fui solicitado por dois capitães Waimiri-Atroari para denunciar irregularidades específicas praticadas por funcionários locais da FUNAI em 1985. Como conseqüência, a FUNAI afastou cerca de 30 dos mais de 50 funcionários (Baines, 1991:278-279).

A partir da extinção da Frente de Atração Waimiri-Atroari da FUNAI, em 1987, e a sua substituição pelo PWAIFE, poucos meses antes do fechamento das comportas da Usina Hidrelétrica de Balbina em outubro de 1987, o que resultou na inundação de uma área de cerca de 2928,5km23, modificou-se a política indigenista no sentido de ampliar a infraestrutura assistencialista na área para criar uma imagem de um programa indigenista modelo, combinado com uma política de marketing intensiva (Silva, 1993:70, nota 27; Baines, 1996a). Nas palavras de Viveiros de Castro & Andrade, o PWAIFE configura-se como "medidas paliativas e tardias, de caráter cosmético, tomadas quando todas as decisões referente à obra já foram efetuadas `são usadas para criar' uma falsa idéia de participação" (1988:16).

Com a criação do PWAIFE aumentou-se ainda mais o controle sobre os Waimiri- Atroari. A administração passou a exercer um controle seletivo sobre o ingresso de pesquisadores etnólogos independentes, proibindo a continuação de pesquisa daqueles que não se submetem às suas condições, através de uma retórica de autodeterminação indígena (Baines, 1993). O processo de invenção de um indigenismo de "resistência" configura-se como uma nova forma de dominação, neste caso, legitimando a atuação de grandes empresas (Baines, 1994; 1996b).

O pesquisador, como nunca antes, se encontra num enredo de interesses conflitantes e contraditórios, com o surgimento de alguns indigenistas que se posicionam em oposição aos etnólogos, visando legitimar-se através de uma dicotomia falsa inventada por eles entre ação/teoria, muitas vezes expressa em frases como "nós indigenistas que fazemos alguma coisa para os índios"/"vocês antropólogos que ficam no seu casulo, teorizando em gabinetes". Neste caso, as posições de insider/outsider se expressam através da oposição "indigenistas"/"antropólogos". Na situação de encapsulamento e controle em que se encontram populações indígenas como os Waimiri-Atroari, essas atitudes são transmitidas para os indígenas incorporados em cargos criados pela administração e subordinados a ela. Tais atitudes são recebidas por estes indígenas como ordens a ser obedecidas como parte de suas atribuições e, assim, como parte de uma versão oficial que define a "realidade" (como deveria ser) para a população indígena. No caso dos Waimiri- Atroari, as extremas desigualdades e a visão paternalista imposta por alguns indigenistas são evidentes na infantilização ritualizada dos índios, e a sua própria internalização de uma linguagem de dominação em que adultos indígenas se dirigem a alguns administradores da direção como "papai". Como frisa Ramos,

A falta de acesso a canais efetivos de educação, os entraves econômicos, administrativos e políticos em se locomover e se comunicar com outros grupos indígenas, a fragmentação dos povos indígenas em pequeninos grupos étnicos, têm levado a grande maioria dos índios brasileiros a um isolacionismo que lhes tem custado enormes danos (1984:283).

A implantação de um subprograma educacional dentro do PWAIFE não tem contribuído para romper com esse isolacionismo, pois a administração vem exercendo um controle seletivo e policialesco sobre os contatos dos Waimiri-Atroari com pessoas que não pertencem aos seus quadros, inclusive pesquisadores. Nesta situação de encapsulamento e controle ideológico, a pesquisa antropológica é vista por alguns indigenistas como uma ameaça, e assim censurada por desmascarar problemas graves da própria administração. No caso dos Waimiri-Atroari, apesar de existir uma infraestrutura indigenista impressionante, sustentado pelo PWAIFE, o isolacionismo imposto aos índios faz perdurar uma situação descrita por Ramos, que "nos confins remotos do país ainda é comum encontrar-se uma fé cega na sabedoria das autoridades e essa fé é transmitida aos índios que não têm um mínimo de condições para perceber o quadro mais abrangente da realidade nacional" (Ibid)..

Na proibição da continuação da minha própria pesquisa de campo entre os Waimiri-Atroari foram usados diversos argumentos para deslegitimar minha presença frente aos próprios índios. Que a pesquisa etnográfica não traz retorno para os povos indígenas enquanto o trabalho do indigenista traz benefícios concretos. Funcionários da direção do PWAIFE ressuscitaram, em junho de 1989, uma campanha de calúnia contra o CIMI realizada através de matérias publicadas no jornal "O Estado de São Paulo" em agosto de 1987, em que o meu nome foi usado, apresentando-me como se eu fosse um agente de um cartel de estanho internacional participando de uma conspiração contra a soberania nacional na Amazônia.

Apesar dessas matérias terem sido julgadas falsas numa CPI que investigou as acusações contra o CIMI, dirigentes do PWAIFE usaram as matérias junto aos jovens Waimiri-Atroari que, na época, estavam aprendendo a ler português, para me caluniar, apelando à uma velha retórica sobre a ameaça estrangeira na Amazônia. Assim, interromperam minha pesquisa e me afastaram da área como suposto agente de um cartel de estanho internacional que estava, supostamente, usando índios para tentar impedir que empresas de mineração nacionais entrassem em acordos diretos com as lideranças indígenas. Apresentaram-me para os próprios Waimiri-Atroari como uma pessoa que estava agindo contra os interesses da comunidade indígena e do Brasil. Aponta Ramos que

os guardiães do nacionalismo brasileiro, ainda apegados à definição integracionista de `nação', atribuem o perigo das nações indígenas, não diretamente aos índios, mas a fontes subversivas nacionais ou à cobiça estrangeira, forças essas revistas, aos olhos de certos estadistas, do poder e da capacidade de manipular a inocência moral e ingenuidade dos indígenas (1996:83).

Ressalto que fui reduzido ao papel de espectador de um enredo maquinado por dirigentes de uma administração atrelada aos interesses de grandes projetos. Administração que incorporou lideranças indígenas como seus próprios porta-vozes para, neste caso, criar uma "legitimidade" à proibição da continuação das minhas pesquisas na área. Cabe lembrar que a proibição da continuação das pesquisas de Márcio Silva e minha aconteceu num período que coincidiu com a implantação do Projeto Calha Norte e a proibição de muitas pesquisas antropológicas na região norte da Amazônia (Oliveira Filho, 1990:29-30).

Os líderes indígenas envolvidos em grandes projetos que ocuparam seus territórios demonstram posições diversas com relação aos projetos. Tão poderosas são as campanhas de marketing das empresas que, entre a comunidade antropológica como entre as lideranças indígenas, há tanto antropólogos que apresentam críticas aos projetos, como outros que se identificam com os objetivos das administrações indigenistas financiadas pelas empresas.

Essas questões referentes à posição do etnólogo em situações de extrema desigualdade características de grandes projetos de desenvolvimento remetem à afirmação de Talal Asad a respeito da "estranha relutância por parte da maioria dos antropólogos profissionais de seriamente tomar em consideração a estrutura de poder em que se consolidou a sua disciplina" (1973:5). Nash comenta que

São poucos os antropólogos dispostos a teorizar as conseqüências das tendências atuais da economia mundial. Porém é justamente nas áreas uma vez caracterizadas como a periferia e semi-periferia (economicamente), que antropólogos aplicados e ativistas políticos estão realizando os avanços mais interessantes (1997:25).

Ramos (1990:456), na sua caracterização do estilo de etnografia no Brasil, mostra que o fato de ser um país colonizado com a imposição da hegemonia de idéias, atitudes e modas, tem resultado numa postura crítica a coisas hegemônicas. Silverman, ao refletir sobre a antropologia que se faz no Canadá, conclui, de maneira semelhante, que "não é por acaso que os antropólogos canadenses, situados na periferia de um império, interessam-se na trajetória político-econômica do poder e nas diversas formas de exploração" (Silverman, 1991:392).

A antropologia da ação dos anos 70, no Brasil, foi marcada

por um esforço, que continua a vigorar, de alguns etnólogos em colaborarem com os povos indígenas pelos quais se interessam academicamente na obtenção de soluções para seus problemas mais urgentes, como demarcação de terras, assistência médica, instrução, administração direta de sua produção para mercado e outros (Melatti, 1984:19-20).

Apesar da intenção louvável deste esforço, e do estímulo que fornece para uma visão crítica e uma antropologia engajada, é evidente que não se muda a estrutura de poder em que se inserem o antropólogo e as sociedades indígenas. E são esses diferenciais de poder que merecem maior investigação. Como afirma Melatti, na antropologia da ação, os etnólogos, "não se limitam a oferecer soluções aos índios, mas procuram formulá-las por intermédio da discussão direta com eles e se esforçam por sua realização com ajuda deles" (Melatti, 1982:268). Há de se distinguir entre o papel do antropólogo como se apresenta como ideal e a sua atuação em situações empíricas complexas repletas de contradições e ambigüidades. Ribeiro chama atenção ao fato que "a própria posição do antropólogo é paradoxal" (1992:104). No caso de grandes projetos, afirma que "a posição crítica-semadesão ao projeto pode implicar um diálogo de surdos, enquanto que a posição crítica-comadesão ao projeto pode pretender obter o melhor dos dois mundos" (Ibid). Ao comentar a preparação de laudos periciais antropológicos, Oliveira Filho adverte de "os perigos, dificuldades, desvios e armadilhas que podem ser encontrados pelo caminho ainda a percorrer" (1994:115).

Assinala Segato o paradoxo do relativismo quando o antropólogo aborda experiências religiosas, que "o relativismo encontra a sua fronteira mais intransponível na maneira em que o nativo experimenta o seu absoluto, não enquanto proposição, mas enquanto experiência vivida na interioridade" (1992:117). Ressalta Segato "aqueles que aderem a essa crença o fazem de maneira absoluta e não vislumbram a possibilidade de colocá-la em termos relativos" (1992:114). Pode-se estender a observação de Segato para outras convicções, não somente as religiosas, que constituem a visão de mundo do antropólogo. O discurso teórico da disciplina está permeado por uma multiplicidade de identidades, perspectivas e lealdades nacionais e políticas que constituem os estilos de antropologia desenvolvidos em cada país.

Como exemplo, o antropólogo egípcio, Hussein Fahim, ao descrever suas pesquisas com os núbios no sul do Egito e no Sudão, mostra que, com a construção da grande represa hidrelétrica de Assuão e o deslocamento do povo núbio, ele compartilhou "um sentimento de simpatia para com os núbios realocados - um sentimento comum entre os pesquisadores estrangeiros durante o período de levantamento" (1977:82). Entretanto, depois de assumir um cargo que implicava na realização de pesquisa orientada para política governamental, e obter uma "compreensão melhor dos objetivos nacionais" (1977:83), Fahim afirma: "comecei a sentir menos simpatia frente à sua recusa (a dos núbios) de tomar iniciativa para ajudar resolver seus próprios problemas. (...) como antropólogo indígena, para quem os objetivos nacionais são de primeira importância, comecei a perceber a situação dos núbios dentro de um contexto muito mais amplo". Fahim descreve: "quando mudou minha relação de pesquisa com o governo, mudou também a atitude dos núbios com relação a mim", que "se tornaram distantes e reservados". Nesse caso a identificação do antropólogo com os objetivos nacionais passou a entrar em conflito direto com os interesses dos núbios.

Fahim compara seu papel de "antropólogo indígena (egípcio, mas não núbio)" com aquele de outro antropólogo, Gunnar Sorbo, da Noruega, que pesquisava na mesma região, e como, para ele (como egípcio que trabalhava para o governo), os núbios tornaramse "somente uma parte da totalidade que é a nação. Atualmente, os interesses da nação são para mim de primeira importância" (1977:84). Enquanto os núbios "não esperavam nada" do antropólogo estrangeiro, "exigiam de mim um retorno na forma de decisões sobre a política governamental". Enquanto "eles sabem que ele (o antropólogo estrangeiro) não tem poder, no meu caso, os núbios exigem de mim uma ação". As exigências dos povos nativos com relação a um "pesquisador indígena ligado ao governo" (Ibid.) obviamente são diferentes das suas exigências com relação a um antropólogo visto como estrangeiro (Baines, 1995:111).

O antropólogo norueguês, ao considerar os núbios através de uma visão universalista, não compartilhava da visão local (como funcionário do governo egípcio) de Fahim. Como antropólogo de um país europeu, a visão de Sorbo pode ser associada a uma tradição antropológica dos centros metropolitanos da disciplina (nos centros científicos e acadêmicos onde a antropologia foi gerada - a Inglaterra, a França e os Estados Unidos da América - Cardoso de Oliveira, 1988:143-159), estabelecida historicamente no contexto da "construção do império" mais do que uma antropologia que se desenvolveu no contexto da "construção da nação" (Stocking Jr.1982:172).

Entretanto Fahim, ao se definir como antropólogo "nativo", de um estado-nação, caracterizado por imensas desigualdades sociais e divisões étnicas, não leva em consideração as diferenças entre tipos de antropólogo nativo. Apesar de ser "nativo" do Egito, Fahim foi identificado pelos núbios como funcionário do governo. Aguilar aponta que

de maneira geral, os insiders étnicos não estão, de fato, `inside' as situações culturais e sociais que pesquisam ... São, por profissão, da classe média, enquanto a maioria dos seus companheiros étnicos pertencem às classes operárias. Ideologicamente são distanciados em decorrência da sua socialização no ethos científico da sua profissão (1981:25).

Narayan (1993:673), que se refere a sua própria identidade múltipla, questiona até que ponto o antropólogo pode ter uma visão de insider, e coloca a pergunta:

Pode-se equiparar um antropólogo de origem humilde americana de grupo minoritário que, enfrentando preconceitos, consegue se formar e pesquisar sua própria comunidade, com outro, membro das elites de um país do Terceiro Mundo, que, com apoio da família estuda antropologia no exterior e volta ao seu país para realizar pesquisa de campo entre as classes menos privilegiadas? (Narayan, 1993:677).

Nestes exemplos, as posições insider/outsider se colocam em situações de "antropólogo nacional majoritário"/"antropólogo nacional de minoria", e de "antropólogos estrangeiros do primeiro mundo"/"antropólogos nacionais". Assim, alguns pesquisadores poderão ser insiders ou outsiders em mais de uma situação, configurando-se situações complexas em que haveria diferentes graus de estar por dentro ou estar por fora. Contudo, persiste entre os próprios antropólogos a pressuposição de que o antropólogo nativo seja um insider e assim apresentaria um ponto de vista autêntico à comunidade antropológica (Narayan, 1993:676). Narayan refere-se a si mesma como "halfie" (apud Abu-Lughod, 1991 Ibid. 673) para descrever sua própria identidade, como antropóloga de descendência mista que realiza pesquisas na Índia, onde ela se define como nem bem "nativa" nem "nãonativa".

Enquanto para uma antropóloga tal categoria pode ser inofensiva, a sua polissemia fica evidente nas palavras de Audra Simpson, Mohawk do Canadá, envolvida na luta política de uma sociedade indígena frente a um estado-nação, uma das conseqüências das práticas discursivas da tutela coerciva do governo tem sido "de nos transformar em `halfies' ... `halfie' implica fragmentação e discórdia interna" (Paine, 1996).

A questão da nacionalidade do pesquisador tem orientado as possibilidades de participação do pesquisador em questões políticas na antropologia, sobretudo em situações que envolvem os grandes projetos. Ressalta Huizer que

pesquisa de ação participativa (em grandes projetos de desenvolvimento) é, em muitos países, uma questão muito sensível e polêmica. Raramente se permite a estrangeiros realizá-la. Pessoas envolvidas devem estar muito familiarizadas com os enredos locais de poder econômico e político. Os organizadores de grupos que trabalharam nos projetos PPP (People's Participation Programmes da FAO, desde o fim da década de 1970) foram todos nacionais do seu próprio país... (1993:78).

Silverman assinala que, no final da década de 1960, quando realizou pesquisas antropológicas na Guyana, ela não foi recebida com hospitalidade pelos acadêmicos negros formados no exterior, pois estes a viram como agente do imperialismo que não tinha direito de estar lá para pesquisar a sua sociedade (1991:390). Ela explica a sua "exclusão experiencial, intelectual e pessoal", com referência à obra de Fanon e Memmi, em termos da "`revolta' na Guyana, quando o colonizado rebelou-se contra a definição do colonizador a respeito de si, ao incorporar o oposto dialético da definição colonial" (Ibid). Silverman acrescenta que presenciou, novamente, um encontro colonial, na academia canadense, numa banca de seleção para professor assistente de uma universidade canadense, na qual os membros da banca descartaram candidatos canadenses a priori, ao partirem da premissa do colonizado de que os canadenses eram inferiores, tomando a antropologia americana, colonizadora, como modelo do que antropologia deveria ser (1991:391).

Estes exemplos apontam a necessidade do antropólogo, sobretudo em situações onde há pressões de grandes empresas em que entram em choque interesses internacionais, nacionais, e locais, traduzidos em discursos etnicizados e politicizados, levar em consideração não somente a identidade múltipla das pessoas com quem realiza pesquisas (Paine, 1996), mas também a sua própria identidade múltipla como antropólogo que pertence a uma comunidade antropológica, uma classe social, com uma visão política que tem que se acomodar às possibilidades políticas existentes num dado momento, e inclui a identidade nacional que lhe é atribuída (e/ou auto-atribuída).

 

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SÉRIE ANTROPOLOGIA

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216. RAMOS, Alcida Rita. A Concise Dictionary of Received Prejudice. 1997.

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225. BAINES, Stephen Grant. Política Indigenista Governamental no Território dos Waimiri-Atroari e Pesquisas Etnográficas. 1997.

 

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Notas

1. Professor Adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPq. Uma versão deste trabalho foi apresentada no 49º Congresso Internacional de Americanistas, em Quito, Equador, 7-11 de julho de 1997, no Simpósio:ANT37 Políticas públicas e territórios étnicos, organizado por Henyo T. Barretto Filho (Universidade de Brasília) & Alicia Barabas (INAH-Oaxaca, México), entregue para publicação numa coletânea organizada pelos mesmos. Meus agradecimentos ao Professor Julio Cezar Melatti por ter lido uma versão deste trabalho e oferecido suas valiosas sugestões.

2. Empresa responsável pela construção da Usina Hidrelétrica de Balbina e outras grandes hidrelétricas, como Tucuruí, na região amazônica brasileira.

3. Mapa da Influência Antrópica da Hidrelétrica de Balbina, CSR, IBAMA, Brasília, 1992. Cerca de 311 km2 dessa área estão dentro do território que foi demarcado para os Waimiri-Atroari depois do desmembramento de uma área de aproximadamente 526.800 hectares da então Reserva Indígena Waimiri Atroari. Área que coincidiu com os interesses imediatos do grupo de empresas de mineração Paranapanema, que já havia invadido a Reserva Indígena criando a mina de Pitinga, e também com uma grande parte do território a ser posteriormente inundado pelo reservatório da UHE Balbina. Toda a região inundada fazia parte do território tradicional dos Waimiri-Atroari até o início da década de 1970.

 

Stephen G. Baines,
stephen[arroba]unb.br


 
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