A Política Externa do novo Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva retrospecto histórico e avaliação programática



A primeira constatação que se pode fazer a propósito da provável política externa do futuro governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva é a de que se tratará de uma diplomacia evolutiva, tanto em seus contornos conceituais como em seu modus operandi.

No dia seguinte à sua eleição consagradora no segundo turno das eleições presidenciais, e não conhecido ainda o nome que integrará seu futuro governo na qualidade de chanceler – que poderia ser tanto um representante da diplomacia profissional, como um "civil" com conhecimento da área –, pode-se dizer que o PT percorreu um longo caminho de construção tentativa de um pensamento em política externa, desde o programa de cunho socializante do partido criado mais de duas décadas atrás, até o programa da campanha presidencial de 2002 e, mais importante, o primeiro pronunciamento oficial do presidente eleito, em 28 de outubro de 2002.

Com efeito, o programa fundacional do PT previa uma "política internacional de solidariedade entre os povos oprimidos e de respeito mútuo entre as nações que aprofunde a cooperação e sirva à paz mundial. O PT apresenta com clareza sua solidariedade aos movimentos de libertação nacional..." Não constava, do primeiro programa, menção explícita à "política externa", mas, o "plano de ação" contemplava os seguintes pontos em seu item "VI- Independência Nacional: contra a dominação imperialista; política externa independente; combate a espoliação pelo capital internacional; respeito à autodeterminação dos povos e solidariedade aos povos oprimidos". 1

Como se vê, uma plataforma típica dos partidos esquerdistas da América Latina no período clássico da Guerra Fria e dos "movimentos de libertação nacional".

Desde então, o partido e seus dirigentes evoluíram sensivelmente, mas o itinerário não deixou de ser algo errático, ou pelo menos hesitante (ou relutante) na adesão a princípios consagrados da política externa brasileira, como poderia ser observado mediante um exame perfunctório dos principais temas de relações internacionais do Brasil selecionados como plataforma de campanha nas eleições presidenciais de 1989 até hoje. Vejamos rapidamente algumas dessas posições.

Em 1989, a principal característica do candidato Lula era sua identificação com a luta dos oprimidos da América Latina. O candidato do PT apresentou um amplo e abrangente programa de governo e, segundo se depreendia das resoluções políticas adotadas pelo Partido em seu IV Encontro Nacional (junho de 1989), pretendia propor uma "política externa independente e soberana, sem alinhamentos automáticos, pautada pelos princípios de autodeterminação dos povos, não-ingerência nos assuntos internos de outros países e pelo estabelecimento de relações com governos e nações em busca da cooperação à base de plena igualdade de direitos e benefícios mútuos".

Mesmo se esses princípios não diferiam muito da política externa efetivamente seguida pelo Brasil, ainda assim uma vitória do candidato-trabalhador, representaria uma reavaliação radical das posturas brasileiras na área, já que a "Frente Brasil Popular" prometia adotar uma "política antiimperialista, prestando solidariedade irrestrita às lutas em defesa da autodeterminação e da soberania nacional, e a todos os movimentos em favor da luta dos trabalhadores pela democracia, pelo progresso social e pelo socialismo".

Um hipotético Governo da Frente defenderia a "luta dos povos oprimidos da América Latina" e Lula chegou mesmo a propor a "decretação de uma moratória unilateral para ‘solucionar’ a questão da dívida externa". 2

Aliás, na proposta que o PSB – um dos membros da Frente – apresentou de um "programa mínimo" das esquerdas para as eleições presidenciais de 1989, se defendia a "imediata suspensão de qualquer pagamento relacionado com a dívida externa", a constituição de um "entendimento entre os diversos países devedores com vistas a fortalecer o não-pagamento" e o estabelecimento de "relações fraternas com todos os partidos que tenham como objetivo a construção da democracia e do socialismo com o objetivo de unir esforços na preparação de uma alternativa à crise do modo de produção capitalista".

Em 1994, o candidato do PT lançou-se em campanha à frente de todos os demais, tendo preparado-se, aliás, para disputar novamente a presidência praticamente desde o final das eleições de 1989. Alguns meses depois dessas eleições, o líder do PT tinha com efeito anunciado, em coalizão com alguns outros partidos de esquerda, a formação de um "governo paralelo", seguramente um dos poucos exemplos de shadow cabinet ao sul do Equador. Infelizmente, a experiência não chegou realmente a frutificar, pelo menos no que se refere à atividade de um "ministro paralelo" das relações exteriores. Não se teve notícia de que o chanceler "paralelo" – designado na pessoa do filósofo e professor Carlos Nelson Coutinho – tivesse avançado um programa, ou sequer elementos, de uma "política externa alternativa", com propostas concretas para o relacionamento internacional do Brasil.

Em todo caso, a partir desse período, Lula passou a viajar bastante pelo Brasil e ao exterior e patrocinou em São Paulo um "foro" de partidos de esquerda da América Latina, que depois consolidou-se como reunião periódica de formações "progressistas" da região e contrárias às supostas ou reais políticas "neoliberais" de estabilização econômica no continente. A despeito de uma condenação genérica do chamado "consenso de Washington", o candidato do PT também desenvolveu um maior conhecimento a respeito das opções na frente externa, tendo chegado a posições definidas, embora nem todas explícitas, em relação aos grandes problemas internacionais enfrentados pelo Brasil.

O PT foi também o que primeiro definiu um programa de Governo para as eleições de 1994, com propostas bem articuladas, mas por vezes contraditórias, que refletiam um intenso debate interno entre as diversas correntes do partido. Alguns grupos representativos de "minorias" (negros, ecologistas, homossexuais e outros grupos de "excluídos" ou "marginalizados") lograram incluir suas reivindicações específicas nesse programa. Com base no programa do Partido e em texto assinado pelo próprio candidato, quais foram, em todo caso, os principais elementos da agenda do PT em relação à política externa nacional e às relações internacionais nesse ano do Plano Real (definido pelo PT como um "estelionato eleitoral")? O problema básico da política externa brasileira, tal como detectado no programa, foi designado como sendo a ausência, "há mais de quinze anos, de um projeto nacional de desenvolvimento", opinião reafirmada pelo candidato em artigo publicado no Boletim da Associação dos Diplomatas Brasileiros. 3

Lula reconhecia, também em acordo com o programa, que "durante os governos militares, mais particularmente no período do general Geisel, existia um projeto nacional, politicamente autoritário e socialmente excludente" que, a despeito das críticas que seu partido pode fazer, "abriu brechas para que o Brasil reorientasse sua política externa". Em 1994, segundo o programa, persistia "inercialmente a política externa daquele período, adequada empiricamente às novas realidades...". Mas, em face do quadro de mudanças, o "Governo Democrático e Popular deveria desenvolver uma política externa que buscará simultaneamente uma inserção soberana do Brasil na mundo e a alteração das relações de força internacionais contribuindo para a construção de ordem mundial justa e democrática".4

O programa de então destacava como áreas prioritárias da "nova política externa" a América Latina e o Mercosul, referindo-se aqui, de forma equivocada, ao "Merconorte". Ele não deixava tampouco de dar ênfase às "relações de cooperação econômica e nos domínios científico e tecnológico, com uma correspondente agenda política", na esfera Sul-Sul, com países como a China, Índia, Rússia e África do Sul e com os países de língua portuguesa. Algumas iniciativas internacionais eram listadas, como, por exemplo, a "rediscussão dos problemas das dívidas externas dos países periféricos", propostas sobre a fome e a miséria no mundo ou ainda a convocação de uma conferência internacional – "de porte semelhante à ECO-92" – para discutir a situação do trabalho no mundo e medidas efetivas contra o desemprego. O programa também prometia recuperar o Ministério das Relações Exteriores, "cuja estrutura foi sucateada nos últimos anos".

 


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