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E – os aspectos sociais da mudança de padrão de acumulação – as novas tecnologias de planejamento empresarial, produção, gerenciamento e financiamento têm como conseqüência um aumento da produtividade por empregado, que determina, inexoravelmente, uma menor necessidade de mão-de-obra, com o desemprego conseqüente. O desemprego, fato econômico e social ao mesmo tempo, registra-se com maior intensidade nos países integrantes dos espaços produtores de segunda geração, nos quais a mudança nos processos produtivos se faz sentir com maior vigor. A necessidade de sustentar a concorrência obriga a um salto qualitativo no processo produtivo. Nem sempre o desemprego atinge, nos países produtores de segunda geração, apenas os trabalhadores com educação menos qualificada. Pelo contrário, em muitos setores produtivos, a evolução tecnológica exige trabalhadores com qualificação média, apenas. Nesses setores, o desemprego atinge por igual os menos e os mais qualificados, os postos de trabalho sendo preenchidos por trabalhadores de média qualificação, capazes de entender e obedecer aos comandos dos softwares.
F – autonomia possível nesse novo mundo – a autonomia possível dos estados produtores de segunda geração é função da capacidade de poupança dos seus governos, das empresas que partilham dos princípios que orientam suas políticas gerais e da capacidade de poupança familiar, essa última dependente do nível médio de renda da população. Repousa, em segundo lugar, sobre a diminuição de sua dependência no balanço de contas correntes com o exterior.
A possibilidade teórica de conseguir-se uma relativa autonomia nesse mundo em revolução permanente – e de desenvolvimento desigual! – reside na possibilidade de os estados que se proponham a conquistar um maior grau de autonomia tenham espaços-reserva para onde se voltar. Neste processo, não se deve esquecer que esses estados que aspiram à autonomia são produtores de segunda geração e que sua economia e suas finanças não são totalmente nacionais. Ao avançar sobre os espaços-reserva, acumulam internamente, mas também permitem que se realize o processo global de acumulação, dada a transnacionalização de grandes ramos de sua economia, dependentes (quando não de propriedade) de empresas ou governos estrangeiros a esses estados produtores de segunda geração.
A maior autonomia conduziria em última instância, a que esses estados assumissem, da perspectiva estritamente econômica – e insisto no estritamente econômica –, uma posição de subordinação caracterizada nas décadas de 1970/80 como sendo "sub-imperialista".
É de napoleão a frase: os estados fazem a política (ou seriam as guerras ?) De sua geografia. A ser verdade a assertiva, podemos dizer que a análise da política externa de um estado, qualquer que seja, deve ser feita a partir de sua geografia. Mais especificamente, do entender como a posição de um estado no mapa mundi – não desconhecendo a posição dos demais – condiciona sua política externa. A análise da política externa brasileira, em grande medida, tem desconsiderado a realidade do espaço, tendo sido vista, na maioria das vezes, da perspectiva ideológica da inserção do país no conflito mundial (entendendo-se por conflito uma relação que vai da intenção hostil à guerra declarada) ou daquela outra, a de relacionar estreitamente a política externa com os processos políticos internos e os programas governamentais para fazer que o país pudesse sair de uma situação de menor desenvolvimento relativo. Quando não é tratada tão apenas da perspectiva da inserção do brasil no contexto econômico da globalização.
O condicionamento geográfico tem sido sacrificado ao alinhamento ideológico: para uns, em certa fase, durante o governo castelo branco, esse alinhamento foi "automático" com os estados unidos; para outros, em outras fases, a política externa brasileira era dependente da política externa da união soviética ou se alinhava aos "neutros",o que implicaria um "des-alinhamento" dos estados unidos.
A geografia condiciona, não determina. Decorre daí que em boa medida a posição geográfica não deve ser vista como dado, tomada, por assim dizer, em si, mas como realidade trabalhada pelo homem. Esse trabalho que altera em alguns graus a rota que se poderia traçar para a política externa a partir da consideração apenas da geografia enquanto dado bruto pode ser uma decisão referente ao espaço em apreço ou então uma descoberta que altere a tecnologia militar, reduzindo a influência determinante da posição geográfica. Construído o canal do panamá, sua defesa passou a ser essencial para a segurança do território norte-americano. O promontório do nordeste foi importante nos esquemas de defesa norte-americanos enquanto a tecnologia militar exigia que o controle do atlântico sul fosse feito a partir de bases militares instaladas na região, e a autonomia dos aviões militares e civis fazia dele uma escala de grande importância na ligação do hemisfério sul com a áfrica e dali com a europa, ou da europa com os estados unidos, via áfrica e nordeste-norte brasileiro. Os progressos da aviônica e a introdução do submarino nuclear e dos foguetes intercontinentais na panóplia das grandes potências fizeram que aquela região do brasil perdesse boa parte de sua importância estratégica, retirando com isso a possibilidade de, na política externa, o governo do rio de janeiro, depois de brasília ter uma carta geoestratégica a jogar nas suas relações com os estados unidos.
Há uma consideração geopolítica por detrás da política externa do governo lula da silva. Digo consideração geopolítica porque o discurso oficial, fazendo sempre referências geográficas, indica que a geopolítica, de alguma maneira, está presente no equacionamento da política externa. No discurso oficial, que se tem? Ora é a referência a que a política externa está orientada a mudar a geopolítica do comércio mundial, fazendo que seja mais importante entre os países situados no hemisfério sul; ora é a ação indicativa de que se busca conquistar espaços na áfrica subsaariana ou então nos países da comunidade de língua portuguesa; ora – e nisso reside para o grande público o schwerpunkt, o centro de gravidade da operação política –, dá como foco privilegiado da ação a américa do sul e, já agora com a visita do nosso presidente a são domingos, a américa latina.
Cabe ver que para usum delphini, não é apenas a visão geopolítica que conforma a política externa. Há, e pretende-se que assim ela seja vista, uma visão autonomista – e diria, autonomia a todo custo, como a offensive à outrance dos generais franceses na primeira guerra mundial. Quando digo visão autonomista a todo custo, tenho em vista as considerações que fiz na primeira parte e o fato de que ainda não se lançaram as bases para a consecução de um objetivo fundamental para isso, que é a superação – dialética se quiserem – da dependência externa. As vitórias pontuais na organização mundial do comércio (açúcar e algodão) podem, em médio prazo, auxiliar o desempenho da balança comercial desde que – atenção! – os países que foram vencidos se sujeitem às normas consagradas nos julgamentos e que a produtividade dos que trabalham com produtos que fazem concorrência aos brasileiros não ultrapasse a brasileira (os preços correm por conta do mercado internacional, controlado por grandes tradings). Ademais, para que essa autonomia seja conseguida com base, sobretudo, no comércio exterior será preciso que a participação brasileira no comércio mundial supere o 1% do comércio mundial.
O peso específico do brasil, dado por território e população (já que a posição geoestratégica deixou de ter a importância que teve nos anos 1940) tem servido para fundamentar posições do itamaraty desde a primeira gestão celso amorim, quando se lançaram pela primeira vez as idéias de ingresso do brasil no conselho de segurança da onu (depois apoiada e em seguida deixada de lado pela chancelaria e depois governos fernando henrique cardoso) e de desatenção a uma abstração chamada américa latina e concentração na realidade américa do sul.
Apesar de o discurso oficial vir a negar que a geopolítica inspira as ações da política externa, ela não deixa de apoiar-se no espaço, ainda que dele se tenha uma visão distorcida pelo voluntarismo que marca a tendência à autonomia à outrance.
A – da liderança ao assistencialismo – o governo lula da silva começou com a afirmação de que o brasil era líder na américa do sul há 500 anos e que essa condição, não se sabe bem por que razões, não fora devidamente reconhecida até então – e deveria sê-lo no futuro. Sem dúvida, a afirmação, repetidas várias vezes, baseava-se exclusivamente na consideração do peso específico, no desconhecimento das relações do brasil com os países sul-americanos e na vontade de ser líder.
Baseado no desconhecimento da história e na vontade de ser líder, inclusive contra os estados unidos, o governo Lula da silva lançou-se numa desabrida defesa do governo chávez, sendo levado a um recuo tático diante da posição assumida pelos estados unidos e outros países. Hoje, a defesa do governo chávez é feita pelo pt e o presidente lula aconselha seu colega venezuelano a ser humilde e a administrar a vitória, vale dizer, o aconselha a compor-se com a parte da oposição que deseja pôr termo ao confronto aberto.
A busca da liderança foi paulatinamente sendo substituída por uma postura assistencialista – ou seria paternalista, do grande irmão que vem em socorro dos infelizes? O bndes passou a servir de cabeça-de-praia para a grande ofensiva durante a qual o discurso da liderança foi substituído pelo da integração com concessões. Os que assistiram à palestra do professor marco aurélio garcia, no tucarena, durante a semana de relações internacionais, devem se recordar de que admitiu que o brasil por ter feito concessões ao peru para que este decidisse ligar-se, como membro associado, ao mercosul, viu-se obrigado a fazê-las ao uruguai para que o governo de montevidéu assinasse o acordo. O bndes assumiu, nesses dois anos de governo, as funções do eximbank norte-americano (apenas que em sentido contrário, dispondo-se a financiar exportações de bens de terceiros países) e do banco interamericano de desenvolvimento no financiamento de projetos nos países vizinhos. Jacta-se de ter capital maior do que o bid. Apesar do desemprego, o fat parece inesgotável como fonte de suprimento de recursos.
B – do assistencialismo à integração – no terreno das concessões, o atual litígio com a argentina, a "guerra das geladeiras", se por um lado demonstra que o governo não está disposto a assumir uma posição dura, por outro permitiu que se vislumbrasse qual o real objetivo da política externa. A política de contemporização com os governos argentinos não é deste governo, apenas. Já na chancelaria fernando henrique cardoso, quando o presidente menem estabeleceu uma taxa de estatística de 7% ad valorem sobre todas as importações do país, inclusive as provenientes do brasil, o governo itamar franco concordou com que era necessária... O açúcar brasileiro não goza dos benefícios da associação; sobre o calçado e o frango paira sempre a espada de dámocles das tarifas ou das quotas. As comunicações comerciais com o chile, via argentina, sofreram a imposição de medidas determinando que o transporte de carga se fizesse por uma rota que aumentou em mais de 1.500 km o trajeto a ser percorrido pelos caminhões brasileiros. A tudo isso, o governo responde com espanto, entregando aos empresários a tarefa de chegar a um acordo em que cedem os dedos para que o governo argentino não lhes corte a mão.
Para tudo isso deve haver uma explicação, que não pode ser complexa. Não pode ser complexa porque os fatos que estão a exigi-la são simples. Talvez o começo de explicação se encontre nas declarações do ministro celso amorim, respondendo aos que estranhavam a posição do governo na "guerra das geladeiras": querem que o brasil seja manso com a união européia e duro com a argentina. Essa explicação entra na linha geral das concessões deixada clara pelo assessor presidencial para relações internacionais aqui na puc. O real sentido de todas essas volta-atrás (desde o governo itamar franco, diga-se a bem da verdade) desvenda-se no depoimento do chanceler brasileiro a uma comissão do senado: porque reclamar de um aumento de 5% na tarifa sobre as geladeiras e não cuidar de fazer uma geladeira do mercosul? Em outras palavras, por que não abandonar a disputa pela conquista de mercado para empresas brasileiras (isto é, subsidiárias de estrangeiras mas que dão emprego a brasileiros) e concentrar-se na integração das cadeias produtivas, com as conseqüências sociais e os ganhos econômicos daí decorrentes? Por que não fazer do brasil, de fato e de direito, o país integrante do espaço produtor de segunda geração mais capacitado da região, permitindo que acumule capital e se desenvolva à custa dos tecnologicamente mais atrasados, países integrantes dos espaços-reserva? Ilustre pensador do século xix escreveu essas linhas candentes sobre a globalização: "a burguesia, pela exploração do mercado mundial, tornou cosmopolitas a produção e o consumo de todos os países (...) E fez que as industrias perdessem sua base nacional".
O espaço (posição trabalho) dos parceiros do mercosul restrito não permite que se dê logo esse grande passo integrador; daí o esforço de associação com a bolívia, o chile, o peru, a venezuela, o países do bloco andino, o méxico e agora os países da américa central e do caribe. Daí o empenho na integração física da américa do sul, vindo do governo fernando henrique cardoso, necessária à integração global do capital.
C – o alcance político da integração – o grande empenho em associar o mercosul a todas as negociações multilaterais e em transformar as bilaterais em multilaterais (o outro e o mercosul) atende a sábios e astutos desígnios políticos. No mundo, o peso específico do brasil, eliminada a carta estratégica do promontório do nordeste e assinado o tratado de não proliferação nuclear, é correspondente a pouco mais do que a participação do país no comércio internacional. Nas américas, no entanto, o peso específico do brasil é proporcional a sua extensão territorial e a seu pib. Daí, mesmo que a presidência dessa estranha associação mercantil-política seja exercida por terceiros países, nada se poder fazer sem a anuência do brasil – que, exceto no que diz respeito à argentina, tem condições de influenciar os demais países, acenando-lhes com os benefícios do bndes. Da mesma maneira deve interpretar-se a aproximação com a áfrica subsaariana e com a áfrica lusófona.
Apenas quando a integração física e a econômica tiverem dado grandes passos e os avanços tecnológicos de fato colocarem o brasil, por esforço próprio ou associado a terceiros, à frente de fato dos países associados é que se poderá falar numa eventual exploração da idéia da transferência do foco comercial do brasil do hemisfério norte para o sul. A retórica das alianças estratégicas para chegar a essa transferência, que poderia causar danos aos estados unidos, não resiste a uma medida do governo chinês vetando a entrada da soja brasileira.
O objetivo final de toda a manobra que se retrata na política externa do governo luis inácio lula da silva não é a independência do exterior via balanço de contas correntes. É, seguindo a máxima de alguém que entendia de revoluções mais do que qualquer um dos nossos governantes, lev davidovitch, assegurar-se do poder, nem que para isso seja necessário respeitar as leis da economia mundial. O fmi não faz essas leis. Às suas exigências, o governo brasileiro se submete enquanto não consegue obter o aval do governo norte-americano – que tem uma política de estado, qualquer que seja a conjuntura mundial – para ser de fato o país que vai transformar os espaços-reserva ao seu redor ou na fronteira mais longínqua em espaços produtores de segunda geração. As leis da economia mundial estão presentes na reprodução do capital e na sua expansão constante.
De nossa perspectiva, o risco que se corre com essa política é sacrificar o estado brasileiro a essas leis, ainda que aparentando resguardá-lo e dar-lhe condição de liderança nas américas. Mas isto é outra história.
Oliveiros S. Ferreira - oliveiros[arroba]oliveiros.com.br
Palestra proferida na semana de ciências sociais da Puc-Sp - (18/8/2004)
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