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De forma semelhante ao de Medeiros, o texto expressa apoio a um programa de renda mínima que beneficiasse as populações mais pobres, especialmente nas áreas urbanas. E avança bastante em proposições de reformas microeconômicas que teriam como resultado o uso mais eficiente e eqüitativo dos recursos públicos e o fortalecimento da iniciativa de pequenos e micro-empresários, sem os riscos morais associados ao simples crescimento dos subsídios: reforma tributária, mudanças na legislação trabalhista, reforma da previdência, reforma do mercado de capitais, mudanças no direito de propriedade, acesso ao crédito, aperfeiçoamento dos sistemas de regulação e descentralização dos serviços de infraestrutura. A ênfase das diversas propostas, que recolhem idéias que vêm sendo desenvolvidas por especialistas nos diversos setores, está posta na simplificação, desregulação e desburocratização dos procedimentos, e criação de mecanismos que melhorem a focalização no uso dos recursos.
Na parte final, o trabalho de André Urani apresenta algumas idéias sobre a "redefinição do espaço público", que vão todas no sentido de propor o fortalecimento da sociedade civil e o aumento do controle desta sobre as instituições públicas e governamentais. De fato, a literatura especializada confirma a importância do "capital social", caracterizado pelas redes de participação social e pelas relações de confiança entre os cidadãos, no desenvolvimento e manutenção de sociedades democráticas e economicamente desenvolvidas, ainda que não nos ensine muito sobre como criar estes atributos nas sociedades que ainda não os têm. Existem, no entanto, proposições específicas sobre algumas das instituições centrais das sociedades modernas – o sistema político-partidário, o sistema judiciário e as instituições educacionais – que jogam um papel fundamental na construção da cidadania e do espaço público, e que nenhum dos autores aborda.
Ao contrário do que o texto de Urani parece supor, as instituições político-partidárias e o formato de organização dos governos não podem ser vistos como algo dado, que só precisariam do maior envolvimento e ação da cidadania para funcionar melhor. O sistema representativo brasileiro é reconhecidamente perverso em muitos aspectos, ao reduzir o peso político da população das grandes cidades, ao implementar um sistema de representação proporcional que distancia os parlamentares de seus eleitores, ao impor mandatos executivos curtos, ao desestimular a coerência partidária, e ao tornar os corpos legislativos essencialmente irresponsáveis pelos seus atos e decisões[2]. Este sistema precisa ser reformado e aperfeiçoado, e não pode ser, simplesmente, substituido pela "democracia participativa" dos movimentos socais e das organizações não governamentais, que tendem a discriminar contra a maioria não-organizada da população[3]. Existe muito espaço, também, para rever a divisão de poderes e responsabilidades entre as esferas federal, estadual e municipal, equilibrando direitos e responsabilidades, reduzindo o número de municípios economicamente enviáveis, e abrindo espaço para a criação de novas formas de administração pública de âmbito metropolitano ou regional.
O judiciário também tem um papel fundamental na manutenção da desigualdade, tanto pela suas ações como pelas suas inações, ou ausências. O processo de jurisdicização de aspectos crescentes da sociedade precisa ser examinado em profundidade, pelo que implica em custos crescentes para a sociedade e inibição e paralisação da ação privada e governamental. A autonomia extrema, o corporatismo e a politização dos juízes de primeira instância e do Ministério Público têm criado uma situação em que as ações judiciárias proliferam, os tribunais superiores ficam sobrecarregados e não conseguem fixar jurisprudências vinculantes, as ações se prolongam por anos, e o cidadão com poucos recursos fica sem acesso aos remédios da justiça. Na sua ineficiência, o sistema judiciário tem também sua parcela de responsabilidade nos problemas de criminalidade e violência das cidades.[4]
É curioso que nenhum dos dois autores tratam do tema das políticas públicas de educação de forma mais aprofunda, dada a conhecida e forte relação que existe entre educação e desigualdade de renda. Tradicionalmente, as instituições educacionais sempre foram vistas como o lugar ideal para a transmissão dos valores cívicos e nacionais que formariam a base do "capital social" requerido pelas democracias. Mais recentemente, a educação passou a ser apresentada, pelos economistas, como o principal motor do desenvolvimento e também, em sua ausência, como principal correlato da desigualdade social.
Em um apêndice a seu trabalho, Carlos Medeiros apresenta uma complexa descrição das teorias econômicas sobre o relacionamento entre educação e distribuição pessoal da renda, argumentando contra as teorias do capital humano a respeito do impacto linear da educação na determinação da renda. Sem entrar no mérito da discussão econômica propriamente dita, eu tendo a concordar com esta crítica. A obtenção de credenciais educacionais nem sempre está associada ao desenvolvimento de competências gerais ou específicas, e, na ausência de uma economia dinâmica e incorporadora de tecnologia, as credenciais educacionais funcionam sobretudo como um bem posicional que reforça a discriminação e as desigualdades sociais, a um custo crescente para a sociedade[5]. Este tema é particularmente importante para o Brasil, aonde o crescimento da educação tem ocorrido sem preocupações mais sérias com os problemas de qualidade, e sem um exame mais aprofundado de seu verdadeiro impacto e custos sociais.
Isto não significa, obviamente, que os esforços pela universalização da educação básica de qualidade não sejam necessários, e de extrema importância para a incorporação à sociedade moderna de milhões de pessoas que não contam hoje com os recursos intelectuais mínimos para participar da vida em sociedade e para trabalhar de forma mais produtiva. Mas uma visão mais crítica sobre a questão educacional deve fazer com que não endossemos a idéia ingênua de que, quanto mais educação, em todos os níveis, é sempre melhor para todos; e possamos questionar propostas e tendências como as da universalização da educação pré-escolar, o crescimento descontrolado do ensino médio noturno e a expansão subsidiada da educação superior e da pós-graduação, que devem ser vistos em contraste com a necessidade muito mais premente de universalizar a educação fundamental, de oito anos, de qualidade.
Nenhum destes trabalhos explora estes temas, e muito menos a questão do papel da educação na formação da cidadania. Temos uma longa história de fracassos em relação a isto, que vai do ensino religioso e dos currículos nacionalistas e ufanistas dos anos trinta a cinqüenta à educação moral e cívica dos anos de governo militar, culminando nos "temas transversais" dos parâmetros curriculares do período mais recente[6]. Independentemente do grau de sofisticação destas propostas curriculares e seus conteúdos éticos, estas tentativas de inculcação de valores e atitudes geralmente chegam às escolas de forma fragmentada, burocrática, desvinculada das experiências e motivações de professores e alunos, e, com as honrosas exceções de sempre, não têm maior impacto[7]. Não existe solução fácil para este problema, mas pelo menos sabemos em que direção seguir. A educação, para se desenvolver, formar cidadãos competentes e gerar valores e capital social, precisa deixar de ser coisa dos governos e secretarias, administrada de forma burocrática, e passar a ser um recurso da sociedade e das famílias. As grandes burocracias educacionais, do Ministério da Educação e sua rede de universidades às Secretarias estaduais com suas centenas de milhares de professores e funcionários, precisam ser desfeitas como estruturas verticais, e transformadas em redes descentralizadas e autônomas, com os governos se limitando a atividades de apoio e regulação ampla. Os privilégios corporativos e profissionais associados a credenciais educacionais precisam ser eliminados, ou reduzidos ao mínimo; e é necessário aumentar, em muito, a competência técnica e os recursos educacionais disponíveis para as professores, educadores, estudantes e suas famílias. Desta forma, não só a educação funcionará melhor e de forma mais verdadeira, como que seu papel na construção da cidadania poderá ser reforçado, não pelos programas nacionais ou estaduais de "conscientização", por mais bem intencionados que sejam, mas pela própria experiência das comunidades.
A transformação de uma sociedade desigual e viciada em subsídios em uma sociedade mais igualitária e autônoma é um processo difícil, especialmente se pressionada pela crise econômica. O BNDES, além de seu papel fundamental em estimular a economia, pode também colaborar muito no financiamento das reformas sociais que se fazem necessárias – por exemplo, na transição do atual sistema previdenciário, de tipo "pay as you go", em outro baseado em um regime de capitalização; na transição do atual sistema de universidades federais controladas financeiramente pelo governo em instituições financeiramente autônomas submetidas a metas contratuais de desempenho; no desenvolvimento de novas tecnologias e experiências educacionais, para melhorar a qualidade da educação básica; e na criação de novas agências regionais e intergovernamentais para o atendimento de serviços públicos de natureza supramunicipal, em áreas como transportes, controle ambiental, preservação do meio ambiente, e outras. Como instituição financeira, o BNDES está naturalmente vacinado contra os vícios do subsídio indiscriminado, e por isto buscará, sempre, caminhos que levem a situações de sustentabilidade e solvência, o que é muito salutar. Temos muito ainda que aprender sobre como fazer estas reformas, o que dá e o que não dá certo, e aqui também o BNDES poderia desempenhar um papel estratégico importante, ao ajudar a fortalecer a área de estudos e pesquisas na área de políticas sociais, da mesma forma que viabilizou, na década de 60, a criação do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e a capacidade nacional de pesquisa cientifica e tecnológica que se desenvolveu a partir daí.
Notas:
[1] Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade e André Urani. Desenvolvimento e distribuição de renda no Brasil. Rio de Janeiro: IETS, 2002 e Carlos Aguiar Medeiros. A Distribuição de Renda como Política de Desenvolvimento. Texto preparado para a mesa "Políticas de Distribuição de Renda" como parte do programa de debates comemorativos dos 50 anos do BNDES, setembro2002 .
[2] Este tema teve grande destaque por ocasião do plebiscito sobre o parlamentarismo, mas acabou saindo da agenda política, embora as questões então levantadas continuem postas. Veja a respeito Bolivar Lamounier e Dieter Nohlen. Presidencialismo ou parlamentarismo: perspectivas sobre a reorganização institucional brasileira. São Paulo, Brasil : Edições Loyola : IDESP, c1993
[3] Sobre os alcances e limites do "orçamento participativo", como experiência de democracia direta, veja Fedozzi, Luciano. "Orçamento Participativo - reflexões sobre a experiência de Porto Alegre."Apresentação de Simon Schwartzman. Porto Alegre / Rio de Janeiro: Tomo Editorial / Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal, 1997.
[4] O tema da jurisdicização da sociedade brasileira é explorado por Bernardo Sorj. A Nova Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. Para uma análise das tentativas mais recentes de reforma do judiciário, veja Maria Tereza Aina Sadek, organizadora. Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.
[5] Uma crítica recente às propostas de expansão ilimitada do ensino técnico e universitário no contexto britânico, veja Alison Wolf. Does education matter? : myths about education and economic growth. London : Penguin, 2002 . O livro mostra o fracasso das tentativas de forçar a criação de um sistema de educação profissionalizante, e argumenta que a busca da educação superior é racional do ponto de vista dos indivíduos, mas não necessariamente da sociedade como um todo. Sobre a educação como bem "posicional" e suas implicações, ver Ruth Jonathan. Illusory freedoms : liberalism, education, and the market. Malden, MA : Blackwell Publishers, 1997.
[6] Ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde, orientação sexual e temas locais.
[7] Para um retrato do funcionamento das escolas públicas no Brasil de hoje, ver, por exemplo, João Batista Araújo Oliveira e Simon Schwartzman. A escola vista por dentro. Belo Horizonte: Alfa Educativa Editora, 2002.
Referências Bibiográficas
Fedozzi, Luciano, 1997. Orçamento Participativo - reflexões sobre a experiência de Porto Alegre (apresentação de Simon Schwartzman). Porto Alegre / Rio de Janeiro: Tomo Editorial / Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal.
Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade e André Urani, 2002. Desenvolvimento e distribuição de renda no Brasil. Rio de Janeiro: IETS.
Jonathan, Ruth 1997. Illusory freedoms : liberalism, education, and the market. Malden, MA : Blackwell Publishers.
Lamounier, Bolivar e Dieter Nohlen 1993. Presidencialismo ou parlamentarismo : perspectivas sobre a reorganização institucional brasileira. São Paulo, Brasil : Edições Loyola : IDESP.
Medeiros, Carlos Aguiar 2002. A Distribuição de Renda como Política de Desenvolvimento. Texto preparado para a mesa "Políticas de Distribuição de Renda" como parte do programa de debates comemorativos dos 50 anos do BNDES, setembro.
Oliveira, João Batista Araújo e Simon Schwartzman 2002. A escola vista por dentro. Belo Horizonte: Alfa Educativa Editora.
Sadek, Maria Tereza Aina, organizadora, 2001. Reforma do Judiciário. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer.
Sorj, Bernardo, 2000. A Nova Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Wolf, Alison 2002. Does education matter? : myths about education and economic growth. London : Penguin
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
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