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Pobreza & desenvolvimento local (página 3)

Augusto de Franco

Partes: 1, 2, 3

POR QUE O DLIS É DIFERENTE

Do ponto de vista operacional o DLIS é uma estratégia de indução ao desenvolvimento que prevê a adoção de uma metodologia participativa, pela qual mobilizam-se recursos da Sociedade Civil, em parceria com o Estado (com os três níveis de governo) e com o Mercado, para a realização de diagnósticos da situação de cada localidade, a identificação de potencialidades, a escolha de vocações e a confecção de planos integrados de desenvolvimento.

A hipótese estratégica do DLIS é a seguinte. Considerando distritos, municípios e microrregiões, o Brasil tem milhares de localidades onde é possível implantar um processo de desenvolvimento local. Se, em um número considerável dessas localidades, houver um processo em curso de DLIS, todo o território nacional será coberto por uma rede de iniciativas capaz de promover o desenvolvimento humano e social sustentável do País.

Não é necessário, entretanto, cobrir de uma vez todo o território. Se tais iniciativas estiverem conectadas em rede, basta que, em cada microrregião, haja um processo bem sucedido de DLIS para induzir processos semelhantes na sua vizinhança, "contaminando" positivamente as demais localidades.

Isso, todavia, não poderá ser feito pela execução centralizada de um plano nacional, nem unicamente a partir de um poder federal ou estadual. O desenvolvimento local é local mesmo, quer dizer, deve contar com recursos endógenos, disponibilizados e alavancados pelas próprias comunidades locais. Além disso, cada processo de desenvolvimento local é único, singular, não-replicável automaticamente e representa a afirmação de uma identidade própria, que é local.

Todavia, instituições de âmbito estadual, regional ou nacional podem implementar estratégias de indução ao desenvolvimento local, adotando localidades com o fito de nelas promover o DLIS.

Esse processo de implantação do DLIS deve ser feito em estreita parceria com a comunidade local, com os governos locais, com as empresas locais e com as organizações da sociedade civil que existem nas localidades. Porque o Estado, sozinho, não é capaz de dar conta dessa tarefa: quer pela inadequação da sua estrutura – desenhada para a oferta de programas fechados e centralizados, e não para promover a adequação da oferta de incentivos e serviços às diferentes demandas locais; quer pela falta de recursos (ou pela sua inadequada distribuição orçamentária); quer pela falta de capilaridade; quer, ainda, pela natureza clientelista e assistencialista de boa parte de suas políticas. Faz-se necessária a entrada de novos atores em cena, que, em parceria com o Estado, poderão gerar inovações, introduzir novas competências e assumir novas responsabilidades.

Na transição civilizatória que estamos vivendo, a responsabilidade com o desenvolvimento do País e, portanto, com o desenvolvimento de suas localidades não cabe apenas ao Estado, muito menos apenas aos governos de qualquer nível. Considerando que todo desenvolvimento é desenvolvimento social, faz parte da responsabilidade social das empresas e das organizações do terceiro setor induzir e promover o desenvolvimento. E pode-se dizer que, assim como todo cidadão é responsável pelo desenvolvimento da localidade onde vive, toda empresa ou organização também é responsável pelo desenvolvimento no âmbito em que atua.

Ora, isso não pode ser decretado por governos, não pode ser uma tarefa imposta, mas deve ser feito voluntariamente, a partir da livre iniciativa dos diversos setores (governamentais, empresariais e sociais) que compõem a sociedade. O máximo que o Estado pode fazer nesse sentido – além de se engajar no esforço, como vem fazendo no Brasil o Governo Federal desde 1999, com o Programa Comunidade Ativa – é criar ambientes legais e institucionais favoráveis que incentivem o surgimento de tais iniciativas (1).

Existem várias metodologias de DLIS. Basicamente, porém, qualquer estratégia de indução ao desenvolvimento local integrado e sustentável compreende os seguintes passos iniciais:

1) Cada localidade faz um diagnóstico participativo para conhecer sua realidade, identificar seus problemas e descobrir suas vocações e potencialidades.

2) A partir deste diagnóstico, é feito, também de modo participativo, um plano de desenvolvimento.

3) Desse plano é extraída uma agenda com ações prioritárias que deverão ser executadas por vários parceiros: governo federal, governo estadual, prefeitura, organizações da sociedade civil.

4) Tudo isso é organizado por um fórum democrático, formado por lideranças locais.

5) Essas lideranças locais participam de um processo de capacitação para a gestão local do seu processo de desenvolvimento.

Diagnóstico, plano de desenvolvimento e capacitação para a gestão local desse plano constituem passos básicos de qualquer programa de desenvolvimento local. No entanto, a nova estratégia do DLIS que começa a ser ensaiada, no Brasil, a partir da experiência de programas inovadores, como o Comunidade Ativa (coordenada pela Secretaria Executiva do Comunidade Solidária da Casa Civil da Presidência da República, em parceria com o Sebrae – Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), prevê mais alguns elementos, como a elaboração de uma agenda local de prioridades, a negociação dessa agenda e a celebração de um pacto de desenvolvimento em cada localidade (1).

Além disso, o DLIS – como um programa inovador, por natureza sempre inacabado e, portanto, aberto a modificações – vem incorporando em sua metodologia novas ações que fazem a diferença. A primeira e talvez a mais importante das inovações que já surgiram é a capacitação para a gestão empreendedora comunitária do processo de desenvolvimento local. O desafio aqui é o de ter, em cada localidade onde está ocorrendo um processo de desenvolvimento local, pessoas de governo e líderes da sociedade local capacitados para exercer uma gestão empreendedora dos assuntos públicos e dos negócios privados. E de ter, em cada uma dessas mesmas localidades, um grupo de pessoas, formalizado institucionalmente, capaz de tomar iniciativas, assumir responsabilidades e alavancar recursos da própria sociedade para, em parceria com o Estado, realizar projetos inovadores de desenvolvimento social (2).

A segunda inovação que merece destaque é a ampliação dos elos da rede de desenvolvimento comunitário dentro de cada localidade. Cada fórum local, agrupando entre 0,03% e 0,1% dos habitantes da localidade, constitui apenas um núcleo da rede de desenvolvimento comunitário. O desafio é expandir esse núcleo inicial, chegando a conectar, pelo menos, 1% dos habitantes. Isso significa decuplicar o número dos agentes, dos atores protagonistas do desenvolvimento local, enredando-os num segundo círculo, numa segunda "onda" – se tormarmos a imagem da propagação das ondas provocadas, por exemplo, pela perturbação causada por uma pedra atirada na superfície de um lago. Algumas evidências empíricas e alguns estudos de teoria dos grafos em redes peer-to-peer reforçam a hipótese de que 1% das pessoas de uma localidade conectadas em rede pode fazer a diferença, sendo capaz de encurtar drasticamente a chamada ‘extensão característica de caminho’ da sociedade local e permitindo que uma mensagem, emitida de qualquer parte, possa se propagar com grande rapidez para todos os habitantes. Ou seja, para continuar trabalhando com a nossa imagem da pedra atirada no lago, a terceira "onda" já representaria um salto capaz de afetar a comunidade inteira. Esta é, por certo, apenas uma hipótese, mas que já começa a ser testada como uma inovação dentro da metodologia do DLIS.

A terceira inovação, que também está surgindo agora, é a microrregionalização das experiências e a sua articulação em uma rede nacional de iniciativas, em uma espécie de "sociedade do desenvolvimento". O desafio, aqui, é linkar as comunidades locais pela Internet, transformando-as em verdadeiras telecomunidades da nova era da informação e do conhecimento, formando uma grande rede, com capilaridade em todo o território nacional, constituída de nodos capazes de interagir em tempo real.

Por meio dessa grande rede, cada coletivo local poderá saber notícias de outros lugares, trocar informações e planejar ações conjuntas, aumentando a sua força para propor mudanças importantes nas políticas públicas, para negociar com governos e agências de desenvolvimento, enfim, para compor um novo ator público de peso no Brasil. Supõe-se que as mesmas considerações feitas para as redes locais deveriam valer, mutatis mutandis, para a rede nacional. Mas isso ainda precisa ser demonstrado.

Todas as diferenças, em termos de passos metodológicos e inovações, já apontadas, não são suficientes para dizer em que o DLIS, como estratégia, se diferencia de estratégias mais antigas de promoção do desenvolvimento econômico local.

A diferença essencial, como já foi dito neste texto, não é de natureza metodológica. A diferença é que o DLIS – como tecnologia social inovadora de investimento em capital social – é um programa político, essencialmente político.

O que o DLIS "faz" ? Incentiva a participação dos atores locais na esfera pública, estimula a cooperação e a conexão horizontal entre as pessoas e democratiza procedimentos e processos decisórios. Ao fazer isso, contribui para quebrar, pela base, o elo inferior mais extremo da cadeia clientelista que extermina capital social. Só isso – ou tudo isso – contribui para liberar as energias empreendedoras, coletivas e individuais. Temos razões para acreditar que o restante – novas iniciativas empresariais, governamentais e sociais – vem daí, da vontade das pessoas de fazer, da confiança de que vai dar certo. Trata-se, por certo, de uma aposta. É a nossa aposta. A aposta na criação de ambientes favoráveis ao desenvolvimento.

Isso quer dizer que não apostamos na capacidade de promover tal ambiente favorável ao desenvolvimento a partir de dinâmicas intra-econômicas ou a partir da intervenção estatal num velho padrão de oferta.

Como projeto político de desenvolvimento comunitário, a idéia-força do DLIS é a de que qualquer município pode ser o lugar mais desenvolvido do mundo. Porque o lugar mais desenvolvido do mundo é aquele melhor lugar do mundo para se viver. Mas, como ninguém vive sozinho, o melhor lugar do mundo tem de ser também o melhor lugar do mundo para se conviver. Ora, conviver é viver em comunidade. Logo, o melhor lugar do mundo é aquele que tem a comunidade mais desenvolvida do mundo.

Mas comunidade desenvolvida não é todo mundo estar abastado, super-rico, jogando lixo na rua. Cidade desenvolvida não é cidade grande, mas cidade boa. Comunidade desenvolvida não é, necessariamente, aquela que vive numa metrópole, com muitos prédios, com muitas armas. País desenvolvido é aquele cuja população tem bem-estar e não aquele cujos habitantes vivem o tempo todo preocupados em se defender dos seus vizinhos, temendo pelo futuro de seus filhos. Desenvolvimento, afinal, é um movimento de mudança para melhorar a vida das pessoas, de todas as pessoas, das que estão vivas hoje e das que viverão amanhã, e não para modificar as disposições físicas do mundo, para construir e transformar artefatos e equipamentos (a não ser à medida que isso acarrete uma melhoria da vida das pessoas, mas de todas as pessoas, no presente e no futuro).

No entanto, como já dissemos aqui, cada comunidade tem de encontrar o seu próprio jeito de se desenvolver. O jeito que Milão, no norte da Itália, encontrou para se desenvolver não vale para Salerno, no sul da Itália. Desenvolvimento é um movimento pelo qual determinada comunidade consegue afirmar sua própria identidade coletiva. O desenvolvimento é sempre o aparecimento do que não existe, é uma fórmula nova, que cada localidade deve encontrar para se expressar no mundo. Mas é preciso que as pessoas aprovem isso, tenham orgulho de pertencer àquela comunidade e gostem de viver ali.

Se, de repente, uma cidade constrói muitos prédios, ganha um hospital, asfalta todas as suas ruas, mas as pessoas não têm bem-estar, não estão contentes em morar lá, estão infelizes – então é sinal de que a cidade está crescendo, mas a comunidade não está se desenvolvendo.

Ao meu ver, devemos partir da premissa de que uma comunidade só não se desenvolve – no particularíssimo sentido em que o conceito de desenvolvimento está sendo empregado aqui – se houver algo que impeça tal desenvolvimento. Ora, esses impedimentos são, fundamentalmente, de natureza política.

DE VOLTA À QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO

Muita gente avalia como interessantes as idéias expostas acima, sobretudo porque instigantes e inovadoras. Mas, na hora de tomar decisões sobre qual programa adotar ou em que setor investir para induzir o desenvolvimento, acabam recaindo na velha visão econômica.

Por certo, todos concordamos em que o fator econômico é fundamental em qualquer processo de desenvolvimento. É impossível promover o desenvolvimento sem estimular a multiplicação das atividades produtivas, sem democratizar o acesso à propriedade produtiva ou, em outras palavras, sem socializar a riqueza. Na ausência dessas coisas, podemos, sim, ter crescimento econômico, mas este será, provavelmente, um crescimento sem desenvolvimento.

Por isso, faz parte de uma estratégia de indução ao DLIS um investimento maciço visando ao florescimento, à expansão e ao fortalecimento de micro e pequenas empresas. Do ponto de vista do desenvolvimento, o mais importante a considerar aqui é a diversidade econômica, a circulação de bens e serviços e o aumento das possibilidades de apropriação, por parte de uma variedade maior de sujeitos, que tal diversidade enseja, e não o aumento absoluto do valor do que é produzido. Por exemplo, numa pequena localidade pobre do País com vocação ecoturística identificada e escolhida pela população, é mais importante a instalação de dez pequenas pousadas do que a de um único hotel cinco estrelas, mesmo que esse hotel consiga importar uma quantidade maior de capital externo.

Do ponto de vista de quem está olhando apenas o crescimento econômico, a segunda alternativa parece ser mais viável. No entanto, o que geralmente ocorre nesses casos – e temos vários deles no Brasil – é o seguinte: o hotel cinco estrelas acaba sendo um "quisto" no município. As pessoas vão para lá diretamente e não ficam sabendo que existe uma cidade na sede do município. Nunca aparecem na cidade para comprar nem mesmo uma caixa de fósforos, uma camiseta, uma sandália havaiana. Não precisa. O hotel cinco estrelas abriga em sua área várias lojas, algumas até de grifes famosas. Além disso, transformando-se no principal empregador da localidade, o megaempreendimento hoteleiro pode regular o preço da força de trabalho ao seu bel prazer e pode impor as condições de trabalho que quiser, de vez que os habitantes do município não têm qualquer alternativa de ocupação.

Imaginar que os poucos impostos arrecadados pela municipalidade vão ser revertidos para a população em termos de melhores serviços estatais e que isso poderá alavancar o desenvolvimento humano e social sustentável da localidade é uma santa ingenuidade. Em geral um empreendimento desse tipo acaba tendo uma grande influência sobre o poder político local, quando não o elege diretamente ou o manipula sistematicamente para servir a seus próprios interesses. E esses interesses não são os da distribuição da renda, da riqueza, do conhecimento ou do poder entre a população. No máximo, são interesses pela melhoria da infra-estrutura (saneamento, estradas, pistas de pouso, energia e comunicação) e da qualificação de mão-de-obra que possa ser usada com mais eficiência pelo megaempreendimento.

Então é necessário democratizar a economia, possibilitando que mais e mais pessoas empreendam, montem seus próprios negócios, aumentando o capital empresarial local. Mas a equação do capital empresarial é mais complexa do que a do PIB local. Não se trata apenas de somar valores de bens e serviços produzidos. Trata-se, entre outras coisas, de somar o número de pessoas que podem viver a partir de seus próprios negócios. Assim, do ponto de vista de uma ‘economia de desenvolvimento’, o capital empresarial é um índice de democratização da riqueza e não, como tem sido encarado por uma ‘economia de crescimento’, um índice de aumento absoluto da riqueza, não importando que esta riqueza esteja concentrada (como ocorre com o cálculo do PIB).

Ora, democratizar a riqueza é democratizar o acesso à (e o sucesso da) propriedade produtiva. Quanto mais pessoas que quiserem empreender atividades lucrativas puderem fazê-lo e quanto mais pessoas que empreendem conseguirem fazer prosperar os seus negócios, mais democratizada estará a riqueza.

Pois bem. Chegamos aqui ao centro da questão. A economia, por si só, não democratiza a riqueza. Deixada a si mesma, numa sociedade em que já estão concentrados, além da riqueza e da renda, o conhecimento e o poder, a economia – mesmo em crescimento – não é capaz de democratizar a riqueza porque não é capaz de estabelecer oportunidades iguais de acesso à propriedade produtiva e condições iguais de sucesso para os diversos empreendimentos. Por quê?

Em primeiro lugar, porque o acesso à propriedade produtiva depende do acesso ao crédito, o qual depende, por sua vez, da propriedade e da renda já possuídas. Excetuando-se as incipientes iniciativas de microcrédito – que no Brasil não mobilizaram, nos últimos sete anos, mais do que 120 milhões de reais, apenas para capital de giro, para menos de 150 mil tomadores, num universo potencial de 6 milhões –, ninguém vai emprestar dinheiro para quem não tem garantia real a apresentar (ou seja, propriedade, em geral imobiliária, ações e direitos, equipamentos, marcas, patentes, salários e outras formas de renda comprovada).

Em segundo lugar, porque o sucesso dos empreendimentos depende do capital humano e do capital social dos empreendedores e do ambiente interno e externo nos quais tais empreendimentos se realizam. Ou seja, dizendo a mesma coisa de modo menos preciso, empreendedores com déficits de conhecimentos e imersos em ambientes com déficits de empoderamento são candidatos preferenciais ao insucesso. Suas iniciativas têm tudo para aumentar ainda mais os altos índices de mortalidade empresarial na infância com os quais temos a infelicidade de conviver.

Qual é a conclusão que podemos tirar dessas evidências e considerações? A conclusão, ao meu ver, é a de que a dimensão econômica é imprescindível em qualquer processo de desenvolvimento, mas que essa dimensão não é capaz, por si só, de promover o desenvolvimento.

Considerando que pode haver crescimento sem desenvolvimento, penso que, talvez, seria razoável fazer uma distinção entre ‘economia de crescimento’ e ‘economia de desenvolvimento’.

Em uma visão de ‘economia de desenvolvimento’, o foco está na "dinamização social", por assim dizer, das atividades produtivas, ou seja, o foco recai sobre a diversidade econômica, sobre a circulação de bens e serviços e sobre o aumento das possibilidades de apropriação, por parte de uma variedade maior de sujeitos, que toda essa movimentação econômica enseja, e não – como ocorre numa visão de ‘economia de crescimento’ – sobre o aumento absoluto do valor do que é produzido, o qual, supostamente, seria redistribuído para toda a sociedade por mecanismos de mercado ou pela ação reguladora, corretora e, em geral, compensatória do Estado.

Numa ‘economia de desenvolvimento’ a regulação é sistêmica, mas é exercida pelo sistema como um todo – a própria sociedade, objeto final do desenvolvimento –, e não por meio através de um subsistema autorregulador, como o mercado, nem por uma instância telerreguladora, como o Estado.

Explicando melhor. Querer que o mercado regule (automaticamente) o funcionamento da sociedade é querer não uma ‘economia de mercado’ – o que é desejável –, mas uma ‘sociedade de mercado’, o que é indesejável, de vez que o mercado, como vimos, não é capaz de assegurar igualdade de oportunidades de acesso e de condições de sucesso – o que leva à concentração e não à distribuição da riqueza (e da renda). Por outro lado, querer que o Estado – a partir de sua racionalidade, baseada na idéia de planejamento (que é sempre o planejamento de alguns) – regule (heteronomamente) o funcionamento da sociedade paralisa, ao invés de estimular, as iniciativas autônomas dos sujeitos – o que concorre para enfrear o processo de criação de riqueza, além de levar à concentração, e não à distribuição do poder, com sérias repercussões negativas para a democracia e, inclusive, para a própria expansão de uma economia de mercado.

A fórmula híbrida adotada hoje – regulação de mercado às vezes induzida e quase sempre corrigida por intervenção do Estado – é o que temos, mas não pode ser o que almejamos. Porque essa fórmula está baseada numa visão de ‘economia de crescimento’, e não numa visão de ‘economia de desenvolvimento’. As correções por força de intervenção do Estado, ainda que haja crescimento, não conseguem reduzir significativamente as desigualdades, nem mesmo as desigualdades de renda, nem mesmo as desigualdades econômicas, de renda e riqueza, porque as desigualdades numa sociedade – seria óbvio dizer, se não houvesse tanta miopia no olhar econômico tradicional e tanta intoxicação pela ideologia do crescimento – são desigualdades sociais, ou seja, são desigualdades relativas aos níveis de desenvolvimento social.

Para verificar os níveis de desenvolvimento social temos de verificar os índices de capital humano e de capital social. Tomemos apenas, para fins ilustrativos do presente argumento, alguns indicadores (parciais) de capital humano e de capital social. Tomemos, por exemplo, grandes indicadores de escolaridade e de organização social. Ora, um país como o Brasil, com menos de seis anos de escolaridade média, com menos de 18% da população em idade ativa com ensino médio completo e com menos de 1 (uma) organização da sociedade civil para cada grupo de 600 a 700 habitantes, não pode reduzir suas desigualdades de desenvolvimento social por força de crescimento econômico; a rigor, não pode, também, reduzir significativamente suas desigualdades econômicas e, nem mesmo, suas desigualdades de renda. Com tais indicadores, não há milagre econômico, entendido como "milagre" de crescimento, que possa produzir distribuição de riqueza e renda.

Conquanto o fator econômico seja um elemento imprescindível, o "milagre" não pode ser econômico (em termos tradicionais); o "milagre" tem de ser o "milagre" do desenvolvimento e, portanto, a visão econômica pressuposta não pode ser a visão de uma ‘economia de crescimento’, mas tem de ser a visão de uma ‘economia de desenvolvimento’, nos termos colocados aqui.

Tudo isso é para dizer que a estratégia do DLIS, se não recusa o fator econômico, por outro lado, também não o privilegia a ponto de torná-lo um fetiche, porque não vê razões consistentes para acreditar no velho mito do primado ou da determinação econômica pelo qual se deixaram possuir tantas pessoas, de esquerda ou de direita, no último século e meio.

Desse ponto de vista, conseguir uma "dinamização social" da economia, atingir uma ‘economia de desenvolvimento’, é mais um ponto de chegada do que um ponto de partida a ser atingido por uma "dinamização econômica" da sociedade, trabalhando-se numa perspectiva de ‘economia de crescimento’. Para tanto, como tenho repetido tantas e tantas vezes, é necessário investir em capital humano e, sobretudo, em capital social.

Quem está interessado numa ‘economia de desenvolvimento’ deve investir no ser humano e na sociedade. Quem quer ver os frutos da prosperidade econômica, quem quer ver o florescimento, o fortalecimento e a expansão das micro e pequenas empresas, gerando renda suficiente para fazer diferença na vida das pessoas de uma comunidade, deve se preocupar mais com isso do que com qualquer outra coisa.

Ao contrário do que aponta muita vezes o senso comum, não basta investir em educação, sobretudo em aumentar os índices de escolaridade, mesmo que conseguíssemos mudar os nossos velhos padrões educativos, incluindo, por exemplo, nos novos currículos, o empreendedorismo (principal componente do capital humano do ponto de vista do desenvolvimento). Isso é necessário, mas não é suficiente. Desenvolvimento, como argumentei acima, é mudança social. E não se pode promover mudança social por meio, apenas, da educação, como sonharam e continuam sonhando tantas pessoas de boa vontade.

Se os índices de escolaridade fossem a chave para promover o desenvolvimento, os países do Leste Europeu ou Cuba seriam casos de sucesso. Ocorre que nesses países, apesar de altos níveis de capital humano, temos baixos níveis de capital social; portanto, temos baixos níveis de desenvolvimento social e, logo, temos baixos níveis de desenvolvimento (de vez que todo desenvolvimento é desenvolvimento social, quer dizer, é desenvolvimento da sociedade humana e não da geosfera, ou da biosfera ou da estratosfera ou de qualquer coisa que não seja uma "sociosfera", como já tive oportunidade de dizer aqui).

Para atingir desenvolvimento social é preciso mudar padrões de comportamento social que são estabelecidos a partir do "corpo" e do "metabolismo" das sociedades, vistas como sistemas complexos compostos por agentes que interagem em termos de competição e cooperação. E a única maneira (sistêmica) de intervir nesse tipo de sistema é por meio da política, que incide sobre as formas de organização e sobre os modos de regulação de conflitos por intermédio dos quais certos papéis sociais são estabelecidos e reproduzidos socialmente. Por isso, sempre é bom repetir, o DLIS é um programa político, uma estratégia política de empoderamento das comunidades, uma tecnologia social inovadora de investimento em capital social (um conceito, como sabemos, essencialmente político).

É fácil constatar que os programas realmente existentes de DLIS ainda não expressam totalmente essa concepção. Em muitos casos, ainda estamos querendo insuflar, meio artificialmente, o crescimento econômico das localidades, escolhendo para elas as vocações que, ao nosso ver, sejam capazes de atrair, mais rapidamente, capitais externos (daí a vocação turística que aparece, não por acaso, com tanta freqüência nos Planos de Desenvolvimento e nas Agendas locais). Bem intencionados, queremos que o município cresça logo, que as pessoas vejam os resultados concretos e se animem para que o processo possa continuar. Queremos que localidades deprimidas, às vezes há séculos, apresentem, em um ou dois anos, resultados concretos que não apresentaram em toda a sua história. Queremos ser os magos do milagre econômico do crescimento local.

Nesse afã por resultados econômicos concretos, muitas vezes deixamos de ver que os empreendedores nos quais investimos vão fazer parte de uma pequena nova elite que tenderá a reproduzir o mesmo comportamento das velhas elites locais que constituíram o elo mais baixo da cadeia clientelista de poder, a qual, secularmente, impediu o desenvolvimento social da localidade, na medida em que exterminava continuamente o capital social espontaneamente produzido. Ora, do ponto de vista das teorias do capital social interessadas em explicar os "milagres" da prosperidade econômica e da boa governança, este não é um outro assunto. Este é o assunto!

DE VOLTA À QUESTÃO DA POLÍTICA: AS RELAÇÕES INTRÍNSECAS ENTRE DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA

Defendi antes a idéia de que a questão do desenvolvimento é uma questão política, fundamentalmente política. Algumas pessoas tendem a concordar com isso imediatamente, muitas vezes por razões diversas daquelas que apresentei. Outras, rechaçam de pronto o meu ponto de vista, sustentando que o econômico é, de fato, o fator determinante, tecendo vários argumentos e citando numerosas evidências para mostrar que as coisas só podem ser assim. A maioria, porém, tende a aceitar a idéia, mas tem dúvidas. Sobretudo – se é assim como eu digo – querem que eu diga, então, o que fazer para induzir ou promover o desenvolvimento.

Disse também que, ao verticalizar as relações e desestimular as conexões horizontais, ao desmobilizar a criatividade e a inovação (capital humano) para enfrentar coletivamente os problemas, ao substituir a cooperação [que alavanca recursos endógenos] pela competição por recursos exógenos e ao impedir que essa colaboração se amplie e se reproduza socialmente (capital social), os sistemas políticos [realmente existentes ainda] estão exterminando os fatores necessários para que uma comunidade possa se desenvolver.

Vou direto ao ponto. Se é assim, o que devemos fazer para promover o desenvolvimento?

Minha resposta é a seguinte. Para se libertar desses constrangimentos que impedem o desenvolvimento, é necessário: (i) mobilizar a criatividade e a inovação, despertando o empreendedorismo individual e coletivo; (ii) incentivar a cooperação e o protagonismo policêntrico (ou a multiliderança), ensejando a captação e a multiplicação de recursos endógenos na solução de problemas locais; (iii) horizontalizar as relações entre grupos, pessoas e organizações, estimulando o surgimento e animando o funcionamento de redes de atores sociais; e (iv) inaugurar novas institucionalidades e novos processos participativos, democratizando decisões e procedimentos, incluindo novos atores na esfera pública e ampliando essa esfera (3).

As quatro medidas expostas acima são ações para se "se libertar de constrangimentos". Ora, uma ação de "se libertar" é uma ação política, não no sentido do citado dístico de Paul Valéry (de impedir as pessoas de participar), mas no sentido oposto ao dessa "política" (autocrática) realmente existente (a qual, a rigor, nem se poderia chamar de política, se considerarmos, por exemplo, como fez Hannah Arendt, que, se a política tem, em si, algum sentido, este sentido só pode ser a liberdade). Neste último sentido o que os gregos fizeram como política em nada se diferencia daquilo que eles mesmos e os pósteros chamaram de democracia. Pois democratizar é sempre se libertar de constrangimentos à liberdade.

O que tudo isso tem a ver com a questão do desenvolvimento? Tem tudo a ver. Mas para entender esse ponto de vista é preciso conhecer um sistema explicativo que, coerentemente com a visão exposta no texto reproduzido acima, articula-se a partir do seguinte argumento.

Primeiro: o sentido da política é a liberdade. Segundo: a política, neste (seu) sentido (próprio), é sinônimo de democracia. Terceiro: o exercício da política democrática é libertação de constrangimentos que impedem a afirmação da liberdade. Quarto: a promoção do desenvolvimento implica a libertação de constrangimentos que impedem: o exercício da criatividade e da inovação, a ampliação da cooperação e a manifestação do protagonismo policêntrico (ou da multiliderança), o surgimento e a proliferação das redes, a construção da capacidade e da possibilidade das pessoas participarem das decisões públicas. Quinto: ora, isso significa que os constrangimentos que impedem o desenvolvimento impedem a ampliação da esfera pública enquanto espaço para o exercício da política democrática. Sexto: logo, existem relações intrínsecas entre desenvolvimento e democracia (4).

Penso que seja possível, desenvolvendo a argumentação acima, mostrar que não é possível ter desenvolvimento sem democracia, conquanto seja possível ter crescimento.

DLIS: UM PROJETO DE MUDANÇA DA CULTURA POLÍTICA

As considerações anteriores mostram que o DLIS também é um projeto pedagógico de mudança de cultura política. Nesse sentido, o DLIS parte da premissa de que para desenvolver a comunidade é preciso despertar o empreendedorismo individual e coletivo, incentivar a cooperação, estimular as redes e aprofundar a democracia. Haverá desenvolvimento comunitário à medida que isso for feito. Se nada for feito nesse sentido, não haverá desenvolvimento da comunidade. Então o projeto pedagógico do DLIS tem como objetivo criar condições para que as pessoas vejam o que está impedindo que elas sejam empreendedoras, cooperativas, se inter-relacionem horizontalmente em rede e exercitem a democracia. Mais do que isso, o projeto pedagógico do DLIS visa criar condições para que as pessoas vejam o que está impedindo que a comunidade onde vivem seja um ambiente que favoreça o florescimento do empreendedorismo, da cooperação, das redes e da democracia.

A pedagogia do DLIS sustenta-se na hipótese de que esses constrangimentos que impedem o desenvolvimento comunitário são, fundamentalmente, de natureza política. Têm a ver com a maneira pela qual o poder está organizado e com o modo pelo qual os conflitos de interesses são solucionados. Têm a ver, em suma, com uma cultura política que:

  • desmobiliza a criatividade e a inovação levando as pessoas a repetir o que sempre fizeram. Isso é contra o empreendedorismo individual.
  • desestimula o enfrentamento coletivo dos problemas comuns, transformando as pessoas em beneficiárias passivas de programas assistenciais que já vêm prontos. Isso é contra o empreendedorismo coletivo.
  • substitui a cooperação que alavanca recursos da própria comunidade pela competição por recursos de fora, que serão conseguidos por algum benfeitor e oferecidos em troca de algum tipo de apoio. Isso é contra a prática da cooperação.
  • impede que essa cooperação se amplie e se reproduza socialmente, alimentando a desconfiança entre as pessoas. Isso é contra a ampliação social da cooperação.
  • verticaliza as relações e desestimula as conexões horizontais entre pessoas, grupos e organizações, isolando-os e deixando-os à mercê de favores de algum político poderoso. Isso é contra as redes e a favor de estruturas piramidais de poder.
  • exclui as pessoas das decisões e as impede de participar dos assuntos públicos, que dizem respeito aos destinos da comunidade. Isso é contra a democracia.

Para que a comunidade possa se desenvolver é preciso se libertar da cultura política que sustenta as práticas listadas acima. Ora, só há uma maneira de fazer isso: incentivando práticas contrárias, que favoreçam o empreendedorismo individual e coletivo, a cooperação, as redes e a democracia.

Em outras palavras, é preciso devolver às pessoas a capacidade de sonhar e de correr atrás dos próprios sonhos e fortalecer a sua capacidade de comunidade, quer dizer, de compartilhar os seus sonhos e de cooperar na busca de objetivos comuns, exercendo seu protagonismo para alavancar seus próprios recursos na solução de problemas locais, conectando-se horizontalmente em rede, democratizando decisões e procedimentos e inaugurando novos processos participativos de caráter público.

POBREZA E DESENVOLVIMENTO

Para concluir, voltando ao tema do presente texto, resta saber que tudo o que foi dito aqui tem a ver com a questão da pobreza do ponto de vista estratégico, ou seja, do ponto de vista daqueles que têm a responsabilidade pública de enfrentar a pobreza.

Desse ponto de vista estratégico, da formulação de políticas para o desenvolvimento humano e social sustentável do País, a questão central do DLIS é a seguinte: qual pode ser o impacto de pequenas ações, desenvolvidas por populações marginalizadas, em localidades com baixo índice de desenvolvimento sócio-econômico, em um país continental como o Brasil, com um imenso contingente de pobres, submetido à dinâmica avassaladora dos fluxos de capital característica do mundo globalizado?

Na minha opinião, a resposta adequada para essa questão, a ser fornecida, vamos dizer assim, por uma "Teoria do DLIS", seria a seguinte: ações desenvolvidas em comunidades podem ter um impacto considerável na mudança da vida das pessoas dessas comunidades, mesmo que sejam realizadas por uma pequena parcela dessas pessoas. Tais ações, desenvolvidas em certo número de comunidades com baixo índice de desenvolvimento sócio-econômico, podem vir a ter um impacto considerável no desenvolvimento do País como um todo, mesmo que não sejam realizadas na maioria dessas localidades.

Sei que tais afirmativas carecem de prova, de verificação prática e de argumentação teórica consistente para serem validadas. Para tanto, seria necessário investigar o impacto das ações comunitárias induzidas pelo DLIS no desenvolvimento do País como um todo.

Presumo que quem quiser investigar o impacto das ações comunitárias sobre o processo de desenvolvimento social descobrirá que o problema do desenvolvimento é, essencialmente, um problema de poder e de política. E que pequenas ações comunitárias terão impacto ponderável sobre o desenvolvimento enquanto introduzam novos padrões (horizontais) de organização e novos modos (democráticos) de regulação.

Mas pressinto que tal investigação não poderá ser feita com os velhos instrumentos analítico-conceituais ainda utilizados pela economia e pela sociologia tradicionais. Quem quiser fazer isso deverá lançar mão de abordagens da complexidade a partir de teorias da complexidade, de teorias do capital social e de outras teorias correlatas que tentam explicar e entender os fenômenos da cooperação, das redes e da democracia, os quais, juntamente com o empreendedorismo, constituem os "aminoácidos" de uma nova concepção de desenvolvimento que, em si mesma, já significa superação da pobreza: o desenvolvimento humano e social sustentável.

Notas

(1) O Programa Comunidade Ativa funciona basicamente assim. Cada localidade faz um diagnóstico participativo para conhecer sua realidade, identificar seus problemas e descobrir suas vocações e potencialidades. A partir desse diagnóstico é feito, também de modo participativo, um plano de desenvolvimento. Desse plano é extraída uma agenda com ações prioritárias que deverão ser executadas por vários parceiros: governo federal, governo estadual, prefeitura, organizações da sociedade civil. Tudo isso é organizado por um fórum democrático formado por lideranças locais. Essas lideranças locais participam de um processo de capacitação para a gestão local do seu processo de desenvolvimento. O governo federal coordena a negociação entre os vários parceiros responsáveis pela execução das ações contidas na agenda. É celebrado um pacto de desenvolvimento na localidade e assinado um termo de parceria com as metas a serem atingidas e os responsáveis por elas. O governo federal e os demais parceiros oferecem capacitação finalística para que as pessoas do governo e da sociedade local, sobretudo os pequenos empreendedores, consigam realizar as ações pactuadas.

Até 2001 o Comunidade Ativa finalizou o processo de implantação do DLIS em 157 municípios e iniciou a implantação em mais 434 municípios, tendo capacitado diretamente cerca de 4.000 membros de fóruns locais, atingido mais de 17 mil pessoas e pactuado 2 mil ações com governos e instituições de âmbito estadual e nacional. Para 2002 a meta é totalizar a implantação do DLIS em 604 municípios, dando continuidade ao processo por meio da oferta de capacitação para a gestão empreendedora comunitária do desenvolvimento local com o Projeto Comunidade Que Faz, executado pela AED – Agência de Educação para o Desenvolvimento.

(2) Para compreender esse desafio é preciso ter uma visão do que ocorre em um processo de DLIS depois que os passos iniciais da metodologia foram implantados. Depois disso, as localidades devem começar a implementar a sua agenda de prioridades. Parte dessa agenda é negociada com governos e com outros parceiros não-governamentais. Uma outra parte da agenda é composta por ações que devem ser realizadas pela própria comunidade local. Esta parte da agenda tem sido apelidada (no caso do Programa Comunidade Ativa) de "agenda local do local". A chamada "agenda local do local" é a comunidade que faz.

Ocorre que, quando o agente encarregado de transferir a metodologia do DLIS para as localidades (no caso do Programa Comunidade Ativa, esse agente é chamado de Multiplicador de DLIS) termina seu trabalho, a comunidade, naturalmente, sente-se um pouco perdida. Na maior parte dos casos, a comunidade local não se sente preparada para realizar, por si mesma, as ações dessa "agenda local do local". Na maioria das localidades as pessoas dizem que não têm recursos para realizar as ações, reclamam da falta de apoio, da desunião do povo e até da falta dos conhecimentos técnicos necessários para efetivar as ações propostas.

Para superar tal desafio, foi introduzida a inovação da presença, temporária, de um outro agente de desenvolvimento na comunidade, encarregado de facilitar o processo pelo qual a comunidade local pode aprender a fazer as coisas que ela tem de fazer. Mas esse novo agente não vai fazer isso dando um curso tradicional, em sala de aula. Ele vai usar a pedagogia do aprender-fazendo. Ele vai ensinar a comunidade local a fazer certas coisas ao mesmo tempo em que vai aprender com a comunidade local as diversas maneiras criativas como as mesmas coisas podem ser feitas de modos diferentes.

Então esse agente de desenvolvimento ensina-aprendendo e aprende-ensinando. E a comunidade local também é responsável pela sua formação na medida em que aprende-fazendo junto com ele. Toda comunidade, quando quer, sabe fazer direitinho as coisas que realmente precisa fazer. Toda comunidade sabe organizar suas festas, seus torneios esportivos, suas campanhas. É necessário apenas que haja uma vontade coletiva de fazer.

Assim, o papel principal do novo agente de desenvolvimento é despertar essa vontade coletiva no pessoal da localidade. E ele faz isso tomando uma prioridade da "agenda local do local", de comum acordo com o Fórum de DLIS, e mostrando, na prática, como é possível realizá-la usando os recursos da própria localidade. Assim, ele discute com o pessoal como montar uma campanha local para realizar aquela prioridade escolhida como exemplo; transmite conhecimentos de gestão e de captação de recursos que poderão ser adaptados para funcionar em cada localidade; informa como os projetos devem ser elaborados e como fazer os relatórios e as prestações de contas sem as quais tais projetos não poderão ser renovados.

Muito mais importante do que tudo isso, porém: ele faz essas coisas juntamente com o Fórum de DLIS e com outras pessoas da comunidade. Mostra como se faz, fazendo. E todos, ao mesmo tempo, ensinam e aprendem com isso. Por exemplo, ele leva dicas de como angariar recursos para realizar uma ação local, seja por meio de gincanas, de festas, de bazares, de recolhimento de contribuições nas lojas comerciais, de utilização de trabalho voluntário, de parcerias, do envolvimento de toda a população. Muitas dessas dicas são reinventadas pela própria comunidade e, assim, tanto o agente de desenvolvimento quanto a própria comunidade estão aprendendo formas novas de fazer as coisas, que dão certo naquela localidade e poderão inspirar novas dicas para outros lugares, que farão a mesma coisa, e assim por diante, criando uma grande corrente de inovações para o desenvolvimento do País.

Alguém poderia dizer que tal inovação apenas posterga o problema, pois algum dia o agente de desenvolvimento terá de abandonar a localidade. Para responder a tal questão a estratégia utilizada é a fundação de uma organização formal de apoio ao desenvolvimento em cada localidade. Antes de sair da localidade o agente de desenvolvimento discute com o Fórum de DLIS a constituição de uma organização autônoma, de caráter público, capaz de continuar a realizar as ações da agenda local.

Por intermédio dessa nova organização de apoio ao desenvolvimento local, a comunidade pode fazer projetos, celebrar convênios e contratos e firmar termos de parceria com os diferentes níveis de governo.

As novas organizações de apoio aos Fóruns de DLIS não são uma outra instância para coordenar o processo de desenvolvimento na localidade. Na prática, elas são constituídas com o próprio pessoal que já integra o Fórum de DLIS. Só que, agora, esse pessoal pode ter autonomia, pode fazer projetos e pode gerir recursos. O agente de desenvolvimento só sai da localidade depois que esta organização estiver fundada. E isso já responde a um outro desafio: o da autonomização da experiência de desenvolvimento local, condição necessária para a conquista da sustentabilidade do processo.

Isso significa que cada comunidade local que passa por esse processo tem, nas suas mãos, um novo tipo de instituição, que conta com o apoio e a parceria dos governos, mas que, caso um ou outro governo, de qualquer nível, resolva não mais investir no desenvolvimento local integrado e sustentável, não terá poder para impedir a atuação dessa instituição, nem para acabar com ela. Ora, se tivermos apenas algumas poucas instituições autônomas desse tipo, elas não terão muita força para se manter e para influir no desenvolvimento do País. Mas à medida que se expandem, às centenas e aos milhares, organizações autônomas desse tipo, conectadas horizontalmente num grande sistema interdependente, formando uma imensa rede, com capilaridade em todo o território nacional e com o propósito comum bem definido de apoiar, consolidar e expandir o DLIS, então a coisa toda muda de figura, porque passamos a ter, de fato, uma nova institucionalidade para induzir e conduzir, em escala nacional, um novo caminho de desenvolvimento humano e social sustentável.

(3) Este é o motivo pelo qual o sistema conceitual da AED considera que ‘empreendedorismo’, ‘cooperação’, ‘rede’ e ‘democracia’ são conceitos-chave ("aminoácidos") em qualquer estratégia de indução ou de promoção do desenvolvimento.

(4) A proposição ‘se o sentido da política é a liberdade então política é sinônimo de democracia’ – na qual se baseia o argumento para mostrar as relações intrínsecas entre desenvolvimento e política (democrática) – não é uma implicação trivial.

Todas as tentativas de mostrar que a política se refere aos padrões de organização construídos por uma sociedade ou aos modos de regulação de conflitos praticados por essa sociedade estão, ao meu ver, corretas – desde que tomemos a política pelo seu estudo. O estudo da política de fato tem por objetos os padrões de organização e os modos de regulação, e assim, e só assim, tem sentido falar-se em política da autocracia e política da guerra.

Mas isso é correto enquanto tais objetos são objetos do estudo da política ou do que se chama, incorretamente, de ciência política (o que se deve entender, a rigor, como ciência do estudo da política, de vez que a política, felizmente, não é ciência).

Não há política possível em autocracias, a não ser aquela que se exerce no sentido de desconstituí-las, ou seja, que, ao se exercer, desconstituem-nas. Não há política possível na guerra, a menos aquela que substitui modos violentos de solução de conflitos por modos não-violentos e, portanto, desconstituem a guerra; quer dizer, que, ao regularem conflitos de modos não-violentos, tiram da guerra a sua razão de ser ou impedem que se ache uma razão para guerrear.

Por quê? Porque o sentido da política é a liberdade. Por isso não pode haver nenhuma política, stricto sensu, hobbesiana – na medida em que o fim da política, para Hobbes, era a ordem.

Sei que essa abordagem reduz consideravelmente o escopo daquilo que convencionamos chamar de política. Mas se chamamos de política ao que não é, em última e irredutível instância, aquilo que a política é, introduzimos uma ambigüidade teórica incontornável porquanto radicada na origem mesma do nosso discurso e, simultaneamente, não conseguimos captar o que é próprio da política, o que só ela tem ou promove, a sua característica genética distintiva, vamos dizer assim.

A política nesse sentido, ou seja, a política propriamente dita, deve ter sido ensaiada pelos seres humanos em várias circunstâncias pretéritas, mas só se afirmou como atividade reconhecida socialmente, por parte de coletividades humanas estáveis, a partir da experiência dos gregos.

Nesse sentido, pode-se dizer que a política começou com os gregos e não por acaso coincidiu com o advento daquilo que os gregos e os pósteros resolveram chamar de democracia. Política e democracia são atividades coevas e reconhecer isso não é pouca coisa. Mas estou dizendo além disso: política e democracia são coevas porque são a mesma atividade. Fazer política é, assim, sinônimo de "fazer" democracia.

Sustento que as investigações filosóficas de Hannah Arendt publicadas postumamente sobre a natureza da política, sobre o sentido da política e sobre a questão da guerra, confirmam esta hipótese. Mas isso não é tão vital assim ao ponto de me animar a entrar numa controvérsia de intelectuais sobre se Arendt disse ou não disse isso. Diante de argumentação sólida mostrando que ela, aparentemente tendo dito, de fato não quis dizer isso, eu cedo. Se ela não disse ou não quis dizer, tudo bem. Eu digo.

O que eu digo é que, geneticamente, o que foi praticado como política foi concebido como democracia e que tudo o que não foi concebido como democracia foi praticado como guerra, ou seja, como atividade apolítica. Ao meu juízo isso concorda com o parecer de Hannah Arendt sobre a visão dos gregos, segundo a qual a guerra é uma atividade apolítica. Como ela escreveu em "A Questão da Guerra", "no que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens livres, e com isso centrou a verdadeira 'coisa política' – ou seja, aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres – em torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como um símbolo de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo, com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas, com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘apolítica’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo. Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento grego" (Arendt, 1958-9: frag. 3c) (g. a. + n. g.).

Ora, o exercício da conversação na praça é (um dos elementos fundantes da) democracia. Assim, quando guerreavam, os gregos se comportavam também de maneira ‘ademocrática’, quer dizer, ‘apolítica’. Em outras palavras, democracia e política estão conectadas por uma coimplicação, assim como seus contrários, ou seja, autocracia ↔ guerra.

Com efeito, em carta datada de 7 de abril de 1959 ao editor Klaus Piper sobre o seu "Introdução à Política", impublicado e jamais concluído, Hannah Arendt escreveu:

"Não sei se já havia lhe dito... que começo o livro com um capítulo detalhado sobre a questão da guerra. Não uma discussão sobre a situação atual, mas sim o que significa em geral a guerra para a política. Minha razão para assim iniciar foi bem simples: nós vivemos num século de guerras e revoluções, e uma ‘Introdução à Política’ não pode começar bem com outra coisa que não seja aquilo através do que chegamos, enquanto contemporâneos, direto à política. Eu havia planejado isso originalmente enquanto introdução porque, a meu ver, guerras e revoluções estão fora do âmbito político no verdadeiro sentido. Elas estão sob o signo da força e não, como a política, sob o signo do poder." (n. g.)

A rigor, não existia uma democracia grega, porque lá existiam atividades democráticas (que se exerciam por meio da conversação na Agora) e atividades autocráticas (que se exerciam por meio, por exemplo, da guerra com outros Estados e da preparação para a guerra e do ‘estado de guerra’ instalado internamente em face da guerra externa).

Isso significa que, originariamente, o contrário da guerra não era a paz, mas a política.

A paz, definida pelo seu oposto como ausência de guerra, não pode ter um estatuto próprio em termos de teoria política (i. e., das formas e dos meios como se distribui o poder e se exerce a política, ou seja, do padrão predominante de organização e do modo predominante de regulação de conflitos), se o que ocorre na paz não for também o oposto do que ocorre na guerra. O conhecido lema "Se queres a paz prepara-te para a guerra", gravado nos muros dos quartéis, diz tudo a esse respeito, quer dizer, revela uma simetria não contraditória, senão complementar, entre paz e guerra. Pois a preparação para a guerra significa que a sociedade, mesmo em tempos de paz, se organiza para a guerra e para a instalação de um ‘estado de guerra’ – o que é contraditório com uma preparação para a paz. Uma preparação para a paz implicaria organizar a sociedade de forma tal que os padrões de organização e os modos de regulação favorecessem o exercício da liberdade, levando os seres humanos a estabelecerem relações de não-subordinação e de não-violência na solução dos conflitos. Ora, isso tem um nome: chama-se democracia – a única maneira, não voltada para a guerra, pela qual pode se efetivar a política.

Não é por acaso que não existe em nossos vocabulários o verbo "pazear", e sim, apenas, o verbo guerrear, pela mesma razão que não existe ou não é empregado o verbo "politicar" (a não ser em sentido pejorativo). E a razão é, essencialmente, a inexistência – a não ser pontual e fugaz – de democracia como ‘estado de paz’. "Politicar", num sentido não-pejorativo, é sinônimo de "pazear", preparar-se para a paz. E não há outra maneira de preparar-se para a paz a não ser exercitar a política, ou seja, fazer democracia ou "democratizar". Eis porque deve-se afirmar, nesse sentido, que a democracia é sinônimo de política e antônimo de guerra.

Pode-se argumentar que tal digressão filosófica está circunscrita a uma experiência fundante (a dos gregos) ou a uma interpretação particular dessa experiência, e que desconhece as formas históricas pelas quais as sociedades realmente existentes foram tentando materializar o ideal da liberdade como autonomia que, segundo Rousseau, constitui o que chamamos de democracia.

Mas historicizar nesse nível o conceito de democracia é, antes de qualquer coisa, desconhecer que a democracia foi uma invenção arbitrária dos seres humanos, uma "obra de arte", gratuita, coisa que os humanos poderiam inventar em virtude de possuírem, como argumenta Maturana, uma emocionalidade cooperativa, mas não coisa que eles teriam que inventar necessariamente em virtude de qualquer lei, determinação ou condicionamento de natureza histórica.

O mundo social não evolui, a história não tem nenhum sentido e as sociedades não progridem de formas menos democráticas para formas mais democráticas a não ser enquanto se permite a ampliação do exercício da liberdade humana. Nesse sentido, o que houve, na maior parte do tempo, foi regressão, e não progressão, porquanto depois da invenção democrática dos gregos em geral experimentamos arranjos sociais que restringiram, ao invés de ampliar, o raio da esfera da liberdade humana e isso há até bem pouco.

A idéia de que a democracia é uma obra inacabável porque é resultado de um suposto processo histórico-civilizatório cuja marcha é interminável é uma tolice. A democracia é uma obra inacabável à medida que a expansão da liberdade humana for ilimitável. Somente nesse sentido pode-se falar de uma "evolução" da democracia, ainda que tenhamos observado freqüentemente na história exemplos de "involução" da democracia. Assim, por exemplo, os gregos escravagistas poderiam ter mais democracia – entre os seus homens livres – do que os ingleses capitalistas ou do que os russos socialistas, dois mil anos depois.

Em geral não se vê isso com clareza porque não se vê com clareza o sentido da política. Ao não ver que o sentido da política é a liberdade, deixa-se de perceber o que é próprio da política, o que pertence propriamente à sua esfera, e tende-se a incluir na esfera da política (e na esfera da democracia) entes que nela não podem habitar, como, por exemplo, relações sociais e econômicas de igualdade e equidade. Mas a democracia, como percebeu Hannah Arendt e não perceberam os defensores de uma suposta "democracia socialista", só vale para iguais. Por isso os escravos não poderiam mesmo participar da democracia grega e o fato desses não-cidadãos não poderem participar da Agora não descredencia o conceito grego de democracia, antes o afirma.

O fato de ser justa a preocupação com a igualdade e de julgarmos, corretamente, como indesejável uma sociedade escravagista nada tem a ver com a democracia em si mesma, e sim com um outro imperativo ético: o da universalização da cidadania.

Outra coisa são as conseqüências da democracia – ou do exercício da política como "pazeamento" – para o que se convencionou chamar de democratização da sociedade, aí incluído o sentido de inclusão universal dos seus componentes nas decisões coletivas, ou seja, a chamada cidadania política. Mas relações sociais democráticas, assim como democracia social e democracia econômica, são conceitos deslizados. Democracia é, definitivamente, política. A questão aqui é saber como a democracia (política) pode repercutir sobre a igualdade (social) ou sobre a repartição igualitária dos recursos (econômicos), o que não é a mesma coisa que dizer que só poderá existir "verdadeira" democracia à medida que existir igualdade social e econômica, como fazem, por exemplo, as esquerdas.

Por outro lado, no que tange à inclusão na cidadania política, mesmo neste caso tal inclusão, depois dos gregos e até hoje, sempre foi relativa e limitada, por exemplo, ao direito de delegar e de se fazer representar, ao direito de voto, de tempos em tempos, pelo qual se abre mão do direito de participar a qualquer tempo, e em tempo real, das decisões – coisa que, diga-se de passagem, não foi inventada pelos gregos e que não pode ser julgada como mais democrática do que os procedimentos que eles inventaram, só podendo ser justificada em virtude de impossibilidades técnicas (portanto, extrapolíticas) quando se alega que sociedades populosas não teriam condições de adotar mecanismos de democracia direta. Veremos mais tarde que essa não é a "verdadeira razão", já que sempre existiram meios de tornar cada vez mais freqüentes, diretos e participativos os processos de decisão (até com tambores e sinais de fumaça, para não falar, nos últimos dez anos, da possibilidade de fazer isso em tempo real usando recursos telemáticos). Ademais, parece haver aqui uma imprecisão factual: as comunidades gregas nas quais se praticava a política stricto sensu, quer dizer, a democracia não predominantemente delegativa – as poleis, incorretamente caracterizadas como Cidades-Estado – não eram tão pequenas assim. Segundo Finley, com o qual concordo, "ao eclodir a Guerra do Peloponeso, em 431, a população ateniense, então no seu auge, era da ordem de 250 mil a 275 mil habitantes, incluindo-se livres e escravos, homens, mulheres e crianças... Corinto talvez tenha atingido 90 mil; Tebas, Argos, Corcira (Corfu) e Acragas, na Sicília, 40 mil a 60 mil cada uma, seguindo-se de perto o resto, em escala decrescente..." (Finley, 1981: 19-20) – ou seja, o tamanho dos nossos atuais municípios.

A "verdadeira razão", aludida aqui, pela qual não se amplia a chamada cidadania política é a mesma razão pela qual não se exerce a política como "pazeamento" das relações, ou seja, porque algo está impedindo que isso ocorra. Porque a democracia, desde que foi inventada, é disputada por tendências que querem autocratizá-la e tendências que querem democratizá-la. A efetivação destas últimas tenderia a instalar o ‘estado de paz’ pelo exercício da política, o que não pode ocorrer enquanto houver incidência e reincidência predominantes das primeiras.

Ora, a democratização ou radicalização da democracia é um movimento em direção à política no sentido que os gregos atribuíram ao conceito. Nesse sentido, a utopia da democracia é a política, a criação daquilo que os gregos denominaram de polis, coisa que, incorretamente, foi caracterizada como sinônimo de Cidade-Estado. O que é próprio da polis, o que a caracteriza e distingue dos outros Estados antigos, é o fato de ela ser uma comunidade (koinomia) política.

A política é o fim, é o resultado da democracia radicalizada, e não um meio para se obter qualquer coisa. O fim, aqui, significa uma política democratizada, e nesse sentido pode-se falar que a radicalização da democracia passa pela democratização do que hoje se chama de política.

Não se quer obter nada com a política, a não ser os homens viverem como seres políticos, isto é, conviverem entre iguais (isonomia) numa rede pactuada de conversações em que a livre opinião (isegoria) é equitativamente valorizada em princípio (isologia). Ora, essa é a definição de democracia compatível com o sentido da política como liberdade. Se a democracia puder ser definida assim, então ela não passa de sinônimo de política.

Mas para a democracia poder ser definida assim é necessário que o que chamamos hoje de democracia seja radicalizada ou democratizada. Ou seja, para que a política possa ser definida como algo cognato e equivalente à democracia é necessário que o que chamamos hoje de política seja democratizada.

A democratização é um movimento, é um meio para se atingir um determinado fim, mas a política propriamente dita não, porquanto ela já é este fim.

A utopia da democracia é a liberdade, ou seja, a política; não a igualdade. A igualdade é a condição sem a qual não se pode exercer a política, quer dizer, a liberdade. Se os escravos, os estrangeiros e as mulheres de Atenas participassem da Agora, não poderia haver democracia na Grécia – a menos que eles deixassem de ser o que eram, ou seja, passassem a ser iguais aos cidadãos. Mas só então eles seriam livres no sentido político.

Isso significa que, se existe qualquer coisa como uma libertação dos excluídos da cidadania, essa libertação deve levar a uma inclusão na cidadania política para que se transforme em liberdade política. A liberdade política nada mais é do que o exercício da vida política.

Quem faz política, instrumentalmente, para obter qualquer coisa, não faz, na verdade, política. A política não é um instrumento, é um modo de efetivar a liberdade, atualizá-la no cotidiano da rede de conversações que tece o espaço, público, sendo-se, simplesmente, um ser político.

Referências a Autores

  • ARENDT – Os fragmentos citados de Hannah Arendt foram compilados por Ursula Ludz e publicados no livro "O que é Política?" (Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, 1998).
  • CASTELLS – A menção a Manuel Castells se refere à sua trilogia "A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura", sobretudo ao primeiro volume "The Rise of the Network Society" (The Johns Hopkins University Press, 1996), traduzido no Brasil como "A Sociedade em Rede" (Paz e Terra, São Paulo, 1999).
  • FINLEY – As estimativas populacionais para a Grécia Antiga foram recolhidas da introdução da coletânea organizada por M. I. Finley e intitulada "O Legado da Grécia" (Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1998).
  • FUKUYAMA – A citação de Francis Fukuyama é do livro "Trust: the social virtues & the creation of prosperity" (Free Press, New York, 1995), traduzido no Brasil como "Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade" (Rocco, Rio de Janeiro, 1996).
  • HOLLAND – As características da economia global como processo adaptativo, apontadas por John Holland no artigo de mesmo nome citado no capítulo do livro "O que há de novo sob o sol?", estão publicadas no livro "The Economy as an Envolving Complex System" (Santa Fe Institute, 1997). No entanto, elas foram transcritas aqui do livro de Ilan Gleiser, "Caos e Complexidade" (Campus, Rio de Janeiro, 2002; pp. 202-3).
  • JACOBS – A menção e a citação de Jane Jacobs são do livro "The Death and Life of Grate American Cities" (Random House, New York, 1961), traduzido no Brasil como "Morte e Vida de Grandes Cidades" (Martins Fontes, São Paulo, 2000).
  • PUTNAM – A menção a Robert Putnam se refere ao livro "Making democracy work: civic traditions in modern Italy" (Princeton University Press, 1993), traduzido no Brasil como "Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna" (Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1996).
  • Augusto de Franco
    augustodefranco[arroba]aed.org.br

Partes: 1, 2, 3


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