Este artigo resume as principais conclusões de uma pesquisa que examinou o relacionamento entre a pesquisa científica e tecnológica e o interesse público no Brasil, nas áreas de pesquisa agrícola e ambiental, farmacêutica e nas ciências sociais – pesquisas sobre trabalho e educação. A tese principal é que, em países em desenvolvimento, o principal parceiro e usuário potencial dos conhecimentos gerados pela pesquisa não é o setor privado, mas o setor público. Esta parceria entre instituições de pesquisa e agências públicas requer novas formas de institucionalização tanto da pesquisa quanto das agências de política científica, de maneira tal que seja possível aumentar a utilidade social da pesquisa, preservando ao mesmo tempo os padrões de liberdade acadêmica e qualidade que são essenciais em qualquer trabalho de natureza científica e tecnológica.
PALAVRAS-CHAVE: Ciência e Estado; Ciência e Sociedade; Sistemas de Inovação; Instituições Científicas; Políticas de Ciência e Tecnologia.
CÓDIGOS JEL O, O3, O38.
This essay summarizes the main conclusion of a research project that examined the relationships between science and technology and the public interest in Brazil, in the areas of agriculture, environment, pharmaceutical research and the social sciences – labor and education.
The main proposition is that, in developing countries, the main potential partner and user of research-based knowledge is not the private, but the public sector. The partnership between research institutions and public agencies requires new ways of organizing both the research and the science policy institutions, in order to increase their social usefulness and to preserve the freedom and quality standards which are essential in any scientific and technological endeavor.
KEYWORDS Science and State; Science and Society; Innovation Systems; Scientific Institutions; Science and Technology Policies.
JEL-CODES O, O3, O38.
Nos últimos anos tem havido muita insistência, na literatura especializada, sobre a necessidade de que as instituições de pesquisa não fiquem isoladas, e tratem de se vincular mais fortemente ao setor produtivo, tornando-se mais relevantes e conseguindo, ao mesmo tempo, mais apoio e recursos. Hoje já não se fala tanto em sistemas de "Ciência e Tecnologia" ou "Pesquisa e Desenvolvimento", mas sim, cada vez mais, em "Sistemas de Inovação". A suposição é que, nos países mais desenvolvidos, a integração entre as instituições científicas e tecnológicas e o sistema produtivo se dá de forma muito mais completa e natural do que nos países em desenvolvimento, onde o setor científico e tecnológico tenderia a ficar mais isolado. Isto deveria ser compensado por um esforço dirigido e sistemático para aproximar a pesquisa do setor produtivo, através de diferentes tipos de incentivos financeiros e inovações institucionais. Este artigo pretende mostrar que, ainda que a vinculação entre a pesquisa científica e o setor produtivo seja de grande importância, o principal parceiro da pesquisa científica em países com as características do Brasil é o setor público. Esta parceria já existe na prática, mas suas implicações e conseqüências mais amplas ainda não são tomadas em conta nas formas de organização das instituições de pesquisa científica, nem na maneira em que as instituições públicas de ciência e tecnologia se relacionam a elas.
2. O mundo da ciÍncia e o mundo dos interesses
Tudo que se possa fazer para aproximar a pesquisa do setor produtivo será muito bem-vindo. A dificuldade é que, com a globalização crescente da economia, as atividades de pesquisa e desenvolvimento das grandes corporações tendem a se localizar em alguns lugares privilegiados nos países centrais, enquanto que as pequenas empresas tendem a operar pela compra de pacotes tecnológicos fechados.
Por isto, a demanda por investimentos em pesquisa e desenvolvimento por parte de empresas privadas em países menos desenvolvidos não é grande, e será sempre insuficiente para absorver o potencial de pesquisa dos centros acadêmicos que procuram trabalhar na fronteira do conhecimento de suas respectivas áreas.
No entanto, é possível argumentar que o grande comprador e usuário da pesquisa científica e tecnológica não é necessariamente o setor produtivo privado, mas o setor público. São os governos que fazem guerras, produzem armamentos, respondem a emergências e catástrofes, cuidam da saúde pública, da educação, da ordem pública, do meio ambiente, do abastecimento de água, saneamento, energia, transportes públicos, comunicações, fazem mapeamentos e prevêem o tempo. Todas estas atividades requerem pesquisas e estudos permanentes, e grandes investimentos. Elas podem ser implementadas tanto por instituições governamentais como não-governamentais, mas o setor público é sempre responsável pela sua regulação e acompanhamento, além de ser o principal financiador e comprador.1
Quando existe uma interação bem estabelecida entre as instituições de pesquisa e o setor público, verificam-se importantes benefícios para ambos.
Com apoio científico e tecnológico mais consistente, as políticas públicas podem se tornar mais eficientes e eficazes; com uma vinculação mais próxima a atividades de interesse público, o setor de pesquisa se fortalece, obtendo mais reconhecimento, legitimidade e recursos, atraindo mais talentos e competência.
Se há interesse de parte a parte, seria de se esperar que este casamento de conveniência mútua pudesse sempre se dar sem maiores dificuldades. No entanto, o estabelecimento de formas adequadas de cooperação e apoio mútuo entre os pesquisadores e os responsáveis pelos governos e pela administração pública não é algo que se possa considerar como óbvio e natural. Ao contrário, a história da ciência e tecnologia modernas mostra que esta relação tem sido muitas vezes difícil, ainda que a proximidade tenha sempre preponderado, sobretudo nos países da Europa ocidental e nos Estados Unidos, que são as principais bases da ciência e da tecnologia mundiais. Estas dificuldades podem ser de duas ordens.
A primeira, mais familiar para quem vive e trabalha na América Latina, é o lugar relativamente secundário que ocupam os cientistas e pesquisadores em suas sociedades, sem maior participação nos centros de decisão, e atuando sobretudo como lobistas na defesa de suas visões de mundo e interesses profissionais. A segunda, no extremo oposto, são as tentativas de colocar os pesquisadores e suas instituições ao reboque de políticas e ideologias governamentais rígidas, sufocando, desta maneira, a liberdade de pesquisa e de expressão dos cientistas e pesquisadores, como ocorreu nos regimes totalitários da Rússia e Alemanha.2
A primeira dificuldade sempre dominou a visão da comunidade científica brasileira3 a respeito da própria experiência. Existe uma longa tradição de queixa do setor em relação aos governos pela pouca prioridade dada à pesquisa, pela limitação e instabilidade dos recursos, e pelo pouco ou nenhum uso que é feito dos conhecimentos e contribuições dos cientistas. A esta realidade os pesquisadores contrapõem uma outra visão sobre o que seria uma sociedade cientificamente avançada e racional, onde a tecnologia nacional alavancaria a indústria e a agricultura, a saúde pública seria atendida, os direitos humanos e sociais seriam preservados, os problemas de degradação ambiental seriam controlados, e as riquezas naturais seriam bem exploradas e colocadas a serviço da comunidade.
Esta maneira de entender a ciência como a portadora do progresso, da racionalidade e do futuro faz parte do contexto social e político em que a ciência se desenvolveu no mundo moderno desde o Renascimento, dentro de um processo muito mais amplo de racionalização e desenvolvimento das economias capitalistas, e tem sido retomada, nos últimos anos, pelas novas teorias do Capital Humano e da Sociedade do Conhecimento, que seria a característica central da economia globalizada de nossos dias. A ingenuidade com que a comunidade acadêmica abraça esta visão triunfante de seu próprio papel não consiste em acreditar no grande potencial da ciência e da tecnologia, que é inegável em termos gerais; mas sim em deixar de considerar a complexidade, contradições e armadilhas que existem na prática da implementação de políticas científicas, tecnológicas e educacionais em condições específicas, que acabam produzindo resultados inesperados.4 Em outro texto, tive a oportunidade de examinar como, desde os tempos coloniais, sucessivas gerações de médicos, engenheiros, advogados, sociólogos e economistas trataram de convencer a sociedade brasileira da contribuição inestimável que eles poderiam dar, se obtivessem o reconhecimento, a autoridade e o poder de decisão a que se julgavam com direito, pelos seus dons intelectuais e culturais (Schwartzman, 1997). Na perspectiva do tempo, é fácil ver como estas pretensões eram desmedidas, dadas as próprias limitações das ciências e dos conhecimentos de que estas elites dispunham; e como as grandes ambições de transformar e reformar a sociedade evoluíram para a defesa dos interesses privados das corporações profissionais e acadêmicas, sem perder, no entanto, o discurso revolucionário e messiânico dos primeiros anos.5 Processo semelhante ocorre com a comunidade científica e acadêmica, na medida em que crescem e se desenvolvem suas organizações corporativas.6
Esta visão crítica não deve ser entendida como uma tomada de posição no sentido oposto, ou seja, como uma negação da grande importância potencial das profissões e da ciência e tecnologia para o País. Ao contrário, o que se busca é entender melhor quais os limites e as verdadeiras possibilidades desta contribuição, para que ela se torne mais efetiva e relevante.
Se, por um lado, existe uma forte tendência, nos meios profissionais e acadêmicos, de supervalorizar seu próprio papel, existe por outro uma dificuldade bastante comum em perceber quando o setor público se move e se organiza para proporcionar recursos e aumentar o papel e a presença do setor de ciência e tecnologia no País. Seria possível dizer que estes momentos são relativamente raros em nossa história, mas não deixaram de existir, com a criação de institutos biológicos e agrícolas e as campanhas sanitárias na entrada do século XX, a criação da Universidade de São Paulo nos anos 1930, a mobilização para o esforço de guerra na Segunda Guerra Mundial, a criação do CNPq e CBPF nos anos 1950, a reformulação do sistema de ciência e tecnologia e de pós-graduação, a criação da FINEP e da EMBRAPA nos anos 1970, e a criação dos fundos setoriais nos anos mais recentes. Além destes eventos mais óbvios, existe uma série de iniciativas e instituições que, por diferentes razões, nem sempre são percebidos como fazendo parte do sistema de ciência e tecnologia, apesar de seu porte e importância: instituições como o Instituto Nacional de Tecnologia, o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo, o IBGE, o IPEA, o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o Instituto Militar de Engenharia; e iniciativas como o programa nuclear, o programa espacial e os programas mais recentes de produção de vacinas e medicamentos. Assim, o setor de Ciência e Tecnologia conta com órgãos e políticas governamentais ininterruptas desde pelo menos os meados do século, financiando pesquisas, proporcionando bolsas de estudo, criando e mantendo instituições, estabelecendo fundos e linhas de financiamento. Pode-se falar de inadequação das políticas e de fortes oscilações de orçamento, mas não de sua ausência.
Para entender em maior profundidade como se dá o relacionamento entre a comunidade científica e o setor público, examinamos algumas áreas em que existem linhas de atividade de forte conteúdo tecnológico por parte do Governo Federal. Estas áreas foram a da pesquisa agropecuária e meio ambiente,7 aonde existe uma grande tradição de trabalho aplicado e está surgindo um novo setor, o de pesquisas ambientais, onde as questões de cooperação internacional, propriedade intelectual e mobilização da sociedade convergem de forma especialmente aguda, sem que existam ainda políticas governamentais definidas a respeito; a da produção de medicamentos, e particularmente o Far-Manguinhos, da Fundação Oswaldo Cruz;8 onde está se desenvolvendo todo um trabalho de natureza científica e industrial em resposta a uma política definida de desenvolvimento de competência para a substituição de importações; e em duas áreas de pesquisa social, trabalho e educação,9 que se caracterizam pela existência de recursos públicos significativos, seja através do Fundo de Assistência ao Trabalhador10 para a primeira, seja através dos novos recursos nacionais e internacionais que permitiram a transformação do antigo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP),11 hoje responsável pela produção das estatísticas educacionais e de um amplo programa de avaliação de desempenho da educação em todos os seus níveis.
A existência de recursos públicos, novas fronteiras tecnológicas e fortes interesses sociais nestas áreas faz com que a atividade de pesquisa se organize de forma muito distinta da que ocorre usualmente na ciência acadêmica mais convencional. A pesquisa agropecuária sempre se desenvolveu no Brasil de forma relativamente isolada, o que se acentuou com a criação da Embrapa. A pesquisa ambiental, por outro lado, tem aplicações menos definidas, pela própria ausência de políticas públicas para o setor, mas é objeto de grande mobilização de interesses nacionais e internacionais, e se caracteriza por um alto envolvimento dos próprios pesquisadores em controvérsias de política pública. Novas tecnologias, especialmente aquelas associadas ao zoneamento ambiental através de sistemas de informação geográfica e elaboração de modelos complexos, vem exigindo novas competências, trabalho interdisciplinar e uma nova escala de recursos. A pesquisa de fármacos se desenvolve dentro de uma lógica industrial que requer a integração de toda a cadeia de estudos e pesquisa que vai da identificação de princípios ativos à elaboração dos fármacos e sua testagem, envolvendo supridores e prestadores de serviços externos e questões de propriedade intelectual que ainda são pouco usuais nos meios científicos brasileiros. Na área das pesquisas do trabalho, a existência dos recursos do FAT gerou toda uma rede de pesquisadores cujas fontes de financiamento e mecanismos de avaliação não são mais, somente, os da pesquisa acadêmica tradicional, mas também os das agendas às vezes contraditórias dos controladores do Fundo. Ao mesmo tempo, a disponibilidade de grandes bases de dados, mantidos pelo IBGE, Fundação SEADE e Ministério do Trabalho, abriu espaço para novas especialidades e competências, mais típicas de economistas e demógrafos do que das ciências sociais mais tradicionais. Na área da educação, o desenvolvimento das estatísticas educacionais e dos novos sistemas de avaliação também abriu espaço para uma nova geração de estudos e pesquisas que, tal como na área do trabalho, requer competências mais típicas de economistas, demógrafos e estatísticos do que as mais encontradas na área tradicional de pedagogos, sociólogos e educadores.
Tanto em um como em outro caso, as atividades de pesquisa não se organizam como uma área de atividade constituída de forma explícita, com recursos e procedimentos claros de contratação e acompanhamento de projetos, mas ocorrem na prática, pela utilização de recursos que podem ser muito significativos para os pesquisadores, mas insignificantes em relação às atividades centrais dos Ministérios a que servem.12 Em cada uma destas iniciativas, e em graus diferentes em cada caso, existem sempre alguns segmentos da comunidade científica que participam, enquanto que muitos outros olham com desconfiança o fato de se tratarem de iniciativas governamentais, com a participação ativa de Ministérios e instituições que nem sempre trabalham de forma coordenada com as agências usuais que lidam com ciência e tecnologia no País, nas quais a presença e a voz da comunidade científica está mais institucionalizada.
Não se trata, somente, de uma atitude de preconceito e desconfiança. De maneira geral, a cultura e as formas de trabalho típicas da área científica são muito diferentes das que predominam nas burocracias públicas e nas empresas privadas. Ainda que generalizações sejam sempre limitadas por importantes exceções, é possível caracterizar a cultura organizacional da área acadêmica e científica pela grande autonomia e liberdade de ação dos pesquisadores-seniores, pela flexibilidade nos mecanismos de controle das atividades quotidianas, e pela transparência e publicidade em relação aos resultados obtidos. Em contraste, as organizações burocráticas e empresariais tendem a ser mais fechadas, e isto pode levar tanto à perda da independência do pesquisador ante seus chefes e financiadores, quanto ao seu extremo oposto, mais típico talvez do serviço público, que é a falta absoluta de critérios externos de avaliação e padrões de qualidade. Estas diferenças de estilo e cultura organizacional parecem ser mais importantes, para explicar as tensões e dificuldades de relacionamento que ocorrem entre a comunidade científica e o setor público, do que as eventuais diferenças ideológicas que possam existir entre representantes dos dois setores.13
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