A cisão dos capitais e os perigos da
globalização contábil.
"O significado dos números contábeis depende do ambiente econômico em que a empresa opera [...]
Forçar a uniformidade das demonstrações contábeis das empresas, em diferentes ambientes,
é centrar-se na forma em vez de na substância".
(Shyam Sunder, 2001)
"Uma vez reconhecida a dimensão cognitiva da contabilidade, não podemos então,
ingenuamente, negligenciar os seus aspectos culturais.
Essa dimensão cognitiva da contabilidade merece maior investigação inter-cultural"
(Sunder & Yamaji, 1999).
As formas legais de organização das empresas têm possibilitado a utilização do capital sob duas vertentes principais que denominamos de capital "aberto" e capital "fechado". Nas últimas décadas, acentuaram-se as diferenças contábeis entre as duas vertentes, particularmente quanto aos objetivos do resultado contábil, o que consolidou a elaboração de relações paradigmáticas conflituosas (alocação-administração e avaliação-investimento). O processo de globalização contábil, conseqüência da formação das mega-corporações apátridas, tenta implementar instrumentos contábeis baseados em construtos fundados no paradigma da avaliação financeira dos resultados contábeis, disseminando o caos na doutrina contábil.
Neste trabalho, abordamos a composição legal das organizações como ponto de partida para a visualização do jogo econômico-contábil travado pelos países desenvolvidos em busca de adeptos aos seus fundamentos "científicos" alternativos. Constatamos em nosso levantamento que os mercados, em sua esmagadora maioria, ainda hoje, são constituídos da forma mais tradicional de organização: o capital fechado, e que eles ainda mantêm a forma tradicional de contabilidade, apesar das ruidosas tentativas de globalização dos construtos contábeis, a partir do modelo estabelecido pelo Império Americano.
Inicialmente, devemos esclarecer em que contexto as expressões "cisão", "capital fechado" e "capital aberto" são utilizadas neste trabalho. A "cisão", para os nossos propósitos, é visualizada em dois contextos diferentes: 1) naquele em que a fragmentação dos capitais nos mercados da "velha" e "nova" economias, a partir dos anos 80, criou cenários concorrenciais distintos, não obstante utilizarem o mesmo instrumento para fins de captação de recursos (mercado de capitais), e que tem forçado a construção de novos arranjos conceituais contábeis; 2) naquele em que a cisão é vista como algo que distingue mercado de capitais de não-mercado de capitais, e que tem provocado interpretações confusas dos construtos contábeis.
O foco de nosso trabalho está voltado para o segundo contexto. Por essa razão, neste trabalho, distinguimos apenas dois grupos de empresas: 1) aquele constituído de empresas que buscam seus capitais no mercado de ações, denominado de empresas de "capital aberto"; 2) aquele constituído de empresas que não captam seus capitais no mercado acionário, denominado de empresas de "capital fechado". A partir desta compreensão, preocupamo-nos em verificar a forma legal de organização das empresas em diversos países, bem como a sua relevância no seio dos mercados globalizados, observando a distinção existente entre os dois tipos de empresas e as suas características contábeis.
Se a empresa é constituída sob a forma de propriedade individual, sociedade por responsabilidade limitada, ou sociedade anônima, isso deve ter implicações diretas em suas políticas contábeis e gerenciais, cujos objetivos decisoriais podem ser completamente distintos, particularmente, em relação à mensuração contábil. Há, pelo menos, um caso de mensuração contábil em que a predominância de determinada forma de constituição da estrutura empresarial nos parece ser conseqüência de políticas contábeis previamente estabelecidas pelo modelo econômico-contábil vigente. Refiro-me, especificamente, à elaboração de agendas científicas que pretendem alterar os rumos da contabilidade tradicional, a partir de novos instrumentos de valoração, como é o caso das estruturas conceituais, em curso pelo FASB, nos Estados Unidos, além de outros países.
Não creio que seja possível visualizar corretamente as mutações internas por que passam as empresas, sem termos, a priori, uma visão global do cenário econômico e das políticas contábeis empreendidas pela tríplice aliança (corporações/auditores/organismos contábeis). Inúmeros pesquisadores contábeis têm-se dedicado às análises internas das empresas, sem formar um quadro inteligível de como e por que as estruturas empresariais seguem formas organizacionais diferentes nos diversos países, e por que algumas delas são prevalentes em função dessas políticas contábeis. Obviamente, fatores econômicos – como a globalização, por exemplo – tem determinado os rumos de como as empresas devem ser constituídas nesse novo cenário do século XXI. Mas, outros fatores, como a cultura, o meio ambiente e a sociedade, também têm interferido no formato da estrutura empresarial e na sua forma de expressar a mensuração contábil.
Por essas razões, admitimos as seguintes premissas básicas:
2.a) a atividade alocativa está mais associada às empresas de capital fechado, e a atividade avaliativa está mais associada às empresas de capital aberto;
A ausência de pesquisas específicas sobre essas políticas e sobre a falta de permeabilidade dos conceitos alocação e avaliação, em face dos novos cenários empresariais criados na pós-Revolução Industrial, tem possibilitado confusões interpretativas em relação aos reais objetivos da contabilidade. Equívocos lamentáveis parecem ocorrer, principalmente, nos países em desenvolvimento, quando, a pretexto de modernizarem seus instrumentos contábeis, se lançam, de maneira pouco cautelosa e até mesmo ingênua, na reprodução de padrões e técnicas contábeis produzidos na Europa ou nos Estados Unidos, como se eles possuíssem validade universal. Tal atitude tem transformado inúmeros organismos de normatização contábil dos países em desenvolvimento, regra geral, em parceiros incondicionais de um modelo contábil que eles próprios parecem desconhecer os seus fundamentos. É o que Sunder e Yamaji (1999) denominaram de "negligência ingênua". Não podemos responsabilizar esses organismos contábeis por isso, mas sim ao nosso próprio despreparo tecnológico e informacional. Por essa razão, é extremamente oportuno compreendermos os fundamentos teóricos das normas contábeis e seus objetivos, levando-se em conta os cenários culturais, políticos e sociais dos países, em especial, aqueles mais desenvolvidos.
Mercados empresariais analisados
Neste trabalho, abordamos a composição legal das organizações como ponto de partida para a visualização do jogo econômico-contábil travado pelos países desenvolvidos em busca de adeptos aos seus fundamentos "científicos" alternativos. Preocupa-nos, em especial, a lógica estabelecida por eles para implementar as normas contábeis atadas ao modelo econômico, cuja tônica é o mercado acionário, na medida em que negligenciam a existência de outras formas legais de organização empresarial (empresas de capital fechado), e que são preponderantes no cenário mercadológico atual. O discurso imperativo e barulhento é o da reformulação da contabilidade tradicional em favor do modelo econômico estabelecido. E um dos caminhos para tentar entender essa "lógica" anatrópica, creio eu, deve ser a partir do estudo da real formação das estruturas empresariais das economias desenvolvidas e a sua relação com o contexto econômico-contábil estabelecido.
Selecionamos, assim, três grandes mercados que detêm as maiores concentrações de empresas do planeta: América do Norte (Estados Unidos), Europa (Alemanha, França) e Ásia (Japão). Em seguida, verificamos como suas empresas são constituídas e de que forma essa constituição interfere em suas políticas contábeis. O objetivo principal é detectar o grau de interferência da tríplice aliança (corporações/auditores/organismos contábeis) na formação dos construtos contábeis, preconizados como imutáveis e universais. Nossa conclusão, contudo, é de que os fatores culturais ainda são relevantes no momento da definição dos construtos contábeis em cada estado nacional, mesmo com as persistentes e ruidosas tentativas de "globalização" de um padrão contábil único e sacrossanto.
Forma legal de organização das empresas norte-americanas
Muito pouco se tem abordado sobre a natureza legal dessas organizações. Recentemente, o governo dos Estados Unidos divulgou o Censo Econômico norte-americano, onde, pela primeira vez, pode-se compreender, com maior clareza, como as suas organizações empresariais são constituídas e de que forma elas interferem nos rumos da contabilidade. Os Estados Unidos possuem características muito peculiares concernentes à formação de suas estruturas empresariais e isso, explica, em parte, porque a ênfase contábil privilegia o resultado contábil da corporação para os mercados acionários.
A legislação norte-americana permite, pelo menos, seis tipos diferentes de organizações (ou corporações, expressão mais usual):
1. Corporações Gerais: "também conhecidas como "C" corporações, são as estruturas mais comuns de corporação. Uma corporação pode ter um número ilimitado de sócios (acionistas). Conseqüentemente, é escolhida, em geral, por aquelas companhias que planejam ter mais de 30 acionistas ou grandes ofertas de ações públicas. Na medida em que uma corporação é uma entidade legalmente separada, a responsabilidade pessoal do acionista é, geralmente, limitada à quantidade de investimento na corporação, e nada mais" (www.corporation.com). As corporações gerais são legalmente estabelecidas e a formação de seu capital se dá por meio de colocação de ações na bolsa de valores.
2. Corporações Fechadas: "é mais apropriada para quem pretende iniciar um negócio sozinho ou com um pequeno número de pessoas. Há poucas diferenças entre uma corporação geral e uma fechada. Uma corporação fechada limita os acionistas ao máximo de 30. Em adição, muitos estatutos de corporações fechadas exigem que os seus diretores ofereçam primeiro as suas ações aos acionistas da sociedade, antes de vendê-las a outros acionistas. Nem todos os estados da federação reconhecem as corporações fechadas" (www.corporation.com). É semelhante às sociedades por ações de capital fechado, no Brasil.
3. S Corporações: "é uma corporação geral que tem eleito um status tributário especial junto à Receita Federal (IRS) após a corporação ter sido formada. Ela é mais apropriada para os proprietários de pequenos negócios e empresários que preferem ser tributados como se eles fossem ainda firmas individuais ou sócios (partners). Quando uma corporação geral aufere lucro, ela paga o imposto de renda sobre o lucro. Se a companhia declara igualmente um dividendo, os acionistas devem informar o dividendo como resultado pessoal e paga mais imposto. A S corporação evita essa ‘dupla tributação’ (uma vez, na corporação e outra vez na pessoa física) porque todo resultado ou perda é informado somente na declaração do imposto de renda da pessoa física do acionista. Para muitos negociantes pequenos, a S corporação oferece o melhor dos dois mundos, combinando as vantagens tributárias da firma individual ou sociedade por responsabilidade limitada e uma vida duradoura de uma estrutura corporativa" (www.corporation.com). O número máximo de acionistas permitido é de 75.
4. Sociedades: é a associação de duas ou mais pessoas com interesse financeiro no negócio, em que a LLC (companhia por responsabilidade limitada) é uma das mais conhecidas e incentivadas. A LLC não é uma corporação e não possui acionistas, mas membros [cotistas] e oferece as mesmas vantagens. "Vários proprietários de pequenos negócios e empresários preferem a LLC porque elas combinam a proteção da responsabilidade limitada de uma corporação com o ‘repasse tributário’ de uma firma individual [...] Atualmente a LLC é reconhecida em todos os estados da federação, inclusive em Washington" (www.corporation.com).
Não comentaremos sobre as outras duas porque julgamos desnecessário. Para os nossos propósitos, especialmente por causa dos dados do Censo Econômico norte-americano, nós classificamos as organizações em apenas quatro grupos: C corporações, S corporações, propriedades individuais e sociedades (LLC e outras).
O poder econômico das corporações norte-americanas
De acordo com o último Censo Econômico, os Estados Unidos possuíam, em 1997, quase 21 milhões de empresas, cuja receita total estava na casa dos $18,5 trilhões de dólares, e empregavam 103,3 milhões de norte-americanos (veja Tabela abaixo).
As corporações, conhecidas como "C" corporações, representavam apenas 11% de todas as firmas norte-americanas, segundo o censo de 1997. No entanto, elas responderam por 75% de todas as receitas e empregaram 68% da mão-de-obra. Significa dizer que as corporações são sumamente importantes na vida econômica norte-americana. Dos $18,5 trilhões de dólares de receitas arrecadadas pelas firmas, as corporações faturaram, sozinhas, quase $14 trilhões de dólares. Além disso, dos 103,3 milhões de empregos, somente as corporações responderam por 71 milhões deles (veja as Figuras 03, 04 e 05, abaixo).
Esses dados revelam a forte concentração das atividades empresariais norte-americanas nas mãos das corporações. Elas são capitaneadas por uma rede de conglomerados verticalizados e multidivisionais, cujos modelos estruturais iniciaram-se nos anos 20, do século XX, por força da implantação do gerencialismo. Nenhuma nação do planeta possui uma estrutura tão concentrada e tão poderosa.
Curiosamente, outra peculiaridade dessa estrutura é que ela é financiada, em grande parte, pelo próprio cidadão norte-americano, por meio das bolsas de valores – NYSE, NASDAQ, S&P 500, etc. É a principal fonte de capitalização de suas indústrias, comércios e serviços. Não é necessário, portanto, frisar a importância vital que detém as bolsas de valores na economia norte-americana, bastando destacar a declaração do presidente da Nasdaq, Frank G. Zarb, de que "metade da classe média, pessoas trabalhadoras – Sr. e Sra. América – está agora na bolsa de valores. Vamos encarar isso. Em breve ela será Sr. e Sra. Mundo" (nov/2000).
É possível inferir, sem muito esforço, sobre a importância que as corporações norte-americanas atribuem ao resultado contábil e ao "embelezamento" de seus balanços patrimoniais, visto que essas informações interferem diretamente no status de suas ações junto à bolsa de valores. E a lógica paradigmática da avaliação-investimento foi desenvolvida exatamente para dar maior eficácia às essas informações contábeis, a partir de novos construtos, como, por exemplo, o conceito de "valor justo" (fair value).
Figura 01: Distribuição Percentual de Todas as Firmas USA, por Forma Legal de Organização: 1997
Figura 02: Distribuição Percentual das Receitas de Todas as Firmas USA, por Forma Legal de Organização: 1997
Figura 03: Distribuição Percentual dos Empregados de Todas as Firmas USA, por Forma Legal de Organização: 1997
Figura 04 (Tabela): Resumo do Total de Firmas, de Receitas e da Quantidade de Empregados USA, por Forma Legal de Organização: 1997
Todas |
Empregadores |
|||||
Firmas |
Receitas |
Firmas |
Receitas |
Empregados |
||
(Mil) |
($ Bi) |
(Mil) |
($ Bi) |
(Mil) |
||
Todos os Tipos de Firmas |
20.822 |
18.553 |
5.295 |
17.908 |
103.360 |
|
C Corporações |
2.390 |
13.892 |
1.870 |
13.801 |
70.982 |
|
Subchapter S Corporações |
1.979 |
2.977 |
1.517 |
2.920 |
21.446 |
|
Sociedades |
1.226 |
622 |
341 |
523 |
3.918 |
|
Propriedades Individuais |
15.123 |
872 |
1.467 |
475 |
5.699 |
|
Outras |
103 |
190 |
1.467 |
188 |
1.315 |
Fonte: U.S. Bureau of the Census, 1997 Economic Census, Company Summary Report.
Os outros tipos de organizações norte-americanas (propriedades individuais, LLC e S Corporações), não possuem tanta expressão no cenário econômico quanto às corporações, embora as propriedades individuais, que representam 73% das firmas constituídas, sejam a melhor opção encontrada por eles para a constituição de um pequeno negócio. Entretanto, a receita dessas propriedades ainda é pouco expressiva para a economia norte-americana, além de absorverem muito pouco da força de trabalho (6% apenas).
As S corporações são a segunda melhor opção do norte-americano no momento de constituir um negócio pequeno, por causa dos benefícios fiscais e do status de corporação. Do ponto de vista econômico, contudo, também elas ainda não são tão representativas quanto as C corporações.
Outra peculiaridade é a grande concentração de empresas e de mão-de-obra na atividade de serviços (veja Figura abaixo), caracterizando o que o sociólogo italiano, Domenico de Masi, (2000) chamou de "trabalhadores tecno-estruturados".
Figura 05: Número de Firmas e Empregados, por Divisão de Indústrias em todas as Firmas USA: 1997
Fonte: 1997 Economic Census.
No caso dos Estados Unidos, o Censo revela o elevado nível de automação e de informatização de suas indústrias, liberando seus empregados dos trabalhos braçais e direcionando-os para os serviços intelectuais.
A forma legal de organização das empresas alemãs
A economia alemã tem sido a mais expressiva de toda a Europa, embora tenha perdido o fôlego nesse início de milênio por causa do desaquecimento econômico mundial, provocado, em parte, pelos Estados Unidos. A organização legal de suas empresas é, surpreendentemente, o oposto daquela observada nos Estados Unidos, e nem por isso deixam de ser uma economia forte e altamente competitiva (veja as Figuras abaixo).
Figura 06: Número de Corporações por Ações versus Companhias por Responsabilidade Limitada, na Alemanha: 1996
Figura 07: Receitas das Corporações por Ações versus Companhias por Responsabilidade Limitada, na Alemanha: 1996
Fonte dos Gráficos acima: Statistiches Bundesamt, ed., Statistiches Jahrbuch 1996 für die Bundesrepublik Deutschland; apud: Masatoshi Kuroda, p. 234.
As companhias por responsabilidade limitada são a forma legal de organização das empresas (pequenas e médias) predominante na Alemanha. Somente as grandes empresas são constituídas por meio de corporações acionárias (via bolsa de valores). Segundo M. Kuroda, um dos estudiosos da contabilidade alemã, "no final de 1994, havia somente 562 ações de corporações alemãs listadas na bolsa de valores" (p. 233).
As companhias por responsabilidade limitada detêm 99% de todas as empresas constituídas no cenário econômico e respondem por 62% das receitas alemãs. Entretanto, o volume médio de vendas das corporações por ações foi cerca de 100 vezes o volume médio das companhias por responsabilidade limitada. Portanto, o desempenho das corporações alemãs, que representam apenas 1% de todo o universo de empresas, é muito expressivo por causa de sua capacidade de geração de receitas (38%), o que demonstra alto poder de automação e informatização. Isso faz com que as ações das corporações alemãs tenham alta liquidez e sejam muito competitivas, sendo bastante dispersas na economia.
A Alemanha, diferente dos Estados Unidos, "desde 1948, tem usado os princípios da economia de mercado socialmente responsável para gerenciar sua economia (soziale Marktwischaft) [...] Eles rejeitam o velho estilo laissez faire e, igualmente, a intervenção do governo [...] esse sistema econômico parece ser bem sucedido na promoção do bem-estar da população" (Kuroda, p. 233).
Outro fator de destaque, no caso alemão, é que "não existe a atividade de normatização de padrões contábeis na Alemanha como é aplicada e compreendida nos países anglofônicos. Essa situação não mudou nem mesmo com a recente (1998) organização do Comitê de Padronização Contábil Alemão" (Kuroda, p. 235). Tal comportamento, alicerçado em princípios racionalistas próprios, se justifica por causa da formação cultural do povo alemão, cuja base legal deflui do direito civil, diferentemente dos ingleses, onde os fundamentos jurídicos são baseados no direito consuetudinário. A contabilidade e as demonstrações contábeis, por razões culturais, são organizadas pelo Código Comercial Alemão, desde 1897 até hoje, e não por padrões contábeis, como nos Estados Unidos. Ressalta-se também, que contabilidade alemã, diferente da anglo-americana, é planificada.
O modelo francês de organização legal das empresas
De acordo com S. Lawrence (1996) a "França tem organizado suas atividades empresariais, tradicionalmente, por meio de propriedades familiares, mas, mais recentemente, as companhias limitadas têm se tornado uma forma mais significativa de empresa econômica" (p. 29). Possivelmente, a França é o país que tem a maior diversidade de formas legais de organização de empresas. De acordo com a nomenclatura do INSEE (Instituto de Estatísticas e Estudos Econômicos), são nove categorias jurídicas . Para os nossos propósitos, no entanto, classificamos as empresas francesas da seguinte forma:
A estatística das empresas, apurada pelos institutos franceses, é complexa e leva em consideração diversos aspectos: jurídicos, contábeis, trabalhistas, fiscais. Por exemplo, a expressão grupo de empresa "não é uma definição jurídica universal legal, na França. O direito de sociedade, o direito do trabalho, o direito contábil e o direito fiscal, retém, cada um, a definição de grupo restrita aos seus campos de aplicação" (Eric Vergeau e N. Chabanas, p. 4).
Se o foco for as informações contábeis das empresas, há um sistema responsável pelo levantamento de dados, denominado Sistema Unificado de Estatísticas das Empresas (Système unifié de statistiques d’entreprise-SUSE). Esse sistema classifica as receitas das empresas segundo seus formulários de declaração fiscal. Os tipos de formulários diferem de acordo com as seguintes categorias de receita: BIC, BCN e BA. Ou seja, BIC-Bénéfices Industriels et Commerciaux (receitas industriais e comerciais); BCN-Bénéfices Non Commerciaux (receitas não comerciais); e, por último, BA-Bénéfices Agricoles (receitas agrícolas). A partir desse sistema unificado surge uma base de dados global e coerente, onde é possível detectar as categorias jurídicas das empresas (classificadas somente em Individuais e Societárias, não fazendo distinção entre as SARL, SAs, e outras), o número de empresas, por setor, o número de empregados, por setor, etc. As estatísticas setorizadas são possíveis porque a contabilidade francesa, aos moldes da alemã, também é planificada.
Além do grau de complexidade de seus levantamentos estatísticos, várias informações, consideradas sigilosas pelos franceses, não são divulgadas por seus institutos de estatística, o que tornou tremendamente trabalhoso coletar dados globalizados sobre suas empresas. Algumas conclusões apresentadas aqui só foram possíveis a partir de documentos e publicações (working paper) feitas pelos franceses.
A França, de acordo com o levantamento de 1997, possuía cerca de 2,7 milhões de empresas (quase um décimo do registrado nos Estados Unidos). Os setores econômicos com as maiores concentrações de empresas são o industrial e comercial (veja Figura abaixo). Há também grande concentração de empregados nessas áreas.
Figura 08: Número de empresas francesas, de acordo com a classificação fiscal (1997).
Categoria Fiscal |
Regime |
Número de Empresas |
Receitas Industriais e Comerciais - BIC |
|
100.000 1.272.000
642.000 |
Receitas Agrícolas (BA) |
|
n.d. 100.000 120.000 |
Receitas não comerciais (BNC) |
|
446.000
19.000 |
Total |
2.699.000 |
Fonte: adaptado de Alain Benedetti, p. 1112, Statistique économique et comptabilité d’entreprise (2000).
A expressividade das PME na economia francesa
De acordo com Éric Vergeau e Nicole Chabanas, "entre 1980 e 1995, a quantidade de grupos explodiu, na França, sob a impulsão dos micro-grupos, com menos de 500 empregados: eles eram 600 em 1980, 1.200, em 1989, e mais de 5.000, em 1995 (veja o Gráfico abaixo) [...] Pelo tamanho, inferior a 500 empregados, e por sua estrutura, os micro-grupos se aproximam das pequenas e médias empresas (PME). A escolha desse tipo de organização, relata Loiseau, "é um meio pelo qual o chefe da empresa pode acompanhar as mutações que vão de encontro com sua sociedade, notadamente, para garantir sua comunicação entre as milhares de condições [...] A estrutura dos micro-grupos pode ser muito complexa, aliando vários níveis de controle e uma instalação em vários domínios da atividade" (p. 01). Sob esse aspecto, a formação das empresas francesas, baseada em pequenas unidades, muito difere daquela existente nos Estados Unidos. Os franceses, ao contrário dos norte-americanos, acreditam que os micro-grupos são mais fáceis de serem gerenciados.
Figura 09: A explosão do número de grupos de empresas francesas
* Micro-grupo: menos de 500 empregados – Pequenos grupos:
de 500 a 1999 empregados – Grupos médios: de 2.000 a 9.999
empregados.
Os grandes grupos, 10.000 e mais, são tão pequeno número que
não são representados no Gráfico.
** Resultados provisórios.
Fonte: enquête "Liaisons financières", Insee; apud:
Vergeau e Chabanas, p. 01, 1997.
Na outra extremidade da escala, o número de grandes grupos, que compreendem mais de 10 mil empregados, praticamente não variou no período de 1980-1995" (p. 01). O que se percebe, a partir dos dados apresentados pelos pesquisadores, é um aumento significativo na quantidade de filiais das grandes empresas. "Os grandes grupos, aqueles que têm mais de 10 mil empregados, representam, sozinhos, mais de um quarto da mão-de-obra, a metade do capital fixo e a metade dos lucros brutos de exploração do sistema produtivo francês" (Vergeau e Chabanas, p. 02-03). O restante cabe às micro, pequenas e médias empresas (PME).
Segundo Anne Skalitz (2002), em 1999, 650 empresas estavam listadas na Bolsa de Paris. Cerca de 80% dos micro-grupos, cotados em bolsa, operavam com as bolsas orientadas para a "nova economia" (Nouveau Marché). Apenas os grandes grupos, cerca de 90% deles, operavam com o mercado primário. Os grandes grupos estão concentrados, especialmente, em apenas três setores: automobilístico; energia; e bens intermediários (p. 01).
Por outro lado, o relatório do FMI (2000) concluiu que "a pequena capitalização das bolsas de valores, e a pequena escala de capitalização por meio de venture (associação de empresas), na França, não parece estar ligado a problemas específicos da estrutura ou funcionamento dos mercados financeiros. A liberalização desses mercados, desde a metade de 1980, tem sido extensiva e alcançada pela modernização da infraestrutura financeira" (p. 49). Resultados semelhantes foram demonstrados pelo Relatório da Comissão Européia (Enterprice Policy, 2001), quando apontou o acesso a financiamentos por meio de mercado de ações, como uma das fragilidades das empresas francesas.
Pode-se interpretar as colocações do FMI e da Comissão Européia como sendo uma opção da França dimensionar o seu próprio mercado acionário, visto que ele não possui defasagens tecnológicas ou problemas de infraestrutura. Assim, a principal fonte de financiamento do capital das empresas francesas não é o mercado de ações.
A cultura empresarial japonesa e a noção de resultado contábil
Apesar da impossibilidade de acesso aos dados estatísticos sobre a forma legal de organização das empresas japonesas, pode-se presumir, pelos relatos de H. Yamaji, que ela está igualmente concentrada na forma de capital fechado. De acordo com esse pesquisador, três fatores principais são determinantes da diferença de comportamento das empresas japonesas em relação ao Ocidente: mercado de trabalho; mercado de capitais; e mercado de produção (H. Yamaji, 1999: 35-45).
O mercado de trabalho é regido por princípios que sustentam a estrutura empregatícia japonesa, cujas bases são: o emprego vitalício; os salários escalonados de acordo com a idade do trabalhador; e o sindicato-empresa.
O mercado de capitais é definido por Yamaji, segundo dois pontos distintos: os mercados de dívidas [capital de terceiros] e de patrimônios [capital próprio]. Uma das formas de captação de recursos pelas empresas é o financiamento indireto (capital de terceiros). Segundo os dados do Banco do Japão, até 1985, a captação de financiamentos em bancos, seguradoras, trustes e bancos públicos alcançava quase 90%, enquanto que recursos provenientes de bolsa de valores, capital estrangeiro e mercados, respondiam pelos 10% restantes. As bolsas de valores, sozinhas, respondiam por apenas 4,3% de todas as formas de captação de recursos financeiros. Isso significa dizer que os japoneses são conservadores em matéria de aplicação de suas poupanças, eles quase nada aplicam em bolsas. Os empréstimos bancários, entre 1965 até 1969, já representaram cerca de 75% das fontes de financiamento do capital industrial. No entanto, apesar da concentração nessa modalidade de captação de recursos, a predominância na forma de autofinanciamento, por meio da criação de reservas, subsídios, depreciação e aumento de capital, indubitavelmente, é muito maior. Observem o Quadro abaixo.
Figura 28: Estrutura do aumento dos fundos pelas firmas japonesas (todas as indústrias)
Períodos |
1956/60 |
1961/65 |
1966/70 |
1971/75 |
1976/80 |
1981/85 |
1986/87 |
Patrimônio |
34,0 |
35,1 |
33,8 |
32,0 |
50,2 |
70,8 |
75,0 |
Reserva |
5,3 |
3,4 |
6,1 |
5,1 |
8,8 |
12,3 |
12,3 |
Subsídios |
*** |
*** |
4,9 |
4,5 |
4,6 |
2,0 |
2,7 |
Depreciação |
18,1 |
22,0 |
19,6 |
19,3 |
30,0 |
45,4 |
44,0 |
Aumento de Capital |
10,6 |
9,7 |
3,3 |
3,0 |
6,9 |
11,3 |
16,1 |
Dívidas |
66,0 |
64,9 |
66,2 |
68,0 |
49,8 |
29,2 |
25,0 |
Títulos |
6,8 |
6,4 |
3,8 |
6,0 |
6,9 |
10,2 |
19,7 |
Empréstimos |
32,6 |
36,1 |
31,5 |
36,2 |
17,9 |
11,4 |
1,4 |
Etc |
22,6 |
22,4 |
30,9 |
25,8 |
25,0 |
19,0 |
3,9 |
Total |
100,0 |
100,0 |
100,0 |
100,0 |
100,0 |
100,0 |
100,0 |
Fonte: O Banco do Japão, Management Analysis of Some Important Firms; Katsuhiro Matsumara, "Some Issues of Indirect Financing in Modern Japan". Ritsumeikan Keieigaku 28, nº 4-5 (January, 1990); apud: H. Yamaji, p. 40.
Os dados sobre as micro-empresas concernentes à forma de financiamento das firmas japonesas, mostrados no Quadro acima, revelam que, até 1975, a proporção de autofinanciamento para o financiamento total, era somente de 35%, e uma parte considerável do financiamento do patrimônio, após 1975, foi gerada internamente pelas empresas. As firmas japonesas, após a Segunda Guerra Mundial, simplesmente, inverteram a forma de financiar o capital de suas empresas, antes por meio da contratação de dívidas e, atualmente, por meio de retenção de reservas, subsídios, e aumento de capital. O grau de endividamento delas é muito baixo.
Portanto, as empresas japonesas, de acordo com os dados acima, possuem uma forte estrutura de autofinanciamento. E quando elas possuem o capital aberto, distribuem poucos dividendos. "Talvez não devêssemos nos surpreender com o fato de que as corporações japonesas estejam mais voltadas para servir os interesses de seus empregados do que de seu acionistas" (H. Yamaji, p. 47). Yamaji ressaltou ainda que:
"embora as firmas se financiassem principalmente por meio de empréstimos bancários, ainda permanecia o receio de que os investidores estrangeiros pudessem ganhar o controle da economia japonesa, via mercado de capitais. Nas décadas seguintes à guerra, o governo japonês não permitia aos investidores estrangeiros negociarem livremente nas bolsas japonesas. Somente em 1960, o governo foi gradualmente permitindo o livre comércio em mercados patrimoniais. Essa licença para comerciar patrimônio foi acompanhada por outro fenômeno conspícuo: o cruzamento de companhias holding, por meio de ações, entre firmas japonesas também começou a aumentar. As empresas japonesas procuravam proteger suas independências do controle indesejado dos estrangeiros, ao manterem ações uma das outras" (p. 43).
Quanto ao mercado de produção, de acordo com Yamaji, o Japão possui duas espécies de grupos de corporações (Keiretsus). Cada grupo de corporação financeira (horizontal) é organizado em torno de um banco de uma cidade grande que funciona como seu centro financeiro. Em cada grupo de corporação industrial (vertical), uma firma industrial grande funciona como seu centro técnico e financeiro (pp. 43-45). Yamaji relata ainda que: "as grandes corporações americanas usam uma estrutura divisional ou subsidiária de corporação associada, ou mesmo não-associada, que negocia dentro da corporação. Em contraste, as grandes firmas japonesas tendem a subsidiar suas subsidiárias como corporações legalmente independentes. Essas corporações independentes podem repetir o mesmo processo para subsidiar outras corporações legalmente independentes" (p. 45). A estrutura verticalizada das grandes empresas norte-americanas é diferente daquela das empresas japonesas tanto no formato quanto no processo decisório. Yamaji relata que:
"enquanto o sistema americano de subsidiárias e de divisões de uma corporação, sob o controle óbvio de um chefe-executivo, é chamado de ‘mão visível’, o sistema japonês de corporações supostamente independentes, e que são, de fato, coordenadas rigidamente sem um chefe-executivo claramente identificável em toda a estrutura, tem sido denominada de sistema de ‘aperto de mão invisível’ (p. 45).
Do ponto de vista sócio-econômico, o sistema japonês de corporações independentes nos parece menos suscetível a fraudes e corrupções porque todo o processo decisório se distribui de maneira mais uniforme e menos cumulativo – menor concentração de poder.
Mercados financeiros na Europa
O relatório do FMI (2000) aponta ainda que "nas bolsas de valores dos EUA, a capitalização de firmas digitais tem crescido drasticamente nos últimos anos. No agregado, tais companhias têm um valor de mercado próximo de US$ 5 trilhões, e contabilizam cerca de metade da capitalização de mercado das 100 mais importantes companhias listadas em bolsa. Na Europa, essa ação ainda é somente um terço, e nenhuma das grandes companhias é de tecnologia própria de informação – elas são todas companhias de telecomunicações (Tabela III.11). Além disso, a despeito do crescimento recente das bolsas de valores da Alemanha e da França, elas ainda são pigméias, comparadas à US NASDAQ" (p. 49).
Figura 10: (Tabela III.11). Tamanho das Bolsas de Valores Selecionadas no início de Outubro/2000 (em bilhões de euros)
Capitalização |
Número de firmas listadas |
Capitalização |
Número de firmas listadas |
||
Estados Unidos |
|||||
S&P 500 |
14.341 |
500 |
NASDAQ |
6.369 |
4.424 |
França |
|||||
CAC-40 |
1.220 |
40 |
Nouveau Marché |
33 |
145 |
Alemanha |
|||||
DAX |
865 |
30 |
Neuer Markt |
192 |
318 |
Europa |
|||||
Euro STOXX |
2.790 |
50 |
EASDAQ |
47 |
63 |
Fonte: Bloomberg; apud: IMF Report, p. 49, 2000.
Em 1999, a NASDAQ manteve um volume anual de ações em torno de 270 bilhões (volume de papéis negociados), cerca de 1,1 bilhões de ações negociadas, por dia. O volume de dólares alcançou $ 11 trilhões, em 1999, transformando a Nasdaq no maior mercado do mundo, em termos de dólares, além de promover uma capitalização de mercado da ordem de $ 5,2 trilhões (Market Performance & Highlights, Section 3, p.3-1, Nasdaq). Esses dados são realmente espetaculares, comparados com o resto do mundo.
Portanto, a Europa ainda se mantém muito distante dos Estados Unidos em termo de opção pelo mercado de ações. As empresas européias continuam mantendo a forma tradicional de captação de recursos para financiar seus ativos (bancos e governos). Essa é uma característica de, praticamente, todos os países europeus, com raras exceções. A maioria das empresas européias opta por sociedades de capital fechado e, muitas vezes, de responsabilidade limitada, o que demonstra serem mais conservadoras no momento de decidir qual a forma de constituição de suas empresas. Não significa afirmar que os mercados acionários europeus sejam insignificantes. Nos últimos anos, eles têm crescido e se fortalecido de maneira expressiva, embora não possam ser comparados ao mercado acionário norte-americano. Também não significa afirmar que sua economia não seja forte e estável, ao contrário. A soma do PIB de todos os países da Europa é próxima do PIB estadunidense.
A Ásia, por outro lado, que possui mercados acionários emergentes, também tem o mesmo perfil. Suas empresas também são constituídas, regra geral, de capital fechado.
É possível concluir, com base nos dados históricos apresentados, que a grande maioria dos países europeus e asiáticos ainda mantém, preponderantemente, a forma legal de organização de suas empresas baseada no "capital fechado". Somente os Estados Unidos possuem, de maneira exuberante, a forma de organização voltada para o "capital aberto".
Embora os Estados Unidos sejam os únicos a manter expressivamente essa forma de organização, há de se considerar, contudo, o seu poder econômico no cenário internacional, além do poder de interferência nos mecanismos econômicos e contábeis de outras nações. Um dos mecanismos de interferência utilizados por eles é, notadamente, a implementação de normas (padrões) contábeis, em nível internacional, defendidas por seus institutos contábeis, além da obrigatoriedade do cumprimento de suas normas contábeis domésticas, no caso de as empresas estrangeiras operarem no mercado norte-americano.
Afirmar, contudo, que apenas os Estados Unidos têm interesses na implementação dos padrões contábeis seria uma inverdade. Em quase todos os países há formas de corporações semelhantes àquelas norte-americanas e que também têm interesse na padronização contábil internacional. Essas corporações transnacionais apátridas, cujos interesses estão muito além das fronteiras de seus países, dependem essencialmente de investidores (institucionais ou não). Há casos, por exemplo, em que o capital de uma empresa provém de outro país, como ocorreu com a empresa francesa Coflexip, que, ao abrir seu capital, foi obrigada a adotar os princípios contábeis norte-americanos (USGAAP), porque 50% de suas ações foram emitidas somente nos Estados Unidos, em 1992 e 1993 (Philippe Touron, 2002, p. 19).
Pois bem, para os efeitos contábeis, é possível identificar esses grupos de corporações como sendo um segmento econômico distinto daquele formado por empresas de capital fechado? Acreditamos que sim, uma vez que a lógica conceitual do resultado contábil pretendido por essas corporações muito se diferencia daquela das empresas de capital fechado. Por outro lado, o resultado contábil marginalista (despesa – receita), que é o fundamento operativo dos mercados de capitais, vem dando sinais de esgotamento. E é exatamente esse resultado que tem viabilizado amplas margens de manobras por parte do top business, conduzindo-o ao descrédito (manipulação dos números). Um dos fatores relevantes em discussão está centrado na incapacidade de o custo contábil expressar corretamente a nova dinâmica do capital aberto. Outros fatores também estão sendo estudados, como:
1. implementação do fluxo de caixa futuro descontado, cuja finalidade é tentar demonstrar a continuidade financeira da corporação ao longo do tempo.
2. atualização dos valores do balanço patrimonial (ativo e passivo) por meio do conceito de valor justo (fair value).
3. o desenvolvimento de um novo resultado contábil, denominado pelos ingleses de segundo resultado contábil, baseado nas operações financeiras decorrentes de derivativos e outros instrumentos financeiros.
4. além disso, a tentativa de estabelecer um discurso coerente em torno dessas medidas a partir de um outro conceito amplo: o da governança corporativa, que pretende suavizar e garantir as relações negociais com o meio social.
A justificativa para tais alterações se baseia no fato de que as dimensões contábeis tradicionais não conseguem mais expressar a realidade social das corporações (estado de confusão entre o conhecimento objetivo da realidade e o conhecimento contábil objetivo).
Na verdade, o capital aberto, a partir das últimas décadas, pode ser identificado como algo verdadeiramente anônimo, disseminado no seio de algumas sociedades. A globalização econômica dos mercados e as mega-fusões sem fronteiras permitiram, na década de oitenta e início de 90, romper com certos estigmas e preconceitos concorrenciais, em busca da recuperação financeira dos conglomerados e de maiores espaços para seus mercados. As fusões fizeram com que o capital se concentrasse ainda mais, aumentando a sua escassez, especialmente, no segmento da "velha" economia. Essa escassez é um dos motivos pelos quais o capital perdeu o caráter puramente alocativo (resultado operacional) para se transformar em algo avaliativo (resultado mercadológico-financeiro), provocando um profundo impacto na contabilidade tradicional. Isso não significa, entretanto, um aprimoramento evolutivo do financiamento dos meios de produção de capital, mas, ao contrário, uma forçada adaptação à nova realidade estrutural enfrentada pela "velha economia" por causa, dentre outros fatores, da "nova economia" que tem concentrado razoável fatia dos capitais. Os fatores mencionados acima, portanto, a nosso juízo, vêm ao encontro da tentativa de equacionar a escassez de capital por meio de artifícios contábeis.
Por essas razões, é necessário repensar a contabilidade, repensar os construtos contábeis sob um outro ângulo onde os novos cenários possam ser compreendidos com maior transparência. A doutrina contábil tradicional tem sofrido abalos na tentativa de reestruturar as recentes mudanças no campo econômico. Tem-se tentado incorporar à doutrina construtos contábeis que, pela natureza objetiva dos mercados, onde atuam os dois segmentos, e por suas características político-culturais (capital aberto e fechado), têm se revelado verdadeiramente incompatíveis entre si. O que constatamos são padrões contábeis cada vez mais distantes da realidade das empresas de capital fechado, e que são ainda a grande maioria nos países aqui tratados.
Por outro lado, falar em padrões contábeis no cenário alemão, francês e asiático não parece ser tão confortável quanto o é no cenário anglo-americano. Em termos contábeis, o que é doméstico para os norte-americanos, regra geral, não o é para o resto do mundo. E isso tem criado dois ambientes contábeis distintos e perigosos para o resto do mundo: 1) a tentativa de preservação das suas regras contábeis domésticas; 2) a tentativa de absorção e adequação de regras contábeis moduladas pelo Império Americano, ainda que, em princípio, tais regras sejam estranhas e confusas internamente. (Aqueles países que não admitem o modelo norte-americano são rotulados de "tradicionalistas"). Embaraçosa situação tem sido criada especialmente para os organismos contábeis domésticos de regulamentação que se vêem entre a contabilidade tradicional e aquela empreendida pelos norte-americanos, cujos conceitos tradicionais, como, depreciação, custo histórico e outros já são considerados figuras do passado. Criou-se, assim, uma torre de Babel onde construtos doutrinários são substituídos por construtos globalizados. Não raro são os movimentos em favor da criação de novos organismos de representação contábil em defesa de conceitos "globalizados" e pronunciando em nome da ciência da contabilidade, como se tivéssemos numa transição científico-conceitual e devêssemos acordar do sono letárgico. Que estamos numa transição social não há dúvidas, e a contabilidade deve estar atenta a isso. Mas, não é exatamente isso que estamos presenciando, mas, a inversão dos valores contábeis em favor de uma conduta estratégica estabelecida por um determinado nicho de mercado, com o objetivo de imposição de regras amplas e irrestritas, ou seja, a globalização de construtos contábeis, a partir de concepções de estrutura de mercado muito distintas entre si. Corre-se o risco de se adotar construções contábeis totalmente inapropriadas a determinados cenários econômicos regionais apenas para atender uma minoria (forte e ruidosa). Nesse sentido, o discurso dos organismos contábeis internacionais ressoa como globalizador e sacrossanto para a ciência contábil como um todo, colocando-a em xeque, o que nos parece uma exorbitância. É necessário conhecermos, antes de tudo, que tipo de transição está ocorrendo e quais são seus impactos na ciência da contabilidade. Perceber as transformações econômicas do processo produtivo é relevante para se compreender os caminhos da "velha economia" no campo da manutenção do capital, cujos instrumentos contábeis se baseiam em artifícios (contabilidade criativa), e que são, regra geral, inúteis às empresas de capital fechado.
Em síntese, se o nosso discernimento acerca da cisão de dois mundos contábeis estiver correto, então, devemos examinar detidamente as pretensões dos organismos contábeis domésticos e internacionais naquilo que se refere à globalização de construtos contábeis. Tais pretensões implicam a reformulação de todo o sistema educacional contábil além da fixação de uma nova realidade profissional, que poderá assumir vieses conceituais incompreensíveis do ponto de vista regional, por causa das características preponderantes da forma legal de organização baseada no capital fechado.
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Valério Nepomuceno
Contador, auditor independente, pesquisador, membro e diretor cultural da Academia Brasileira de Ciências Contábeis, membro do IBRACON.