Miriam Lifchitz Moreira Leite (1)
RESUMO
Se é preciso por fim às guerras, quem o fará e como? Imagens fotográficas e cinematográficas podem provocar repugnância e/ou compaixão, mas também ceticismo, diante de omissões flagradas. Assim como algumas imagens são tomadas como conhecimento integral, seu poder enfraquece com o tempo. As narrativas é que podem levar a compreender uma situação. As fotos limitam-se a nos perseguir. PALAVRAS CHAVE Fotografia, Narrativas, Sofrimento, Guerras.
ABSTRACT
If we have to put an end to wars, who is going to do it? And how? Photographs can communicate distaster and/or pity, but also scepticism in front of flagrant omissions. Some images are perceived as total knowledge, but their force weakens as time goes by. Only narratives can communicate a situation. Photos limit themselves to pursue us. KEYWORDS: Photography, narratives, suffering, wars.
"Se avançarmos umas cem jardas estaremos salvos, se ficarmos aqui mais dois minutos estaremos mortos," era o pensamento de todos. Não se sabe por que ocorrem guerras e revoluções. Se a guerra começou, ou será, ocorreu algo contrário à razão e à natureza humana. Milhões de homens perpetraram contra os outros crimes, fraudes, traições, roubos, falsificações, questões de dinheiro falso, assaltos, incêndios e assassinatos como não se tinham verificado em séculos nos anos de todas as cortes do mundo, mas que os cometem na ocasião não consideram crimes. Milhões de homens renunciando a seus sentimentos e a sua razão avançaram do oeste para leste para massacrar seus irmãos exatamente como nos séculos anteriores hordas de homens vindos do oriente para o ocidente massacraram seus irmãos. Leon Tolstoy 1869 Guerra e Paz (1812)
Em meio a tudo isso, é tão difícil fazer uso das palavras como reportar os pensamentos. A guerra esgotou as palavras, elas se enfraqueceram, deterioram-se... Henry James New York Times 1915.
24/09/1932 O ser está acabando. Engavetada no bosque, a pálida e sonolenta, a eterna poeira do Chaco, torna visíveis as rugas do vácuo poroso que ainda bombeiam nossos pulmões. É a ferrugem desta luz fóssil que se retorce na canhada, exalando o surdo alarido de seus revérberos. Nossas percepções se vão anulando num embotamento crescente. O contorno se derrete e se achata. Flutuamos e nos enterramos nesta fulguração girante, fétida, opaca. Apenas o sofrimento dura. O sofrimento tem uma rara vitalidade.Augusto Roa Bastos. Filho do Homem 1965.
Os factos sonham ser palavra, perfumes fugindo do mundo. Um dia, porém, desembarcou a guerra, capaz de todas as variedades de morte. Em diante, tudo mudou e a vida se tornou demasiado mortal. Mia Couto. Estórias Abensonhadas, Moçambique,1994.
Os homens não são capazes de eliminar a morte mas,sem dúvida, estão em condições de eliminar o morticínio recíproco. A Segunda Guerra Mundial alterou a situação européia – ela perdeu sua posição de grupo dirigente da humanidade. Encontramo-nos perante a necessidade de optar entre a auto-destruição generalizada da humanidade e a supressão das atitudes que conduzem à guerra, como meio de resolver os conflitos entre os Estados. Norbert Elias Condição Humana 1985
Ao longo da história a guerra foi a norma, a paz a exceção. No sentimento ético moderno existe a convicção de que a guerra é uma aberração, ainda que inevitável; a paz é a norma, ainda que inatingível. Susan Sontag Diante da Dor do Outro 2003.
O livro de Susan Sontag On Photography, de 1973, era tão novo quanto à forma & conteúdo, que foi um estímulo importante aos desdobramentos de estudos e significados da fotografia – os meus, inclusive.
Ao retomar a questão da imagem fotográfica no fim de uma vida ativa e produtiva, seu tom de indignação é tão intenso que torna difícil descobrir, sob as considerações sobre a natureza humana e social, as ponderações competentes e eruditas a respeito da representação fotográfica. Diante da dor dos outros, que deveria ter sido traduzido como olhando a dor dos outros, para ser mais fiel ao original, transmite o seu olhar desesperado sobre a natureza da guerra, os deveres da consciência em torno da análise do sentido das imagens.
Sua leitura coincidiu com meus trabalhos sobre o Pacifismo de uma professora mineira, autodidata e independente que, ligada aos objectores de consciência da Primeira Guerra Mundial, entregou-se a uma lúcida campanha contra a Segunda Guerra, que os tentáculos do nazismo já mostravam que se aproximava.
Isso me permitiu verificar que uma e outra vieram dar substância às reflexões que vêm se desdobrando desde o XVII Encontro Anual da ANPOCS, de 1993, quando admitiu um Grupo de Trabalho sobre a Imagem. Nesse encontro me propus à tarefa interminável de comparar o texto verbal ao texto visual.
Como o pacifismo de Maria Lacerda de Moura se exprimiu verbalmente, abeberando-se dos textos dos intelectuais do grupo Clarté, não só me revelaram as expressões originais, que agora vieram deformadas na tradução do livro de Sontag. Três artigos de MLM no jornal O Combate tiram seus títulos de uma expressão de Romain Rolland, em seus malfadados esforços pacifistas Guerra à guerra!. Em Civilização – tronco de escravos e em Amai... e não vos multipliqueis, publicados pela Civilização Brasileira do Rio de Janeiro, Maria Lacerda esclarece a população a respeito das garras do capitalismo que conduzem os paises às guerras. A indústria armamentista aliada à ciência sem consciência as estimula de todas as formas, em busca do lucro. Para evitar as guerras seria preciso que as mulheres (como Lisistrata na Guerra dos Sexos de Parmênides)se recusassem a ter filhos do acaso: -- a maternidade consciente seria o fundamento mais seguro da paz.
De outro lado, pude verificar que esse pacifismo, da década de 30 do século XX está carregado de um significado diferente do de uma mulher erudita e consagrada do século XXI. Interferem na cronologia condições diferentes de cognição, percepção, auto-conhecimento e possibilidade de se fazer ouvir. Além do que o desenvolvimento tecnológico e científico não apenas de seus meios de expressão como a respeito de seus corpos tem aí uma função discriminadora. Acresce ainda que, em 1932, Maria Lacerda ainda se considerava investida pela missão de esclarecer "os emparedados" sobre a situação de servidão e do papel de homens e mulheres para impedir a guerra que vinha sendo articulada.
Em 2003, Susan Sontag mostra como ao longo da história, a guerra foi a norma, a paz a exceção. Tendo testemunhado as rupturas ateias do século XX e ingressado no século de guerras de fanatismo religioso, Sontag já não escreve sobre como evitar a guerra, da maneira como Virginia Woolf fizera em 1936. Examina as tentativas de artistas, fotógrafos e cineastas exprimirem essa forma extrema de sofrimento e repugnância que ela, como escritora, pulveriza em palavras: a guerra arrasa, calcina, esfrangalha, esquarteja, eviscera, despovoa, despedaça, devasta, dilacera a carne e as edificações.
A indignação vem do fato de que, apesar de aterradora e pavorosa, a guerra torna-se normal. Testemunhou que todo soldado, todo jornalista, todo socorrista, todo observador que passou algum tempo "sob o fogo da guerra e teve a sorte de driblar a morte que abatia os outros, à sua volta, sente obstinadamente – não podemos compreender, não podemos imaginar". Enquanto os que a vêm à distância, limitam-se a intervalos de concentração sobre a aparência, o espetáculo, sem aprofundar. A negação do que vêem produz a mudança do canal que transmite a imagem.
A questão que retoma é: se é preciso por fim à guerra, quem é que o fará e como?
Examina então como as imagens fotográficas e cinematográficas podem provocar repugnância e/ou compaixão, mas também ceticismo, diante das omissões flagradas. Assim como algumas imagens são tomadas como conhecimento integral, pois a foto choca e persegue o observador, seu poder enfraquece com o tempo, embora haja fotos que ecoam até a saciedade da percepção.
Sontag cita Walter Lippman, que em 1922 declarara que "as fotos têm hoje o tipo de autoridade sobre a imaginação que a palavra impressa tinha no passado e que, antes dela, palavra falada tivera. As fotos parecem absolutamente reais".
Mas isso foi antes da Segunda Guerra. Hoje se sabe que as intenções do fotógrafo não determinam o significado da foto. Esta seguirá o seu próprio curso, ao sabor dos caprichos e das lealdades das diferentes comunidades que dela fizerem uso . Se lembrar e ser capaz de evocar uma imagem não a explica. As narrativas é que podem levar a compreender uma situação. As fotos se limitam a nos perseguir, antes de se apagar.
Em confronto com os textos verbais de Maquiavel, Hobbes, do abade de Saint-Pierre, Rousseau e Kant, Sontag vai alinhar textos visuais de pintores, fotógrafos e cineastas que pretenderam criar uma consciência do caráter destruidor de uma sociedade cheia de tensões, conflitos e desigualdades.
Sontag lembra que Leonardo da Vinci já dava instruções para que a guerra fosse apresentada em toda a sua abominação – as imagens de sofrimento não deveriam ser belas.
No século XVII, Jacques Callot pintou Les Misères et les Malheures de la Guerre em que a selvageria das tropas francesas que ocuparam a Lorena contrasta com os soldados desamparados pedindo esmolas (1633), em seis gravuras pequenas e seis maiores..
Hans Ulrich Manck, apresentou em 1645 em 25 agua fortes a Guerra dos Trinta Anos onde se vêem os assassinatos dos camponeses pelos soldados.
Mas talvez Os desastres da Guerra (as desgraças) de Goya, pintados em 1863, mostrando as atrocidades cometidas pelos soldados de Napoleão na Espanha, com as monstruosidades dos sofrimentos e a iniqüidade dos invasores ferem mais o espectador.
É que são acompanhados de legendas, escritas pelo pintor, que revelam a dificuldade de olhar para a imagem. Uma diz Por que? e faz comentários judiciosos sobre energias e destinos dos combates, dos massacres, da pilhagem, dos estupros, das máquinas de tortura e vingança, da distribuição de recompensas dos soldados que terminam desamparados.
Em 1866 , Gardner publicou um Photographic Sketch Book of the War,em que apresenta os soldados confederados caídos, com detalhes pavorosos bem visíveis, onde se diz que não só fotografou a Guerra mas compôs as fotos, tendo rearrumado os cadáveres.
Mesmo depois da Primeira Grande Guerra, em 1924, Ernest Friedrich escreveu seu Krieg dem Kriege ,livro de 180 fotografias que poderia funcionar como uma terapia de choque. As fotos retratavam desde brinquedos de guerra até cemitérios, além de feridos e mortos abandonados. Esse livro foi censurado, mas teve muitas edições antes disso.
Quanto a filmes, destacou em 1938 o J´accuse de Abel Gance em que aparecem ex-combatentes desfigurados, sacrificados ao militarismo, à inépcia e à crueldade dos comandantes.
A partir da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) com a invenção de câmaras leves, a guerra passou a ser coberta por um corpo de fotógrafos e na Guerra do Vietnã, passou-se a testemunhar os fatos dia-a-dia, por um fluxo incessante de imagens de televisão, vídeo e cinema. Contudo, quando se trata de recordar é a fotografia fixa a que fere mais fundo. Ela memoriza e congela o quadro. A questão é que precisa ser uma imagem chocante e surpreendente. A imagem ultrafamiliar, ultracelebrada de agonia e de ruína constitui um elemento inevitável do conhecimento da guerra mediado pela câmara. Em meio a esse quadro de sofrimentos é que Henry James declarou ser difícil fazer uso das palavras e de suportar os pensamentos. A guerra (e era a guerra de trincheiras, 1914-1918) esgotou as palavras. Elas se enfraqueceram, deterioraram.
Em 1992 Jeff Wall, um canadense, fez ainda uma enorme foto contra a guerra Emboscada contra uma patrulha do Exercito Vermelho (Afganistão, 1986) . Era uma transparência de 2,3 ms x 4 ms sobre um quadro de luz Mas a memória da guerra, como qualquer memória, é sobretudo local. Sofre uma alteração do sentido com o momento histórico, e segue seu próprio curso ao sabor das lealdades das diferentes comunidades. A câmera traz o espectador para perto da cena – tem uma terrível nitidez. É preciso, contudo, lembrar que aos poucos, fazem-se exigências novas – uma re-encenação, de acordo com a ideologia do fotógrafo ou do financiador da foto. Em nome da decência ou do patriotismo altera-se a posição dos cadáveres ou personagens são suprimidas.
A frustração de não ser capaz de fazer alguma coisa a respeito do sofrimento que as imagens nos trazem acaba se traduzindo numa acusação de indecência ao exame dessas imagens ou das falsificações existentes nas maneiras como tais imagens são disseminadas, ladeadas ou infiltradas pela publicidade (nas revistas ou na televisão).
Susan Sontag detém-se na imagem como registro, como memória e nas inovações sucessivas da força da linguagem da fotografia. Examina o que é visto e o que é compreendido, bem como a transposição dos efeitos visuais a efeitos de encenação. Não deixa de lado a sensação de culpa ao desejo de vê-las e à insensibilidade diante delas. Considera que o texto verbal transmite melhor a compreensão, a temporalidade, o aprofundamento e o sentido do envolvimento dramático ou poético dos autores.Além disso considera que a fotografia tem um efeito mais duradouro quando colocada num livro, para ser vista demoradamente, e examinada com atenção que não se dá a periódicos.
Seus argumentos e análise dos contextos em que as fotografias de guerra têm mais impacto estão agora, dois anos após o início da Guerra do Iraque pelos Estados Unidos, sendo demonstrados em exposições de Lucien Read e Nina Berman em plena Manhattan, dadas as dificuldades de publicá-las. A primeira é sobre a ofensiva de Fallujah, das mais sangrentas da guerra e a outra, cujo nome é Coração Púrpura (nome da condecoração dada aos feridos em combate) relata as histórias dos feridos no Iraque, jovens de 20 e poucos anos em hospitais, centros de recuperação ou em atividades banais. Muitos estão amputados, alguns deformados, outros cegos.
À profunda depressão diante da permanência e continuação das guerras como estratégias políticas de conservação de poder, contrapõem-se atitudes individuais e heróicas como a das Vóvós Furiosas canadenses, que invadem manifestações políticas, entoando pastiches de cantigas infantis para ridicularizar as guerras atuais. Desde 1986, senhoras de 50 a 90 anos protestam contra a Guerra do Iraque dessa forma.
Na Costa Rica, a Universidade para a Paz (ONU) oferece cursos de prevenção de conflitos, direitos humanos e segurança humana e ambiental. A ONU e a UNESCO, se bem que com as maiores dificuldades,tentam reunir um Conselho Mundial de Homens da Ciência, para denunciar os perigos da energia atômica sob todas as formas.
O Fórum Social Mundial tem reunido pessoas que se recusam a disparar contra civis e à militarização. E, até em Israel, existem israelenses e palestinos que consideram que é a educação da tolerância a arma para construir a paz. É preciso recusar fazer parte da máquina opressora do Estado e perceber as conseqüências funestas da militarização.
A esperança de Gregory Bateson era que todos se tornassem conscientes
de fazer parte de redes de relações globais do eco-sistema, com o que surgiriam novas informações e sutilmente, o sistema mais amplo se alteraria. A cibernética como sistema.refere-se à organização, à regulamentação e ao governo dos organismos e das sociedades humanas. Ela pode fornecer meios de atingir uma visão mais humana, um meio de olhar com outra perspectiva nossa filosofia de controle e meios de perceber nossas loucuras.
1 Miriam Lifchitz Moreira Leite é professora aposentada de Historia da USP - Universidade de São Paulo. Suas linhas de pesquisa são História das Mulheres e Epistemologia da Imagem. Trabalha atualmente no Laboratório de Imagem e de Som em Antropologia, da USP.
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