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Trinta amostras de cada, normais e anormais, de inflorescências de Vitis vinifera 'Italia' foram coletadas em cultura de videira na região de Jales, SP, tanto de plantas típicas do cultivar, como também das que apresentavam características morfológicas diferentes. As amostras foram fixadas em F.A.A.50 (Johansen, 1940).
As inflorescências foram examinadas com o auxílio de um microscópio estereoscópico Zeiss e os desenhos foram feitos utilizando-se câmara clara.
Em Vitis vinifera, quando ocorre mais do que uma inflorescência no ramo, o desenvolvimento ocorre primeiro na inflorescência basal. Do mesmo modo, numa inflorescência, o desenvolvimento das flores dá-se da base para o ápice. Nessa espécie, a flor é hipógina, e o cálice é representado por um estreito anel na base da flor. Nas flores perfeitas, cinco pétalas verdes são opostas a cinco estames eretos. Os nectários são alternos com os estames, tendo o mesmo número destes. O estigma é largo na extremidade do estilete. O ovário é bilocular, e os lóculos 2-ovulados. As flores pistiladas possuem os estames reflexos, nos quais os filetes se torcem para trás e para baixo, de modo a posicionar as anteras abaixo do estigma. Nas flores estaminadas, o pistilo é abortivo, sem tecido estigmático, os carpelos e óvulos são rudimentares e os estiletes inteiramente ausentes, em alguns casos. As pétalas, por ocasião da ântese, separam-se na base e permanecem unidas no ápice, formando uma cápsula ou caliptra (Pratt, 1971; Agaoglu, 1971 e Srinivasan & Mullins, 1976).
O desenvolvimento das flores nas plantas normais do cultivar Itália observadas neste trabalho, iniciava-se da base para o ápice da inflorescência, enquanto que nas inflorescências anormais, o desenvolvimento ocorria no sentido oposto. Na base dos pedicelos ocorria a presença de brácteas, tanto nas inflorescências normais do cultivar, como nas anormais. Nas flores normais, o cálice era formado por cinco a seis sépalas fundidas na base, formando um disco. A corola, normalmente era formada por cinco pétalas (mais raramente por 6-7), livres na base e adnatas no ápice. No momento da ântese, a corola se soltava, e constituía a cápsula ou caliptra, expondo, deste modo, o gineceu e o androceu. Os estames, em número de cinco, possuiam filetes retos, com as anteras posicionadas acima do estigma. O gineceu era constituído por ovário sub-globoso, 2-locular, com lóculos 2-ovulados. O estilete era curto e possuia na sua extremidade um estigma desenvolvido. Ao redor do ovário, cinco nectários alternavam com os estames. As inflorescências eram vigorosas e, após a fecundação, produziam frutos (Figura 1, a - e).
Figura 1 - Flores de Vitis vinifera 'Italia': a a e- flores normais; f a h- flores anormais. a- segmento de inflorescência normal; b- detalhe de botão floral na fase de ântese; c- flor sem caliptra; d- corte transversal de ovário; e- detalhe de caliptra; f- segmento de inflorescência anormal; g- detalhe da flor com remoção da corola; h- corte transversal de ovário. (Voltan et al.).
As inflorescências anormais apresentavam pedicelos curtos, sendo as flores sub-sésseis. O cálice era semelhante ao das flores normais, enquanto que a corola apresentava cinco pétalas na maioria das flores, totalmente livres no ápice, não formando, portanto, a caliptra. Os cinco estames possuiam filetes curtos e retos, com as anteras posicionadas na altura do estigma ou abaixo do mesmo. No caso de flores que apresentavam seis pétalas, estas possuíam também seis estames, como pode ser observado na Figura 1f. No interior das anteras, ocorriam grãos de pólen viáveis. O gineceu apresentava o ovário globoso, 2-locular, lóculos 2-ovulados e estigma séssil. Os nectários eram pouco desenvolvidos. As flores não produziam frutos. Foram observados fungos saprófitas nas inflorescências maduras (Figura 1, f - h).
A caliptra que ocorre em Vitis é uma estrutura presente em poucas espécies do gênero Cissus (Vitaceae) e em outros gêneros com pétalas conatas apicalmente, como em Eucalyptus (Myrtaceae) e Marcgravia (Marcgraviaceae), mas sua ocorrência é rara em outras Angiospermas.
Segundo Srinivasan & Mullins (1976), a caliptra ou cápsula de Vitis vinifera é resultante da adesão de células marginais das pétalas. Na fase da ântese, as pétalas inicialmente soltam-se na região basal, enrolando-se. A ruptura das paredes celulares de pétalas adjacentes ocorre através de um processo semelhante à abscisão.
Inflorescências anormais também foram descritas por Iizuka et al. (1968), que verificaram no cultivar japonês Moscatel Bailey-A, normalmente com flores perfeitas, a ocorrência de flores imperfeitas, isto é, numa mesma inflorescência, algumas flores apresentavam o gineceu ou o androceu desenvolvidos incompletamente, produzindo frutos de tamanhos e formas desiguais. Uma vez que o cultivar normalmente produz apenas flores perfeitas, estes autores sugeriram a ocorrência de uma instabilidade sexual de natureza desconhecida.
A hipótese mais recente e mais aceita sobre a herança do sexo das flores da videira, é a que Olmo (1979) apresentou, sendo essa determinada por três alelos. Uma videira de flores perfeitas, pode ser heterozigota para a característica (Su+ Sum). Portanto, em 'Moscatel Bailey-A', poderiam ter ocorrido mutações ou mesmo quimeras, que originaram as flores diferentes na mesma inflorescência.
Flores anômalas em V. vinifera também foram observadas por Planchon (1866), porém com algumas das características anormais diferentes das observadas no presente trabalho. O tipo floral anômalo denominado por Planchon (1866) como" avalidouire" também possuia as pétalas livres, sem a formação da caliptra, porém, os estames daquelas flores possuiam filetes longos, posicionando as anteras acima do estigma, ao contrário do observado no "Italia".
Wardlaw (1961) e Heslop-Harrison (1964), ambos citados por Cutter (1987), consideram que cada fase do desenvolvimento floral apresenta a expressão de um gene complementar diferente, isto é, durante a ontogenia, diferentes genes florais tornam-se desreprimidos seqüencialmente. Este fenômeno é chamado de seqüência epigenética, que é a expressão de cada série de genes, dependente da série precedente.
Shannon & Meeks-Wagner (1993) propuseram um modelo para a regulação do desenvolvimento da inflorescência de Arabidopsis (Brassicaceae), baseado em interações genéticas. Estes autores especularam que durante o desenvolvimento da planta existiria uma hierarquia genética para a regulação da função meristemática, com alguns genes controlando programas especializados de desenvolvimento. Interações genéticas entre os reguladores de vários níveis da hierarquia seriam necessários para criar um padrão complexo morfogênico para a continuidade de uma seqüência de desenvolvimento.
Existem fortes evidências de relações filogenéticas entre os gêneros Vitis, Cissus, Parthenocissus e Ampelopsis (Vitaceae) (Gerrath & Posluszny, 1988; 1989a, 1989b, 1994). Segundo Gerrath & Posluszny (1989a), a iniciação e o desenvolvimento do cálice, dos primórdios das pétalas e dos estames são semelhantes para as espécies de Vitis e Parthenocissus estudadas. Porém existem diferenças nas células da epiderme abaxial das pétalas, sendo que em Vitis as células são mais frouxas na região onde ocorre a abscisão das células e conseqüente formação da caliptra. Baseados nisso esses autores sugeriram que a caliptra de Vitis possa ter sido derivada a partir das pétalas de Parthenocissus. Esau (1977) também considera que a fusão de pétalas seja ontogenética.
Endress (1992), no seu estudo de padrão de variação floral realizado ao nível de categorias taxonômicas elevadas como família e ordem, referiu que a ocorrência de uma mudança em um mutante de uma dada espécie padrão, seria provavelmente similar aos tipos selvagens encontrados ao nível destas categorias.
Portanto, com base nas relações filogenéticas entre estes gêneros de Vitaceae, que têm sido descritas desde 1866 por Planchon, e baseado na complexidade do estabelecimento e manutenção de inflorescências e meristemas florais, é possível que tenha ocorrido alguma alteração genética, originando inflorescências e flores anormais em alguns ramos de plantas do cultivar Itália observadas em Jales, repetindo características fenotípicas de ocorrência normal nos gêneros correlatos.
O fato de a ocorrência destas flores anormais não ter se repetido em anos posteriores a 1994, impediu a verificação de qualquer hipótese ou mesmo de melhor esclarecimento do fenômeno.
C. V. Pommer
pommer[arroba]unb.br
R. B. Queiroz-Voltan1; S. L. Jung-Mendaçolli1,3; C. V. Pommer2,3
1. Seção de Botânica Econômica-IAC, C.P. 28, CEP: 13001-970 - Campinas, SP.
2. Seção de Viticultura-IAC, C.P. 28, CEP: 13001-970 - Campinas, SP.
3.Bolsista do CNPq.
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