As mulheres chefes de domicílios e a formação de famílias monoparentais: Brasil, século XIX



 

O objetivo deste artigo é demonstrar que as mulheres que chefiavam domicílios no começo do século XIX em Campinas (SP) vivenciaram estratégias específicas de sobrevivência em relação ao seu status étnico, à prole remanescente no lar, e à composição geral dos arranjos domésticos.

Tais especificidades contrastavam com os arranjos de outras famílias que experimentavam a fase monoparental mas que, por sua vez, eram chefiadas por homens.

Estas últimas tinham um comportamento semelhante ao das famílias que passavam pela fase biparental.

Busca-se, então, a partir da segmentação das fases de desenvolvimento familiar, analisar os comportamentos de convivência em relação às estratégias dos arranjos domésticos a partir de dois momentos, isto é, o biparental e o monoparental.1

E, finalmente, integrar a noção de chefia feminina de domicílios ao conceito relativo às fases do desenvolvimento familiar. Este último objetivo deve-se ao fato de que as análises até então operadas têm enfatizado uma visão estática, em que o domicílio não é pensado de forma mais dinâmica.

Este artigo está dividido em cinco seções. A primeira trata de como as noções de família e domicílio apareceram em algumas obras internacionais importantes sobre o tema família. Em seguida, mostra-se como essas noções se difundiram em trabalhos sobre o tema no Brasil, demonstrando grande relevância e influência acadêmicas.

Na segunda seção examina-se em que medida o status étnico e matrimonial influenciou a constituição do ciclo de família. Na terceira observa-se a presença da prole na constituição do referido ciclo. A quarta trata de como tais ciclos se desenvolveram à luz da presença de agregados, escravos, e da exposição dos domicílios aos diversos setores econômicos. A quinta seção tenta avançar algumas explicações sobre a origem e O objetivo do artigo é examinar o fenômeno chefia feminina de domicílios. O autor introduz uma metodologia que aborda os arranjos domésticos à luz do ciclo de desenvolvimento da família e alguns dados comparativos com outras localidades. Observa-se que estas famílias vivenciaram estratégias específicas de sobrevivência quando houve mudanças na organização produtiva da sociedade e nas fases do ciclo de família. Tal especificidade contrastou os arranjos chefiados por homens e mulheres.

a natureza do fenômeno. A conclusão do artigo trata, enfim, do surgimento do fenômeno a partir de um caso concreto, enfocando a região de Campinas na primeira metade do século XIX. No anexo são apresentadas algumas tabelas referentes aos Gráficos 2, 3 e 4, para que o leitor tenha idéia da dimensão da população envolvida.

Mulheres chefes de domicílios: a trajetória do problema

O objetivo desta seção é apresentar alguns autores internacionais e nacionais que se utilizaram dos conceitos de família e domicílio e demonstrar como estes eram intercambiáveis. Em seguida, mostrar-se-á que tais conceitos foram utilizados de forma moralista, ideológica e até autoritária por alguns pensadores brasileiros, ao identificarem as formas de famílias dos segmentos mais modestos como anômicas.2

Os conceitos de família e de domicílio apresentavam uma forte identidade nas sociedades européias do passado, tendo sido estes dois termos intercambiáveis. No trecho que segue pode-se observar como o conceito de família estava vinculado a uma idéia de estrutura e organização, e que as outras formas mais simplificadas de família tendiam a ser vistas como anômicas.

O Universal Lexicon de 1735 definiu a família como "diversas pessoas sujeitas ao poder e à autoridade do chefe do domicílio seja por natureza ou por lei". Um folclorista escrevendo sobre Waldviertel, na Áustria, notou que os empregados eram incluídos como parte da família. Um inglês escreveu em 1660 em seu diário que tinha morado em Axe Yard, tendo "a sua mulher e a criada Jane, e não havia mais na família que os três". Jean Louis Flandrin, pesquisando dicionários franceses e ingleses dos séculos XVI e XVIII, mostrou que o conceito de família estava muito próximo ao de co-residência e parentesco, e evocava duas imagens: um conjunto de parentes que não residiam juntos, e um conjunto de co-residentes que não estavam necessariamente ligados por laços de sangue ou de casamento.

Philipe Ariès, ao estudar a família e a infância, definiu a primeira como abrangendo a unidade conjugal, a prole, empregados, amigos e "protegés". Em Portugal do século XVIII, a família definia-se como as pessoas de que se compõe uma casa, ou seja, os pais, os filhos e os domésticos. Suzanne Chantal sustenta que essa definição era comum. Antonil incluía na família do senhor de engenho tanto os filhos como os escravos. O ouvidor Durão, ao escrever sobre o Piauí colonial, afirmou que, "além dos senhores ou seus feitores, vaqueiros, escravos e mais pessoas habitavam a fazenda de gado, como uma só família".3

Como visto acima, a noção de família como estrutura extensa e complexa não tem raízes apenas aqui no Brasil. Reformadores sociais e estudiosos europeus dos meados do século XIX, preocupados com a degradação dos costumes no período de industrialização na Europa, pesquisaram as mudanças dos costumes em relação às famílias.

Tendiam a acreditar que a integridade da sociedade e da nação dependia da estabilidade da família, da autoridade dos chefes de família, da lealdade e obediência dos dependentes.4

De modo análogo, aqui no Brasil apareceram vertentes que se utilizaram desta noção de família muito mais como um arquétipo, imbuído de grande valor ideológico.5

Holanda (1982, p. 49) refletiu sobre o conceito de família a partir de noções do direito canônico e derivou seu substrato de uma abordagem etimológica, projetando a noção de famulus à idéia moderna de família. Muito embora Freyre (1975) tenha reconhecido outras formas de famílias parapatriarcais, semipatriarcais e antipatriarcais, seu objeto de pesquisa foi o espaço socioeconômico de Pernambuco colonial.

Ele entendia "a grande família" como a família extensa constituída do casal, da prole, dos parentes, dos agregados e escravos.

A família assim organizada teria proporcionado condições essenciais para a organização da sociedade brasileira.

Seguindo esta linha de raciocínio, Mello e Souza (1951), ao estudar as fazendas de café da região paulista, também via as famílias dos caipiras como parte da família patriarcal, por relações de clientelismo, caracterizando-as de forma anômica, sem identidade própria.

Samara (1987, p. 30), ao criticar a imprecisão do conceito de família, concluiu que "[...] confundiram-se aí vários conceitos: o de família brasileira, que passou a ser sinônimo de patriarcal, e mesmo o de família patriarcal, que passou a ser usado como sinônimo de família extensa. Nesta perspectiva, passam a ter um significado comum." Analisando a complexidade da sociedade brasileira, Correa (1994, p. 24) enfatizou "o contraste entre essa sociedade multifacetada, móvel, flexível e dispersa, e a tentativa de acomodá-la dentro dos estreitos limites do engenho e da fazenda [de café]." A partir da década de 70, e especialmente da década de 80, muitos estudos de historiadores têm abordado a família no Brasil e na América Latina como um todo e refutado aspectos do modelo patriarcal de Freyre, focalizando tanto as famílias de elite quanto as famílias mais pobres (Samara & Costa, 1997, pp. 212-225). É neste contexto que a questão da chefia feminina de domicílios ganhou relevo na área temática de estudos sobre a família.

Alguns historiadores que se utilizaram da metodologia da história demográfica foram pioneiros em identificar e analisar diferentes organizações de famílias de diversas regiões brasileiras (Marcílio, 1974; Ramos, 1975; Costa, 1977; Kuznesof, 1980; Silva Dias, 1984; Samara, 1989). Uma pesquisa mais recente, empregando metodologia mais sofisticada, sugeriu que o fator ocupação tenha sido mais relevante que o fator raça para determinar a existência de chefias de mulheres (Diaz & Stewart, 1991).

Em outras pesquisas, tentou-se fazer comparações entre Portugal e Brasil (Ramos, 1993; Brettell & Metcalf, 1993). As áreas urbanas e rurais de Minas Gerais e São Paulo, a área rural canavieira da Bahia, assim como as regiões noroeste (Minho) e nordeste (Lanheses) de Portugal foram objeto de quantificação e análise nas referidas pesquisas.

Contudo, a chamada "zona nova do café" – Campinas – ainda não foi pesquisada, muito embora existam dados disponíveis para serem comparados sistematicamente.

A região constitui-se em um locus privilegiado de investigação, uma vez que em um estudo anterior (Eisenberg, 1989) observou-se uma mudança estrutural nesta área, que se transformava em uma região agroexportadora Por volta do ano de 1829, a região de Campinas era uma região agrária e escravista que sustentava sua economia a partir de grandes unidades agroexportadoras de cana-de-açúcar e de pequenas unidades agrícolas que produziam arroz, milho e feijão. Entre 1767 e 1829, a quantidade de fogos existentes na região passou de 39 para 939. De 1779 a 1829 a população livre passou de 186 para 4.220 indivíduos, e a escrava, de 104 para 4.323 indivíduos (Eisenberg, 1989, pp. 343-367).

Ao analisar a distribuição ocupacional da totalidade dos chefes de fogos desta região no ano de 1829, Eisenberg observou que o setor primário diminuíra em quase 50% a sua importância relativamente ao ano de 1809, apesar de responder ainda pela maioria dos chefes de fogos no setor, e que a importância dos setores secundário e terciário crescera muito: "As proporções da população campineira sustentada pelos setores secundário e terciário, não-produtores de açúcar, respectivamente dobraram e triplicaram. Juntos, estes setores em 1829 incluíam o mesmo número de pessoas que em 1809 viviam da lavoura de alimentos." (Eisenberg, 1989, pp. 343-367).

A partir do Gráfico 1, abaixo, veja como evoluiu a participação proporcional dos titulares das unidades domésticas na região de Campinas, segmentadas em arranjos mono e biparentais. Em seguida, dividimos os arranjos monoparentais em chefiados por homens e mulheres.

A partir do ano de 1829, o número de mulheres chefiando unidades domiciliares na região atingiu quase um quarto do total de domicílios, sendo que em 1779 apenas 10,4% destes eram chefiadas por elas. Em 1798 e em 1808 esta ocorrência ficou em torno dos 11%. A partir do ano de 1818 este índice subiu para 12,7%, e em 1829 duplicou para 23%, associado a uma situação de recuo da participação relativa de casais na chefia de domicílios para 65,1% do total.6

O incremento do número de fogos chefiados por mulheres na região de Campinas se deu através de um conjunto de efeitos de fenômenos combinados. A expansão extensiva da produção agrícola do setor primário, associada à concentração de riqueza, levou à instalação de grandes unidades do tipo plantation, as quais concentravam 78% da população cativa. A atração exercida por essas unidades agrícolas abriu espaço para a imigração de pessoas vinculadas a domicílios voltados para os setores secundário e terciário.7 E como corolário desses fenômenos coadjuvantes, houve um processo de diversificação da estrutura social e ocupacional, o qual resultou no aparecimento de mulheres chefes de famílias. Esta hipótese será demonstrada a partir das evidências examinadas a seguir.

 


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