*Apresentação feita ao VI Encontro Nacional de Pós-Graduação nas IES Particulares, Salvador, 25 de agosto de 2005.
O setor privado é, fundamentalmente, dedicado ao ensino e acho que isso é o que deve ser, é o que cabe com os recursos disponíveis. A idéia de que todos devam fazer pesquisa, pela indissociabilidade, às vezes provoca mais danos que benefícios.
Quero falar um pouco sobre como é a pesquisa no Brasil, como ela vem se desenvolvendo ao longo do tempo e como ela vem se transformando no mundo de hoje.
Isto ajudará no entendimento sobre o que é a pesquisa universitária e se existem espaços e nichos para o setor privado entrar e participar. São os temas principais que pensei em trazer para essa discussão.
A primeira questão, preliminar, é: O que é a pesquisa? Um primeiro entendimento é o da pesquisa como atividade intelectual, como scholarship. O bom professor universitário pesquisa quando lê novos livros e artigos especializados, busca na Internet o que está surgindo, está o tempo todo se mantendo atualizado, se mantendo informado.
Do ponto de vista do aluno, a pesquisa pedagógica é uma abordagem importante, que ensina como identificar um problema, como defini-lo com clareza, como buscar de forma sistemática as respostas, e aprender os limites do conhecimento empírico. Do ponto de vista pedagógico-didático, o ensino através da pesquisa é muito melhor que o ensino tradicional do cuspe e giz, quando o professor coloca os conceitos no quadro e o aluno tem que repetir. Neste sentido, em toda instituição de ensino todo aluno e todo professor deveriam fazer pesquisa. A metodologia de ensino que se usa no Brasil é quase sempre a metodologia do ritual, da repetição, da memorização, do excesso de informações. Esse é um problema seriíssimo, pedagógico, de conteúdo, que acho que afeta todo mundo. Nesse sentido, a pesquisa e o ensino são indissolúveis, quem ensina tem que ensinar a pensar.
Existe um outro conceito de pesquisa, no entanto, que é a pesquisa como atividade profissional. Não é completamente diferente da anterior, mas estamos falando de uma outra coisa: da pesquisa enquanto atividade que produz conhecimentos novos que circulam em certos meios, que são aplicados ou difundidos, que tem algum tipo de reconhecimento, onde o pesquisador não é simplesmente um professor, mas sim um profissional da pesquisa. Existe pesquisa deste tipo em muitas universidades e muitos centros, onde os professores se consideram pesquisadores. Nelas, a atividade da pesquisa passa a ser prioritária e a atividade de ensino passa a ser vista como um aspecto secundário ou derivado. A pesquisa enquanto atividade profissional é muito prestigiosa, muito importante, mas peculiar a certos segmentos de algumas instituições de ensino superior e de algumas pessoas que nem estão no ensino superior, mas em institutos públicos ou privados. Esse é o tema que nos interessa hoje, aqui. A pergunta sobre o ensino privado não é se o ensino privado deve fazer pesquisa no primeiro sentido, claro que tem, e deve fazer o tempo todo. Mas a pergunta é em relação ao segundo sentido, a pesquisa como atividade profissional.
Mas o entendimento do que é esta pesquisa profissional também tem variado ao longo do tempo. No Brasil, há 100 anos, predominava a visão positivista, sobretudo entre os engenheiros e os militares. Para eles, havia um conhecimento científico, técnico, que era superior a outras formas de conhecimento, e que deveria ser utilizado para tornar o pais mais moderno, racional e eficiente. ciência. Esta apreciação pela ciência não estava associada, no entanto, à apreciação pela pesquisa enquanto tal. Não havia um mundo desconhecido a descobrir, mas uma tecnologia já definida para aplicar. Podemos dizer que o positivismo é uma ideologia da ciência que diz que a ciência é muito importante, mas ao mesmo tempo, ignora que ela é incerta, especulativa, que vai e volta, que experimenta, que discute. Isso não havia na época.
Essa concepção antiga, que levava à idéia de que a sociedade deve ser organizada como um grande projeto de engenharia, sob o comando dos especialistas, é uma noção que prevalece até hoje. Na verdade, nenhum dos diferentes conceitos de ciência a que estou me referindo desapareceu, mas adquirem diferentes prioridades e predominância em diferentes épocas e locais.
O conceito que, no Brasil, sucede ao da ciência positivista é o da ciência pura. Quando falamos de ciência pura, pensamos na criação da USP nos anos 30 e também no surgimento de um novo tipo de intelectuais, de matemáticos, de astrônomos, fundadores da Academia Brasileira de Ciências. para os quais a ciência não era simplesmente um instrumento de ação da sociedade, mas um conhecimento que tem haver com a cultura, com a formação humanística, com a formação ampla. O projeto da USP tinha muito esse componente, o que conflitava com as tradições positivistas tradicionais. Os "filósofos" que vieram do exterior para a Faculdade de Filosofia tinham como missão influenciar o conteúdo das faculdades tradicionais como a engenharia, medicina e outras, que, evidentemente, resistiram. A Faculdade de Filosofia da USP, como sabemos, ficou separada do resto por muito tempo. Mas ela consolida uma nova visão da ciência como cultura. Com ela, estaríamos criando uma nova cultura, um país civilizado, e não mais país meramente industrializado e moderno. Nesta nova visão, o poder dos técnicos e engenheiros é substituído pela idéia de uma comunidade de pesquisadores livres e independentes, aonde a exploração das fronteiras do desconhecido tem precedência sobre a prioridade da aplicação e da pesquisa voltada para fins determinados.
Este modelo predomina no Brasil, ainda que o outro continue, como, por exemplo, na pesquisa biomédica, que nunca perde o aspecto de ciência aplicada, embora saibamos que os centros que mais se desenvolveram nestas áreas, como o Instituo Osvaldo Cruz, no Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina da USP, e Instituto Butantã, também sempre tiveram um componente acadêmico, mais "puro", muito importante. A função da pesquisa biomédica não é só tratar, curar as doenças, mas também pesquisar, classificar os animais, desenvolver modelos, e toda uma idéia de pesquisa básica sempre esteve associada aos melhores centros de pesquisa no Brasil.
A partir dos anos 50, há uma mudança muito importante no Brasil, quando começa a idéia da ciência como poder do Estado. Com a criação do CNPq e a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, sob a liderança do almirante Álvaro Alberto, se fortalece a idéia de que o Brasil agora deve incorporar a energia atômica r se tornar uma grande potência, e os problemas econômicos serão resolvidos graças à abundancia de emergia barata. A dificuldade para atingir isto não era predominantemente científica e técnica, mas política e militar. As grandes potencias fariam o possível para nos negar acesso a estes conhecimentos, e isto só poderia ser superado pela ação decisiva e financiamento concentrado do Estado.
Essa visão, que retoma o otimismo tecnológico dos positivistas associado à idéia de poder, está no embrião da criação do CNPq e ressurge com toda força no período militar, principalmente no período do governo Geisel. Tenho me referido a essa época como a da criação do "modelo Geisel", que tinha como um dos objetivos centrais a superação do "cerco tecnológico" ao qual o país estaria submetido. É a época do "milagre econômico" dos anos 70, em que o governo federal também aumenta sua capacidade de arrecadação de impostos, e os recursos públicos abundam. Aumentam os recursos para a pesquisa, mas agora concentrados em grandes projetos, vários deles de cunho militar: armamentos, energia nuclear, programa espacial completo, submarino nuclear... Além disto, há uma política de investimentos nas indústrias de base, e o acordo nuclear com a Alemanha. É desta época a transformação do antigo Conselho Nacional de Pesquisas que se mantinha como um órgão associado à Presidência da República mas de pouco prestígio, no novo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, muito maior e colocado sob o Ministério do Planejamento Econômico, junto com a recém-criada FINEP.
Se, por um lado, a ciência se fortalece com todos estes investimentos, a visão agora não é mais, como para os positivistas e também para Álvaro Alberto, que os cientistas liberariam a modernização do pais. Agora a liderança havia sido tomada pelos estrategistas militares, que compartiam com alguns economistas a idéia de que a pesquisa científica e tecnológica deveria ser planejada e integrada em projetos de desenvolvimento de longo prazo, através dos Planos Nacionais de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
Faz parte deste período também a criação da pós-graduação brasileira nos moldes americanos, com a reforma de 1968, onde se criam as pós-graduações nas universidades. São duas políticas diferentes, uma orientada para a formação de recursos humanos para a educação superior, desenvolvida dentro do Ministério da Educação, e outra orientada para os grandes projetos tecnológicos, de interesse dos militares. A distinção entre os dois projetos, no entanto, não é nítida, porque haviam menos cientistas do que recursos, quase todos estavam nas universidades, e conseguiam capturar uma parte importante dos recursos e do próprio gerenciamento das instituições de ciência e tecnologia.
Este modelo ambicioso rapidamente se deteriora, porque, no início dos anos 80, o Brasil entra em crise, o processo inflacionário começa a sair de controle, já não há mais dinheiro, e o regime militar começa sua retirada. O governo Figueiredo administra como pode a falência do militarismo. O governo Sarney, curiosamente, é ao mesmo tempo o auge e a derrocada do modelo Geisel. A democracia não trouxe uma nova visão sobre o papel da pesquisa científica e tecnológica no pais. Livres da tutela dos militares, os cientistas conseguem a criação do Ministério de Ciência e Tecnologia (ainda dirigido, não obstante, por um militar nacionalista, Renato Acher, tendo Luciano Coutinho, economista da Unicamp, como Secretário Executivo), e fazem aprovar a lei da reserva de mercado para a indústria brasileira de micro-informática. Foi uma vitória de Pirro, porque a principal política pública do governo Sarney foi a repartição dos recursos do governo federal conforme os diferentes interesses que se apresentavam com capacidade pressão, levando a uma falência generalizada da administração pública e ao descontrole inflacionário.
A principal inovação do período talvez tenha sido a conversão da maior parte dos recursos existentes para a pesquisa em recursos de bolsa e salários. Isto atendia às reivindicações mais imediatas dos pesquisadores e professores, e permitia que a pósgraduação continuasse a crescer, embora a possibilidade de iniciar novas pesquisas importantes ficasse muito reduzida. O resultado deste processo foi que, por um lado, a retórica nacionalista do modelo Geisel se manteve intacta, mas, na prática, a área de ciência e tecnologia passou a se comportar cada vez como um grupo de pressão entre outros, disputando os escassos subsídios do governo federal.
Aos poucos, os recursos ainda disponíveis para a ciência e tecnologia foram se concentrando no pagamento de salários de pesquisadores e professores, e na distribuição de bolsas de estudo, sobrando pouco ou quase nada para os grandes projetos do passado, que não foram desativados, mas tampouco conseguiram os recursos e o apoio político que esperavam.
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