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As dificuldades em usar esta teoria para a previsão ou determinação de preços efetivos nos mercados são suficientemente conhecidas. O conceito de "trabalho simples", do qual o trabalho especializado seria um agregado, não tem definição operacional utilizável. Preços variam, no curto prazo, conforme as variações da oferta e da procura, e a longo prazo dependem fortemente de quanto os mercados se aproximam ou não das características da competição perfeita. O conceito de "valor", como algo distinto do de "preço", não tem contrapartida empírica. Este fato foi reconhecido nas reformas recentes da economia da União Soviética que buscam reintroduzir preços de mercado para a avaliação do desempenho de empresas em um sistema de economia descentralizada. Isto significa que o conceito marxista de valor-trabalho está equivocado?
Sem dúvida, mas só no sentido restrito de que ele não permite prever a realidade com precisão. A tentativa de prever preços a partir do trabalho traz em princípio as mesmas dificuldades da de tratar de entender idéias e pensamentos como "reflexos" da realidade. O postulado filosófico de uma conexão não leva, necessariamente, à possibilidade efetiva de determinação empírica. É bastante claro que, para Marx, a redução do preço ao trabalho é, em sua origem, uma análise que tem muito pouco a ver com a previsão de preços ao nível fenomênico. Ela se parece muito mais, na realidade, a uma "redução" no sentido que a fenomenologia daria mais tarde a este termo, ou seja, um processo de passagem do fenomênico ao núcleo mais essencial da realidade. Como na fenomenologia, as características essenciais dos fenômenos surgem quando eles são vistos como relacionados de forma imediata com o ser humano - em Marx, como um produto imediato da atividade humana. O instrumento intelectual proposto para esta redução é a dialética, como uma maneira de buscar o que é oposto ao fenômeno, o que o nega, e o que traz o fenômeno e sua negação juntos novamente. A negação da mercadoria como bem de consumo é seu valor de troca, e o que junta estes dois aspectos da mercadoria é seu conteúdo social, o trabalho humano. O método dialético, pelo que ele possa valer (e não haveria como aprofundar esta questão aqui) é basicamente uma forma de ir à essência das coisas, um método de conhecimento filosófico, não tendo sido jamais concebido como um instrumento para explicações no nível do fenômeno.
Ou não? Afinal, Marx arriscou previsões sobre o fim do capitalismo, a revolução na Alemanha, a vitória do proletariado... Parece claro que, para ele, conhecimento filosófico e empírico eram uma e a mesma coisa, quando o objeto do conhecimento era o homem. Ele chegou a fazer, nos Manuscritos Filosóficos de 1844, uma distinção entre as ciências "naturais" e as "humanas", mas considerava esta divisão como mais uma manifestação do estranhamento entre o homem e o seu mundo de objetos, pela desumanização da atividade prática.
Marx introduziu esta mesma distinção nas ciências sociais, ao caracterizar a economia política clássica como sendo a "metafísica do capitalismo", e como tal alienada - mas de qualquer forma científica. Sua própria ciência social, enquanto isto, consistia, essencialmente, em uma crítica da economia política (este é, naturalmente, o sub-título de O Capital, uma crítica que só era possível porque a sociedade alienada havia encontrado sua negação, a praxis da classe operária, que incluía a Internacional Comunista, os sindicatos e a atividade política e intelectual do próprio Marx, entre outras coisas. A mistificação da ciência do homem perde seu aspecto mistificado no momento da revolução, mas ela só pode ser uma crítica. Esta crítica seria ao mesmo tempo um conhecimento essencial (ou seja, filosófico) e um modo de previsão, como parte de um movimento revolucionário que realiza a crítica prática da sociedade.
Com isto chegamos ao cerne do problema. O momento da revolução, para Marx, era como o Dia do Juízo Final, quando todas as máscaras são retiradas, e a verdade aparece à plena luz. Esta revelação geral da verdade tem pelo menos dois componentes. O primeiro é que, uma vez que a pré-história da alienação chega ao fim, mistificações não são mais possíveis. O segundo é que, neste momento da verdade, as coisas se tornam muito mais simples, reduzidas a sua verdadeira natureza: no momento que antecede a revolução, quando falta somente um passo a dar, a última negação. A simplificação da realidade é vista como um processo histórico, empírico, inseparável do problema intelectual da descoberta da face verdadeira das coisas. Daí o conceito de praxis, como ação-conhecimento levando a este desvendamento-desalienação da realidade. Exemplos abundam. Tomemos a estrutura de classes da sociedade, e perguntemos quantas classes existem. A resposta de Marx é a de que existem muitas (camponeses, proprietários de terras, capitalistas, aristocratas, operários, etc., como se vê em 18 Brumário), mas este quadro é simplificado à medida em que o capitalismo se desenvolve, e a revolução se aproxima: então existem somente burgueses e proletários em confronto. Ou tomemos as relações entre a classe operária e o movimento comunista. Marx sabia muito bem que se tratava de coisas diferentes, o que não o impediu de dizer, no Manifesto Comunista, que o Partido não é outra coisa senão a classe operária em sua atividade revolucionária. A análise do Estado, que veremos mais adiante, também contém a idéia de que o Estado burguês e democrático é a simplificação e clarificação dos sistemas políticos anteriores, somente a um passo de seu desmascaramento destruição final.
Como, no entanto, o momento revolucionário não ocorreu, e não parece estar por ocorrer no futuro previsível, a unificação dos tipos de conhecimento, e do conhecimento com a ação, só se manteve como ideologia dos partidos e sistemas políticos marxistas. O conseqüente caos intelectual no Marxismo, por isto, ainda perdura. Engels, mais próximo do cientificismo do século XIX do que de Hegel, tratou de tomar a identificação das duas formas de conhecimento como significando que o modo filosófico ficava excluído - e o resultado é que sua tentativa de levar a dialética para a natureza resultou, não em uma humanização das ciências naturais, mas numa bastardização da dialética. As ciências naturais se mostraram suficientemente fortes para resistir a este assalto, mas ele repercutiu, com efeitos desastrosos, no campo das ciências sociais. Lukács, mais próximo de Hegel do que de Zhdanov, resolveu o problema pela introdução de uma distinção absoluta entre as ciências humanas e as ciências naturais, a primeira tendo a dialética como o instrumento principal de análise, e o estudo da natureza pertencendo a um âmbito conceitual distinto. Uma análise da obra de Lukács e seus seguidores (entre os quais Lucien Goldmann) mostraria certamente melhores resultados do que tudo o que foi produzido em termos de ciências sociais dentro do marxismo oficial de inspiração engelsiana.
Em síntese: o fracasso da revolução exige que distingamos entre o Marx analista empírico, estudando uma realidade histórica determinada e fazendo previsões, e o Marx filósofo, autor de uma crítica filosófica às alienações da sociedade capitalista. É uma distinção malgré lui, mas indispensável se queremos avaliar ou, pelo menos, entender a Marx(1)
Podemos passar agora para a crítica do Estado.
A crítica do Estado em Marx é, em grande parte, uma crítica à filosofia do Estado de Hegel, que é vista como justificação do Estado capitalista. O corpo principal desta crítica pode ser encontrado na Crítica à Filosofia do Estado de Hegel(2), que é um comentário à Filosofia do Direito. Podemos tentar indicar os pontos principais da crítica.
O ponto essencial da filosofia hegeliana do Estado, na interpretação de Jean Hyppolite(3), é a separação entre o Estado e a Sociedade Civil. Na Cidade Clássica, o indivíduo é visto como idêntico à vontade geral, e esta distinção não existia. No Império Romano, no entanto, ocorre a divisão entre a sociedade, como estado da necessidade, e o Estado, como a unidade da vida política. Mas no Estado moderno, para Hegel, esta alienação chegaria ao fim. Não que as duas esferas da vida política e da vida privada retornem a um estado de indiferenciação; mas elas passam a constituir dois momentos da mesma realidade. A Sociedade Civil é percebida como o fenômeno do Estado, e o Estado como a Idéia da Sociedade Burguesa. Esta idéia se manifesta como a Constituição e o Soberano, e a mediação entre estas particularizações da Idéia e a Sociedade Burguesa é feita através de instituições tais como a opinião pública, a representação de grupos civis ante o Estado, a burocracia, e assim por diante. Assim, para Hegel, o problema da conciliação entre o público e o privado, e entre a liberdade individual e a unidade da vontade geral, já estaria resolvido. Para Marx, no entanto, é este o problema que deve ser resolvido pela ação revolucionária.
O primeiro ponto da crítica de Marx é a relação de dependência entre a sociedade civil e o Estado. Para ele, é o Estado que é o fenômeno, e a sociedade civil a realidade essencial, porque é nela que o homem trabalha e vive sua vida concreta. Com isto a concepção hegeliana é posta sob seus pés, e a análise pode prosseguir buscando as conexões entre a sociedade civil e o Estado - a conclusão principal sendo, ao final, que o Estado nada mais é do que um instrumento de dominação da burguesia.
Antes de chegar a esta conclusão, no entanto, Marx desenvolve a crítica às mediações que Hegel considerava como unindo o Estado à sociedade civil. A primeira destas mediações é a burocracia. Para Hegel, a burocracia era a alma do Estado, e a atividade privada dos funcionários públicos consistia no desempenho de uma função universal. Para Marx, no entanto, os burocratas terminavam por fazer desta função universal seu negócio privado. Para Hegel, o suposto básico da burocracia era a autonomia e a organização da sociedade civil em corporações. A escolha dos funcionários e autoridades públicos era vista como uma escolha mista, iniciada pelos cidadãos livres e aprovada pelo Soberano. O fato é, dizia Marx, que este tipo de penetração da sociedade civil no interior do Estado só leva à criação de mais um tipo de corporação: as corporações são o materialismo da burocracia, e a burocracia é o espiritualismo das corporações; mas a corporação é a burocracia da sociedade civil, e a burocracia é a corporação do Estado". A identificação entre o interesse desta corporação do Estado e a burguesia só vai aparecer em Marx mais tarde.
A crítica de Marx à burocracia vai muito além da denúncia da defesa hegeliana do Estado alemão, ou de seu papel como instrumento de dominação de classe. Vale a pena citar por extenso:
A burocracia tem em seu poder o ser do Estado, o ser espiritual da sociedade: ele é sua propriedade privada. O espírito geral da burocracia é o mistério, conservado pela hierarquia, e protegido dos de fora pelo fato de ela se constituir como corporação fechada. Tornar o espírito do Estado conhecido por todos, e pela opinião pública, é algo percebido pela burocracia como traição ao seu mistério. O princípio da ciência burocrática é, pois, a autoridade; e seu sentimento é a idolatria desta autoridade. Mas, dentro da própria burocracia, este espiritualismo se transforma em materialismo sórdido, o materialismo da obediência passiva, da fé na autoridade, dos princípios, idéias e tradições fixos. Para o burocrata como indivíduo, os objetivos do Estado se transformam em seus objetivos privados: a conquista de posições cada vez mais altas, a luta pela promoção.(4)
Marx é, como sempre, sucinto quando se trata de propor soluções: "a supressão da burocracia somente é possível quando o interesse geral se transforme realmente (e não, como em Hegel, somente no pensamento, uma abstração)o interesse privado, o que só será possível quando os interesses privados se transformem no interesse geral
A crítica de Marx ao legislativo é demasiado dependente das particularidades da época para uma análise mais detalhada aqui. O ponto principal a assinalar, de qualquer forma, é que, para Marx, o Estado alemão era ainda atrasado como estado burguês plenamente desenvolvido, que se caracterizaria pela eliminação total dos resquícios das instituições medievais do passado. No Estado burguês, "cada esfera privada tem um caráter político ou é uma esfera política, e a política é também uma característica das esferas privadas". Se a Alemanha tivesse completado seu desenvolvimento, ela teria adquirido a forma de uma democracia, que, para Marx, era "a solução para o enigma de todas as constituições". E isto porque, na democracia, o Soberano são as próprias pessoas, e a alienação que separa o âmbito público do privado chega a seu extremo, a um passo somente de sua eliminação final. Aqui novamente, a proximidade da revolução simplifica as coisas. As complicadas estruturas do Estado nobiliárquico desaparecem, sua função como instrumento de dominação de classes torna-se mais visível e intensa, e assim por diante. Neste ponto o Estado já é o elemento que conduzirá o homem ao mundo desalienado, só que a um passo aquém de sua realização plena: "o estado político perfeito é, por sua natureza, a "vida genérica" (Gattungsleben) do homem enquanto oposta à sua vida material"(5). O próximo passo é acabar com esta abstração, e lograr a integração das duas esferas.
É claro que, com esta percepção do Estado, Marx só poderia desprezar as formas de vida política que ele implica. A vida política, outra das mediações hegelianas, é vista como uma substituição à revolta popular, e, assim, mais uma forma de mistificação: "a esfera política é a única esfera política do Estado, a única esfera onde o conteúdo e a forma adquirem um caráter geral e universal; mas isto é feito de tal forma que, na medida em que esta esfera se opõe às demais, seu conteúdo fica formal e particular. A vida política no sentido moderno é a escolástica da vida popular"(6). A única maneira de evitar este escolasticismo é recusando o formalismo da vida política, e trazendo a política de volta para sua verdadeira origem e destino final, a esfera da sociedade civil. Para isto é necessário atuar politicamente, por certo, mas de acordo com as regras formais do jogo político democrático, ou pelo menos não acreditando nelas. O que nos traz ao terceiro e último ponto desta discussão, a relevância filosófica da política.
"A emancipação humana só será completa quando o homem real e individual tenha absorvido para dentro de si o cidadão abstrato; quando como um homem individual, em sua vida quotidiana, em seu trabalho, e em suas relações, se transforme em um ser genérico; e quando tenha reconhecido organizado suas forças próprias como força social, deixando assim de separar este poder social de si mesmo na forma de um poder político"(7).
O conceito de "Gattungswesen", traduzido como "être générique" pelos franceses e como "species-being" pelos de língua inglesa, parece crucial para entender o pensamento de Marx sobre o fim da alienação. Vimos como o fim da alienação na esfera da política requer a negação da política, que é a abstração do ser genérico. O mesmo tipo de negação é também requerido na esfera do trabalho, da atividade quotidiana do homem.
É possível somente especular sobre o sentido do termo "Gattungswesen", Marx nunca especifica. Para Feuerbarch, de quem ela surge, esta palavra parece sugerir a capacidade que têm os homens de ter consciência de seu pertencimento a uma espécie de seres vivos. Este sentimento de pertencer a um todo mais amplo parece similar ao que Férdinand Tönnies chamaria depois "comunidade" (Gemeinschaft, em oposição a Geselschaft), e Émile Durkheim "solidarité méchanique", solidariedade baseada nas identidades, em contraposição à "solidarité organique", baseada nas diferenças e nas complementaridades.
Em Tönnies, tanto quanto em Durkheim, sociedades comunitárias se caracterizam por uma similaridade básica e uma identidade de valores e atitudes entre todos os seus membros. Não somente todos compartem os mesmos valores e atitudes, mas este fato é conhecido e vivido por todos; a sociedade é transparente, e existe um sentimento generalizado de pertencer ao mesmo todo. O oposto é a sociedade onde as interações se baseiam na especificidade dos papéis, ausência de afetividade, universalismo, auto-orientação e ausência de características sociais adquiridas, para utilizarmo-nos das variáveis padrão de Talcott Parsons. Comunidades são geralmente descritas, nesta tradição sociológica, como localizadas em um passado real ou hipotético, caracterizadas pela indiferenciação de papéis, em contraste com as sociedades modernas, postas no outro extremo temporal, e caracterizadas pela divisão do trabalho.
Podemos concluir que Marx antecipou a Tönnies em sua nostalgia pela comunidade antiga, pequena e simples? A resposta parece ser afirmativa. Marx compartia com Hegel (antes do que com Tönnies) a noção de uma união primitiva entre conceito e realidade, sociedade civil e Estado, homem e homem. Esta identidade da Idéia consigo mesma era, no entanto, vazia; e é a mediação entre o ser e o não ser que traz à vida movimento e conteúdo à realidade. A reconciliação da Idéia com seu eu alienado é, de uma certa forma, uma volta ao começo, carregada pela vivência do processo. Marx dificilmente subscreveria a esta formulação; e no entanto, há pouca dúvida de que ela servia de pano de fundo para seus escritos.
Descendo das alturas da Idéia hegeliana, podemos sugerir que as sociedades modernas trazem, de fato, alguns dos elementos da "solidariedade baseada nas diferenças" de que falava Durkheim. A preocupação de Marx com as desigualdades reais subjacentes à igualdade formal da democracia burguesa era um obstáculo, podemos pensar, à sua percepção adequada processo de massificação que a sociedade moderna estava criando. As análise de De Tocqueville sobre a democracia americana, escritas na mesma época, são uma premonição dos problemas que a volta à comunidade em sociedades massificadas poderiam trazer.
Podemos aprofundar um pouco esta análise se pensarmos no papel que a divisão do trabalho pode jogar neste contexto. Para Durkheim, a divisão do trabalho é a base da solidariedade orgânica, baseada nas diferenças; para Marx, a alienação do trabalho era a base de todas as demais formas de alienação. Que relação existe entre trabalho alienado e trabalho dividido? Não é uma relação clara, porque Marx se recusa a discutir a natureza do trabalho de forma abstrata, fora da sociedade contemporânea, onde o trabalho é ao mesmo tempo alienado e dividido. Ele mostra a existência de três tipos de alienação no trabalho. Primeiro, há a alienação do produto do trabalho, que não pertence ao trabalhador, cuja própria força do trabalho é uma mercadoria posta à venda; segundo, há a alienação da atividade produtiva, porque esta atividade é vivida como sofrimento, e não como prazer e alegria; terceiro, e como conseqüência das anteriores, o trabalho alienado aliena o homem de si mesmo, de sua espécie humana. A vida produtiva, que é a atividade vital por excelência, se transforma em um simples meio para a vida privada, e as relações de homem para homem tornam-se mediadas por interesses privados. A conseqüência é a solidão, o isolamento e a nostalgia da comunidade perdida, onde homem teria sido, um dia, um ser comunitário (Gemeinwesen).
O que Marx não busca esclarecer é em que medida a alienação do trabalho é o resultado de um tipo determinado de organização social, e em que medida ela decorre da própria natureza da atividade física do trabalho. É possível dizer, por exemplo, que o trabalho será alienado sempre que houver divisão do trabalho, seja qual for a forma em que a sociedade ou a economia estiverem organizados. Quando pensamos no trabalho desalienado pensamos no homem produzindo para si mesmo e para os seus, tendo o entendimento e o controle completo de sua atividade, e feliz com sua atividade criativa. Esta concepção é compatível com o trabalho relativamente simples que podemos encontrar em comunidades baseadas na "solidariedade de identidades", mas é claramente incompatível sociedades altamente tecnificadas.
Marx não ajuda a resolver esta questão. Para ele, os problemas sociais e técnicos são a mesma coisa, e a supressão da propriedade privada deveria trazer também a eliminação do trabalho rotinizado, sem sentido e compartimentalizado. Poderíamos entender este ideal como a esperança por uma revolução que trouxesse de volta a unidade do trabalho humano, uma revolução tecnológica que fosse, ao mesmo tempo, uma revolução social. Isto não é, no entanto, muito provável, se pensamos nas projeções que Marx poderia ter feito a respeito do desenvolvimento da tecnologia desde sua perspectiva do século XIX. O mais razoável é entendê-lo como parte da crença na determinação profundamente social de tudo aquilo que o homem sente, pensa e gosta. Assim, passar os dias e anos rodando a mesma manivela ou costurando a mesma parte da mesma roupa poderiam tornar-se, um dia, uma atividade feliz e plena de significado, se estivermos conscientes de trabalhar, não para um mercado impessoal, mas para a comunidade de nossa espécie.
Isto talvez fosse possível de conseguir se os trabalhadores participassem de sua sociedade no nível das decisões, tanto da produção econômica quanto da sociedade como um todo. Tem sido este o sentido de alguns experimentos mais conhecidos de auto-gestão, na Iugoslávia, e de eliminação das diferenças entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, nos kibbutzim de Israel. A dificuldade com estes experimentos é que nenhum deles traz de efetivamente de volta a comunidade, no nível do trabalho quotidiano. As tecnologias modernas parecem requerer uma administração técnica, e existência de poucos dirigindo o trabalho de muitos, e mesmo as experiências mais bem sucedidas de auto-gestão parecem sugerir que os setores mais ativos da classe trabalhadora são incorporados, ou cooptados pela administração das empresas, deixando a maioria sem uma liderança própria. A eliminação das diferenças entre trabalho intelectual e manual, quando usada como forma de trazer de volta a comunidade, pode ter como conseqüência impossibilitar o uso de técnicas produtivas mais sofisticadas e mais eficientes. A Revolução Cultural chinesa tratou de levar a cabo esta eliminação, pelo fim da hierarquia no exército, assim como pela obrigação do trabalho manual para os intelectuais, e o desenvolvimento do trabalho intelectual pelas massas. O alto preço desta experiência é conhecido: a vivência quotidiana em um clima de emergência, a revolução perpétua, e o abandono, na prática, dos ideais de racionalização. O novo tipo de comunidade, na sociedade de massas contemporânea, é a comunidade da mobilização social, obtida pela combinação da ideologia partidária com a mitologia soreliana - e Marx, certamente, não teria maior dificuldade em apontar sua natureza alienada.
A dificuldade básica foi mostrada por Hannah Arendt: o trabalho é, para Marx, ao mesmo tempo uma coisa boa e uma coisa má, sua atividade vital mais significativa e sua escravização. Para Marx, mostra ela, o homem é essencialmente um animal laborans, o labor, ou labuta, sendo entendido como a atividade de auto-manutenção, a atividade do corpo. "Em todos os estágios de seu trabalho", diz ela, Marx "define o homem como um animal laborans e depois o conduz a uma sociedade na qual seu poder maior e mais humano não será mais necessário. Ficamos com a frustrante alternativa entre a escravidão produtiva e a liberdade improdutiva"(8). A solução de Arendt é considerar que o homem não é basicamente um animal que trabalha, mas um animal político, que cria história com seus atos.
Não caberia aqui entrar nas distinções que Hannah Arendt propõe entre labuta (labor), trabalho (work) e ação, e em como estes conceitos se relacionam com as idéias de Marx. É possível dizer, no entanto, que Marx tinha um conceito muito mais dinâmico da natureza humana do que o de Hannah Arendt. Não havia, para ele, distinção possível entre o produto das mãos (trabalho), o produto do corpo (labuta) e o produto da mente humana (ação). O homem não é, para Marx, como a aranha que tinha uma imagem mental de sua eterna teia; ele é, ao contrário, uma espécie de animal que é capaz de crescimento ilimitado através de sua interação com a natureza: "dizer que o homem vive da natureza significa que a natureza é o seu corpo com o qual ele precisa sem manter em contato permanente para não morrer. Dizer que a vida mental e física do homem, e a natureza, são interdependentes, significa simplesmente dizer que a natureza é interdependente dela mesma, porque o homem é parte da natureza(9). Antes disto, ele diz que "a universalidade do homem aparece na prática na universalidade que faz do todo da natureza seu corpo inorgânico". Se isto é assim, a história da humanidade é a história da conquista, pelo homem, de seu próprio corpo, e conceitos tais como "labuta", como atividade suja de manutenção da sobrevivência quotidiana, e "ação", como atos heróicos mas sem conteúdo material, seriam simples derivações das alienações presentes, fadadas a desaparecer.
É improvável que a sociedade com a qual Marx nos acena seja uma sociedade do lazer e da inatividade. Ela parece ser, mais bem, uma sociedade onde não existe necessidade no sentido de um governo das coisas -- mas já vimos que este governo das coisas é, para Marx, um problema de organização social, um resultado da exploração do homem pelo homem. O fato de que existem determinações técnicas para a alienação do trabalho parece ser uma debilidade do pensamento de Marx; Hannah Arendt talvez possa ser criticada por propor uma concepção demasiadamente compartimentalizada das atividades humanas.
Mas a crítica de Arendt vai mais longe. Não basta sermos felizes com nossa própria atividade; a atividade humana, para ser humana, deve transcender o nível do intercurso entre o homem e seu corpo, o homem e a natureza, e ascender ao nível das relações entre homem e homem, baseadas da fala e nas ações (deeds), através dos quais a personalidade de cada um se manifesta. Mesmo se considerarmos, como devemos, que uma sociedade desalienada implicaria necessariamente em altos níveis de interação humana, isto ainda não seria suficiente. Hannah Arendt comparte, com a tradição existencialista, o interesse pelo heróico, o trágico e o irrepetível, que estão no polo oposto do mundo futuro de Marx. Jean Hyppolite mostra como esta divergência já existia na oposição entre Marx e Hegel. Para Hegel, a existência de oposições e tensões na vida humana nunca deixa de existir, é um movimento dialético sem fim; enquanto que, para Marx, haverá um dia o fim da história tal como a conhecemos. Para Hegel, a unidade entre o excepcional e a vida quotidiana, entre o Estado e a Sociedade Civil, como uma idéia unificada, ocorre somente em momentos de tensão, de guerra, tragédia e revolução. A crítica de Marx é cáustica: "o idealismo somente encontra sua realidade em situações de guerra e tragédia, de tal maneira que sua essência é, na realidade, o estado de guerra e a tragédia do Estado tal como ele existe, enquanto que seu estado de paz é exatamente a guerra e a tragédia do organismo".
Mas, pelo menos desta vez, gostaríamos que ver um Marx menos mordaz no uso de seus paradoxos, e mais atento ao sentido profundo dos pensamentos de Hegel. Como afirma Hyppolite, a vida e a morte estão na raiz da história para Hegel, enquanto que, para Marx, as raízes são o trabalho e a exploração do homem pelo homem. Estas não são, somente, diferentes concepções, mas têm uma conseqüência mais profunda: Marx é incapaz de dizer qualquer coisa a respeito de como será a vida quando esta exploração, contra qual dedicou sua própria vida, vier um dia a desaparecer.
O fim da alienação. A luta política terminou, a luta social foi ganha, homens e mulheres não precisam trabalhar muito, e estão totalmente imersos na natureza, em seus corpos, em outros seres humanos, em si mesmos. O sentimento de chatice é inescapável, e nem mesmo a introdução do amor e da arte, neste cenário, evitaria a imagem de belos anjos tocando harpa. Será que este cenário é preferível ao das pessoas tentando ser heróis pela sensação de sê-lo, buscando a grandeza mesmo a preço da destruição e da desgraça?
Em última análise, trata-se de uma questão sem sentido. Qualquer situação de estabilidade e plenitude traz também a sensação de vazio, da mesma forma que situações de excitação, tensão e heroísmo provocam a busca da calma, tranqüilidade e bem estar. Marx nunca tratou de chegar a uma definição geral e abstrata do objetivo final da vida humana. Ele simplesmente criticava as alienações específicas de um tipo dado de organização social, e esta crítica continuará válida mesmo se o fim desta alienação trouxer a necessidade de uma crítica na direção oposta. Não há, felizmente, esperança de que a alienação venha a acabar um dia, e com ela a humanidade que conhecemos e que, apesar de tudo, gostamos.
Berkeley, maio de 1968.
1. Esta distinção não é a mesma do que a que se faz comumente entre o jovem Marx e Marx adulto, mas é suficientemente próxima para se confundida com ela.
2. Estamos tomando como referência a edição francesa, K. Marx, Oeuvres Philosophiques, tradução J. Molitor, ed. Costes, Paris, vols. 1,2,3 e 4. As citações abaixo são do volume IV, pp. 103-104.
3. Jean Hyppolite, Études sur Marx et Hegel, Paris, Marcel Rivière, 1965.
4. Traduzido livremente da versão francesa, p. 104.
5. Da Questão Judia.
6. O. P., vol. IV, p. 71.
7. A Questão Judia, baseado no texto inglês de T. B. Bottomore (Karl Marx' Early Writings, McGraw Hill, 1963, p. 31.
8. Hannah Arendt, The Human Condition, Chicago, The University of Chicago Press, p. 91.
9. Manuscritos Filosóficos, ed. Bottomore, p. 127.
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
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