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Liberdade e resistência em Cecília Meireles (página 2)

Cladismari Zambon de Moraes

 

Os acontecimentos da época eram tratados por Cecília em suas crônicas pois, como nos aponta Massaud Moisés, o cronista sente realmente o que exprime. As crônicas em geral são breves e seu estilo direto, espontâneo e jornalístico, reagindo de imediato ao acontecimento (MOISÉS, 1982: 104). As idéias e críticas de Cecília, no entanto, foram recebidas com resistência e perseguições por motivos ideológicos, políticos e estéticos. Era partidária dos princípios da Escola Nova, a escola moderna do filósofo norte-americano John Dewey e assistiu à ascensão de um estado autoritário e de uma Igreja Católica que tentava recuperar seu poder após quarenta anos de uma república laica, com ares positivistas. Se a história da literatura desconhece a Cecília Meireles da luta política, desconhece também a que sofreu perseguições da censura de Vargas, dos católicos e em concursos literários.

A "Página de Educação" se encerrou para Cecília em janeiro de 1933, quando se cansou das manobras políticas do governo e o estado da educação no Rio de Janeiro. Chega mesmo a manifestar em sua correspondência o "horror" que lhe causava o jornalismo em sua vida.  Ficou para trás a jornalista engajada que, entre 1930 e 1933, assinou sua página diária sobre educação - na qual chegou a acusar ? então ministro de educação, Francisco Campos, de medalhão e ? então presidente, Getúlio Vargas, de Sr. Ditador. Foram mais de mil artigos escritos em que Cecília lutava contra a inclusão do ensino religioso e defendia as liberdades, como por exemplo a criação de escolas mistas em que ambos os sexos pudessem dividir ? mesmo espaço. É bom lembrar que isso ocorreu entre 1930 e 1933, quando a mulher sequer exercia ? direito de voto, uma vez que as urnas passaram a contar com ? voto feminino apenas em 1934.

Entretanto, logo após sua despedida da "Página de Educação", Cecília Meireles volta aos jornais. Desta vez para o carioca "A Nação", no qual foi contratada com um senão: poderia escrever sobre tudo, menos sobre política!  Durante toda a sua vida a poeta se dedicou ao jornalismo. Na década de 40 escreveu para "A Manhã" uma coluna semanal sobre folclore. Em seguida, na década de 50, de volta ao "Diário de Notícias", ocupava o famoso rodapé de literatura do "Suplemento Literário", pelo qual já tinham passado Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. Terminou sua carreira na imprensa na década de 60, na Folha de São Paulo.

Dentre as quase duas mil e quinhentas crônicas que escreveu ao longo de sua vida, escolhemos duas que foram publicadas já em período de maturidade intelectual (vide anexo). "Edmundo, O Céptico" foi publicada em livro pela primeira vez em 1963 junto a textos de outros autores no livro Quadrante 2. "Liberdade", por sua vez, foi publicada em primeira edição em 1964 no livro Escolha o seu sonho, uma coletânea de quarenta e cinco crônicas com temas variados, as quais foram escritas a pedido do jornalista Murilo Miranda a fim de serem lidas nos programas da Rádio Roquete Pinto.

"Edmundo, o Céptico" fala de um menino que não acreditava em nada que os adultos lhe diziam. Era chamado de teimoso mas o que queria era descobrir por sua própria experiência suas próprias verdades. Quebrou os dentes tentando extrair o melzinho do caroço de ameixa, quase se afogou numa pipa d’água, tudo por não acreditar no que os adultos lhe diziam. Fazia perguntas e não se convencia das respostas, dava trabalho na aula de catecismo e na escola. Estava sempre em guarda com os adultos, estragava as festas, shows de mágica não tinham sentido para Edmundo. Não admitia a mentira e morreu cedo.

"Liberdade", por sua vez, trata de uma reflexão em torno da palavra liberdade. Cantada, descrita, sonhada e desejada por todos, é objeto de ditados populares, hinos e poemas. É motivo de vida, de lutas e de morte. Cecília fala de crianças que atiram pedras e soltam papagaios por serem livres, e quebram coisas ou morrem quando o fio encosta nos fios elétricos. Loucos que tentam fugir dos pavilhões através de incêndios e morrem queimados. Há também os que preferem não se arriscar e nem pensam no assunto. Só os sonhadores, as crianças e os loucos partem em busca do que pensam ser liberdade, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos, que falam de asas, de raios fúlgidos — linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...

Não podemos, porém, ler tais crônicas sem perceber nas entrelinhas a Cecília crítica que angariou inimigos em sua militância no jornalismo, que "quebrou os dentes" tentando extrair o "melzinho" que imaginou haver numa educação diferente, criativa, não conforme os padrões tradicionais que o governo de Vargas ditava (os adultos que diziam verdades a Edmundo). A Cecília que convoca o leitor a aprender com a experiência, a buscar a verificação das verdades, a não se conformar com respostas prontas, a ficar sempre em guarda contra o autoritarismo que tenta impor suas verdades. Reconhece a dificuldade de sua luta e, como Edmundo, se cansa da luta política e se afasta por momentos dos jornais, mas continua ativa. Estaria Cecília, como porta-voz de seus leitores, falando de sua experiência como cronista?

Como bem nos lembra Roncari, "o cronista é o sujeito que retrata o tempo, canta a imagem do turbilhão que remexe a ordem do mundo e não deixa nada fixo no lugar" (RONCARI, 1985: 14). Como o Edmundo de Cecília, que não por acaso se chama Edmundo (por mais que não gostasse do mundo dos adultos, pertencia a ele, era do mundo, E-d-mundo), o cronista observa o cotidiano com um olhar estranho, alguém capaz de observar e julgar o movimento, a mudança, e alertar para o que tem de extraordinário, o que parece corriqueiro, sólido e estabelecido. O cronista seria, para Cecília, um "Edmundo" em busca de sentido, de verdades, de movimento? Roncari vê o cronista como o "sobrevivente que de um porto seguro e dificilmente alcançado observa a torrente que a tudo desestabiliza e turbilhona" (RONCARI, 1985: 15) e chama a atenção de todos ao seu redor para que tentem se salvar. Pena que o próprio Edmundo não se salvou.

A incredulidade de Edmundo contrasta com a credulidade de quem não questiona, que se deixa levar pelo encantamento mágico das palavras, que acredita em ilusões criadas pelo mundo dos adultos. Um Edmundo que precisou morrer cedo por não admitir a mentira. Estragava tudo, incomodava, como Cecília, apontando o engano por trás de decisões políticas envolvendo a educação.

É nesse ponto que buscamos nossa segunda crônica escolhida: "Liberdade". Escrita também em anos de maturidade com um refinamento em suas palavras, evoca em hinos e poemas os ideais de liberdade, ideais revolucionários como sempre foram sua marca. Revolucionários como Edmundo. As criaturas nutridas de liberdade, como todos nós leitores, cantam, amam e morrem por ela.

Cecília dialoga com ditados populares, hinos e gritos de levante popular que, "em certo instante" podem brilhar em nossa consciência como possibilidade e como realidade. Repudia a condição de "autômato e teleguiado" e proclama o "triunfo luminoso do espírito". O coração e a cabeça juntos, consciência da responsabilidade do ser humano sobre seu próprio caminho. O sonho da liberdade, no entanto, encontra barreiras e tropeços.

A infância, para Cecília, deve ser respeitada. O sonho infantil leva pedras e papagaios até onde a realidade não nos permite ir. A realidade, porém, é dura, crua e fatal. Nos restam a infância ou a loucura (ou os dois) como possibilidade de ruptura das correntes e busca da tão desejada liberdade, mesmo que para isso tenha que se enfrentar o risco e a morte. O comodismo e a estagnação nos fazem acreditar no discurso que Edmundo repudiava. O sonho de Edmundo, das crianças, dos loucos, de Cecília e de todos que ousam desafiar a "eles" (lembrando que "eles" eram os adultos de Edmundo e os políticos de Cecília) desnuda a fragilidade e a incoerência que nos deixa pendurados nos "andaimes dos construtores de Babel".

 

Bibliografia

  • ARRIGUCCI JR., D., Enigma e comentário, Companhia das Letras, São Pulo:, 1987.
  • AZEVEDO FILHO, L.A. de, 1927. Cecília Meireles, In: Poetas do Modernismo: Antologia crítica. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1972. p. 81-118.
  • CÂNDIDO, A., A vida ao rés-do-chão. In: Cândido et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil., UNICAMP, Campinas, 1992.
  • DAMASCENO, Darci. Cecília Meireles: um cinqüentenário. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 23 mar. 1969, p. 2
  • LAMEGO, Valéria. A farpa na lira. Rio de Janeiro: Record. 1996.
  • MEIRELES, C. Liberdade, In.: Escolha o seu sonho, Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 7.
  • ____________. Edmundo, o Céptico, In.: Quadrante 2, Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, pág. 122.
  • MOISÉS, M., A criação literária, 10a. ed., Cultrix, São Paulo:, 1982.
  • RONCARI, L., A estampa rotativa na crônica literária. In: Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, vol. 46, jan./dez., 1985, p. 9-16.

 

EDMUNDO, O CÉPTICO

Cecília Meireles

Naquele tempo, nós não sabíamos o que fosse cepticismo. Mas Edmundo era céptico. As pessoas aborreciam-se e chamavam-no de teimoso. Era uma grande injustiça e uma definição errada.

Ele queria quebrar com os dentes os caroços de ameixa, para chupar um melzinho que há lá dentro. As pessoas diziam-lhe que os caroços eram mais duros que os seus dentes.

Ele quebrou os dentes com a verificação. Mas verificou. E nós todos aprendemos à sua custa. (O cepticismo também tem o seu valor!)

Disseram-lhe que, mergulhando de cabeça na pipa d'água do quintal, podia morrer afogado. Não se assustou com a idéia da morte: queria saber é se lhe diziam a verdade. E só não morreu porque o jardineiro andava perto.

Na lição de catecismo, quando lhe disseram que os sábios desprezam os bens deste mundo, ele perguntou lá do fundo da sala: "E o rei Salomão?" Foi preciso a professora fazer uma conferência sobre o assunto; e ele não saiu convencido. Dizia: "Só vendo." E em certas ocasiões, depois de lhe mostrarem tudo o que queria ver, ainda duvidava.  "Talvez eu não tenha visto direito. Eles sempre atrapalham." (Eles eram os adultos.)

Edmundo foi aluno muito difícil.   Até os colegas perdiam a paciência com as suas dúvidas. Alguém devia ter tentado enganá-lo, um dia, para que ele assim desconfiasse de tudo e de todos. Mas de si, não; pois foi a primeira pessoa que me disse estar a ponto de inventar o moto contínuo, invenção que naquele tempo andava muito em moda, mais ou menos como, hoje, as aventuras espaciais.

Edmundo estava sempre em guarda contra os adultos: eram os nossos permanentes adversários. Só diziam mentiras. Tinham a força ao seu dispor (representada por várias formas de agressão, da palmada ao quarto escuro, passando por várias etapas muito variadas). Edmundo reconhecia a sua inutilidade de lutar; mas tinha o brio de não se deixar vencer facilmente. Numa festa de aniversário, apareceu, entre números de piano e canto (ah! delícias dos saraus de outrora!), apareceu um mágico com a sua cartola, o seu lenço, bigodes retorcidos e flor na lapela. Nenhum de nós se importaria muito com a verdade: era tão engraçado ver saírem cinqüenta fitas de dentro de uma só... e o copo d'água ficar cheio de vinho...

Edmundo resistiu um pouco. Depois, achou que todos estávamos ficando bobos demais. Disse: "Eu não acredito!" Foi mexer no arsenal do mágico e não pudemos ver mais as moedas entrarem por um ouvido e saírem pelo outro, nem da cartola vazia debandar um pombo voando...  (Edmundo estragava tudo).

Edmundo não admitia a mentira. Edmundo morreu cedo. E quem sabe, meu Deus, com que verdades?)

Texto extraído do livro "Quadrante 2", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1962, pág. 122.

 

LIBERDADE

Cecília Meireles

Deve existir nos homens um sentimento profundo que corresponde a essa palavra LIBERDADE, pois sobre ela se têm escrito poemas e hinos, a ela se têm levantado estátuas e monumentos, por ela se tem até morrido com alegria e felicidade.

Diz-se que o homem nasceu livre, que a liberdade de cada um acaba onde começa a liberdade de outrem; que onde não há liberdade não há pátria; que a morte é preferível à falta de liberdade; que renunciar à liberdade é renunciar à própria condição humana; que a liberdade é o maior bem do mundo; que a liberdade é o oposto à fatalidade e à escravidão; nossos bisavós gritavam "Liberdade, Igualdade e Fraternidade! "; nossos avós cantaram: "Ou ficar a Pátria livre/ ou morrer pelo Brasil!"; nossos pais pediam: "Liberdade! Liberdade!/ abre as asas sobre nós", e nós recordamos todos os dias que "o sol da liberdade em raios fúlgidos/ brilhou no céu da Pátria..." – em certo instante.

Somos, pois, criaturas nutridas de liberdade há muito tempo, com disposições de cantá-la, amá-la, combater e certamente morrer por ela.

Ser livre — como diria o famoso conselheiro... é não ser escravo; é agir segundo a nossa cabeça e o nosso coração, mesmo tendo de partir esse coração e essa cabeça para encontrar um caminho... Enfim, ser livre é ser responsável, é repudiar a condição de autômato e de teleguiado — é proclamar o triunfo luminoso do espírito. (Suponho que seja isso.)

Ser livre é ir mais além: é buscar outro espaço, outras dimensões, é ampliar a órbita da vida. É não estar acorrentado. É não viver obrigatoriamente entre quatro paredes.

Por isso, os meninos atiram pedras e soltam papagaios. A pedra inocentemente vai até onde o sonho das crianças deseja ir (As vezes, é certo, quebra alguma coisa, no seu percurso...)

Os papagaios vão pelos ares até onde os meninos de outrora (muito de outrora!...) não acreditavam que se pudesse chegar tão simplesmente, com um fio de linha e um pouco de vento! ...

Acontece, porém, que um menino, para empinar um papagaio, esqueceu-se da fatalidade dos fios elétricos e perdeu a vida.

E os loucos que sonharam sair de seus pavilhões, usando a fórmula do incêndio para chegarem à liberdade, morreram queimados, com o mapa da Liberdade nas mãos! ...

São essas coisas tristes que contornam sombriamente aquele sentimento luminoso da LIBERDADE. Para alcançá-la estamos todos os dias expostos à morte. E os tímidos preferem ficar onde estão, preferem mesmo prender melhor suas correntes e não pensar em assunto tão ingrato.

Mas os sonhadores vão para a frente, soltando seus papagaios, morrendo nos seus incêndios, como as crianças e os loucos. E cantando aqueles hinos, que falam de asas, de raios fúlgidos — linguagem de seus antepassados, estranha linguagem humana, nestes andaimes dos construtores de Babel...

Texto extraído do livro "Escolha o seu sonho", Editora Record – Rio de Janeiro, 2002, pág. 07.

 

Cladismari Zambon de Moraes
cladismari[arroba]hotmail.com
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