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Introdução ao Pensamento de Georges Gurvitch (página 2)

Simon Schwartzman

 

II - a condição humana

Se a subjetividade é função do espontâneo, a condição humana é uma condição dramática, uma condição de liberdade que significa contínua criação e superação de obras, valores e condutas, situações absolutamente inéditas: "quanto mais é autêntica, menos traz satisfação efetiva a seus participantes, porque a obra que resta a fazer se revela cada vez mais imensa e inacabada". É esse drama contínuo de criação, destruição e recriação que realiza a efetivação plena do humano, que vai significar a afirmação total de sua personalidade. O ato livre, não tendo como suporte senão a personalidade do sujeito, quando efetivado significa a realização da vocação deste sujeito, expressa em sua manifestação libertária.

A vocação humana, que dá o caráter absolutamente inédito e contingente de cada um, é apreendida no ato de sua realização, e é para o indivíduo, assim como para os Nós, os grupos, as classes e nações, um valor absoluto, uma vez que fundamenta, cria e destrói valores, normas, etc. Eis porque a intuição da vocação, ao tempo que é libertária (intuição volitiva), é também moral, constituindo o primeiro ato de moralidade superior que "o homem apreenda sua vocação original e que ele não queira ser nada mais do que ele e ele apenas queira o que, conforme esta vocação, apenas ele deva ser e possa ser; em síntese, que ele não queira senão aquilo em que consiste sua personalidade"(10).

A vocação, que não é apenas do eu, mas também do nós, do grupo, da classe, da sociedade global, jamais será uma prescrição, um destino que é imposto externamente ao homem, e ao qual ele não possa ou não deva se furtar, o que negaria toda a liberdade ou colocaria um fundamento supra-humano na moralidade. "Qualquer que seja sua singularidade e sua mobilidade, a vocação ideal de um indivíduo ou de um grupo degenerar-se-ia em uma espécie de predestinação anulando a ação nova se estes sujeitos, por um esforço supremo de vontade, não pudessem ultrapassá-la criando vocações novas e se recriando a si mesmos"(11).

A forma mais autêntica da experiência da vocação humana, trazendo em si a força de sua dramaticidade, conduz a uma tentativa de abrandamento, em busca de uma experiência direta do absoluto, de forma religiosa, artística, etc. "Mas todas estas saídas colocam a liberdade humana a serviço de critérios distintos de si mesmo. Na vida dos Eu, dos Outro, dos Nós, dos grupos, das classes, das coletividades, das sociedades como tais, o drama da liberdade humana não pode e não deve ser superado, pois corresponde exatamente ao drama da realidade humana"(12).

A personalidade humana se experimenta na realização de sua vocação, experiência que se caracteriza como intuição volitiva do eu enquanto pessoa, no "fogo do ato livre." Mas a liberdade, situada temporal e espacialmente, admite gradações infinitas, e nem todos seus graus permitem a experiência da subjetividade com intensidade igual. Insubmissa a qualquer definição, por sua própria natureza, a liberdade será provada, vivida, experimentada, nunca deduzida ou explicada. Nunca absoluta, sempre intermediária entre o contingente e o necessário, o livre e o determinado. "Mas um elemento de vitória, de triunfo, subsiste sempre em toda a liberdade humana: é a vitória do homem, tanto individual quanto coletivo, sobre seus determinismos". É este elemento do vitória que vai permitir a experiência da subjetividade, a experiência pessoal através da qual o homem participa de uma realidade espiritual.

Em grau rudimentar, a liberdade é uma liberdade de preferências subjetivas, uma liberdade "mole, preguiçosa, que não insiste e que se desvanece diante de toda resistência séria, diante de todo obstáculo que exija sacrifícios e riscos para ser ultrapassado"(13). Depois, a liberdade de realizações inovadoras, que provocam um desnível entre os atos e as obras, modelos, valores, símbolos e sinais. É a liberdade que permite a realização de projetos, planos e outros fins, pela superação dos obstáculos imprevistos que surgem em seu caminho. Com a liberdade-escolha, o ato livre não é mais simples respostas a estímulos externos, mas começa a se fazer presente a vontade humana sem provocação externa a ela, uma vontade clarividente. Depois a liberdade de invenção, superando alternativas pela invenção de novos caminhos; liberdade de decisão, quebrando, demolindo os obstáculos que a ação voluntária encontra em seu caminho; e finalmente a liberdade de criação, o grau mais elevado da liberdade humana, o ponto em que a ação humana é mais auto-determinada, em que a vocação humana se realiza em toda sua intensidade.

III - Liberdade e moral

Sendo a moralidade, em sua forma superior, a plena realização da vocação humana, vocação esta que encontra sua expressão nos atos de liberdade criadora, torna-se evidente a ligação estreita entre o estudo da liberdade e o da moral.

A concepção moral gurvitchiana busca seu princípio na tese de que os valores morais, e os valores em geral experimentados pelos sujeitos sociais, situam-se em plano distinto do da vida intelectual, de tal forma que não é possível uma formulação racional de princípios morais válidos universalmente. Os valores "não podem ser induzidos nem deduzidos, nem construídos dialeticamente, nem apreendidos por uma intuição de ordem intelectual. Mas após terem sido provados, vividos nos atos específicos oriundos da atividade e da vontade, os valores podem muito bem ser reconhecidos em uma reflexão teórica 'a posteriori' sobre a experiência especifica na qual foram vividos".(14) Esta concepção trará como conseqüência barrar caminho às tentativas de definir o bem e o mal conforme critérios oriundos da razão, o que na prática só poderia redundar na projeção de valores próprios sobre os demais, na ignorância da irredutibilidade da experiência de cada um, da irredutibilidade de cada vocação ante as demais, "vícios do antropomorfismo e do racionalismo moral"(15)

A moral, entretanto, não será um código ou um conjunto de normas externas ao homem, mas uma experiência íntima de cada um, única e irrepetível, e, só após sua efetivação, abordável por um estudo filosófico que discuta sobre sua autenticidade.

A ligação da moral com a liberdade reside então em que o critério da moralidade é a autenticidade da experiência volitiva da vocação. Mas assim como a liberdade humana apresenta gradações de intensidade, também a experiência moral se dá em vários planos, cada um dos quais implicando a existência dos demais, que cumpre ressaltar.

A vida moral quotidiana se manifesta nas condutas humanas. A conduta humana é moral quando busca a realização de objetivos baseados em fins morais, fins estes oriundos de imperativos fundados em valores morais. A análise da vida moral que se detenha nos objetivos dará como fundamento da moral a razão, mas "bastará entretanto indagar sob quais condições os objetivos perseguidos devem impor-se como morais, para que esta intelectualização da vontade surja logo como superficial". "Pois os objetivos baseiam-se em fins, termos imprevisíveis de tendências e aspirações, e a vontade guiada pelos fins se opõe já a toda redução à inteligência"(16).

Mas os próprios fins só se afirmarão como morais na medida em que não contradigam imperativos categóricos, e enquanto impliquem em si valores morais. Na experiência moral quotidiana, "condutas voluntárias guiadas pela representação de fins, por imperativos categóricos (implicando julgamento) e pelos fins (onde entra um elemento de imagem), por um esforço de reflexão e analise encontramos, em estado latente, virtual, o elemento fundamental da vida moral, "a experiência moral imediata: "é ela que nos faz experimentar, mesmo de maneira inconsciente, os valores implicados nos objetivos, imperativos e fins, e nos imbui da convicção de que os elementos mencionados possuem um caráter moral"(17) .

A experiência moral imediata, implícita nas condutas morais, dá-se explicitamente nas formas mais elevadas de liberdade, nos atos de decisão e criação livres, cujos motivos são criados na própria efetividade do ato.

Se a experiência moral quotidiana se realiza em condutas fundadas em fins morais, a experiência moral imediata se revela em primeiro lugar como experiência de deveres, não deveres formalizados, fixados em regras, mas deveres ideais. Dever que nos leva a cumprir ou deixar de cumprir as regras, normas e imperativos, e cujo fundamento se encontra no valor que é apreendido quando de sua efetivação, e desta forma reside aquém do conteúdo intrínseco de uma regra ou mandamento. Quando obedecemos ao preceito de "não matarás", ou quando matamos, o fundamento de nossa ação estará, se ela for moral, não na simples aceitação ou negação deste preceito, mas no valor que neste ato se dá de forma irresistível, levando inclusive à subversão da norma. Os deveres, experimentados concretamente nos atos que os realizam, são deveres dinâmicos, e pressupõem a experiência de valores que se dá concomitantemente.

A experiência dos deveres é pois o primeiro plano da vida moral. O segundo plano é o da experiência dos valores, dados nos atos de decisão que quebram e ultrapassam fins e alternativas, de tal forma que os valores, longe de precederem temporalmente às decisões, surgem quando de sua realização. Os valores, alógicos e de impossível construção teórica, são irresistíveis, no sentido de que superam a resistência interna do sujeito e significam sua efetiva participação na ação que experimenta os valores. Pois, pela sua característica de mobilidade e irresistibilidade, o valor nunca se dará apenas em uma tendência, ou numa simples preferência subjetiva do sujeito, mas sempre em uma ação ativa, na qual o valor surge e é vivido pelo sujeito. Em síntese os valores, não antecedendo aos sujeitos que os experimentam nem aos próprios momentos em que se manifestam, são entretanto independentes das subjetividades, às quais se manifestam como irresistíveis.

Aos atos de decisão intuitiva, que apreendem os valores morais, surgem obstáculos constituídos não por outros valores, experimentados que sao nos próprios atos, ou pôr alternativas, pois que a decisão as supera e ultrapassa, mas por decisões-ações de outros sujeitos. Este choque de atos e valores de sujeitos distintos, não raro antagônicos, revela a cada sujeito a existência dos demais, com seus valores próprios. E se este choque nos permite participação ativa nas decisões de outros sujeitos coletivos e individuais, apreendemos valores específicos provados por eles, assim como valores de conjuntos (transpessoais)(18). A experiência dos valores morais será uma experiência por decisão participante nas decisões de outros eu e grupos, tanto quanto uma decisão própria do sujeito individual ou coletivo, e estas decisões se interpenetrarão numa só unidade. Estamos diante da concepção transpersonalista, na qual nos deteremos mais adiante.

Sendo o grau mais elevado de liberdade o de criação, a participação dos sujeitos coletivos e individuais em valores não os subordina a estes valores. Os valores são ultrapassados por atos de criação que revelam novos setores do mundo ideal: na base da experiência dos valores figura a experiência da liberdade criadora. Em resumo, manifestando-se em diversos graus de participação da vontade clarividente, a liberdade humana passa de um plano de luta contra obstáculos, em que a experiência da liberdade será a experiência da necessidade (liberdade formal), para um plano mais elevado, onde a liberdade se guiará pelas próprias luzes, apreendendo seus motivos e obstáculos não como exteriores, mas como dados no processo imprevisível da própria ação.(19) No nível desta liberdade, de decisão e criação (liberdade material) se explicita a liberdade como moral, por ser a manifestação da vocação única do sujeito. Na vida moral quotidiana, por sua vez, superando as normas pelos deveres, os deveres pelos valores, os valores pela vocação ideal, a liberdade comparece sempre, mesmo em estado virtual, e vai dar a estas experiências o fundamento de moralidade.

* * *

O cotejamento da descrição da estrutura da vida moral, tal como é feito em Moral Théorique et Sciences des Moeurs, com a descrição dos graus da liberdade humana em Déterminismes Sociaux et Liberté Humaines, cujo quadro sumário demos mais acima) revela a tentativa recente de despir a liberdade de sua conotação moral, chegando Gurvitch à afirmação de que "teria cometido o erro de reduzir a decisão apenas à participação na criação de valores morais, negligenciando o fato de que a decisão como liberdade possui muitos aspectos alem dos que se ligam à vida moral"(20). Parece-nos, entretanto, que a origem fichteana que informa esta classificação dos graus de liberdade, fundada em uma íntima ligação com a análise da experiência moral, não permite que se tome uma coisa independentemente de outra, sob pena de impedir a compreensão mais profunda da concepção gurvitchiana de liberdade.

A correspondência é inequívoca. Os graus menos intensos da liberdade humana, liberdade de preferências subjetivas, liberdade de realização inovadora, corresponderão à liberdade "formal", em que se manifesta a "vontade natural" do sujeito, que quando fechada em si mesmo é arbítrio, capricho, vontade cega, a liberdade de indiferença da consciência fechada". "Se entretanto, ela se deixa guiar pelo dever, torna-se escolha entre deveres, ou revolta contra os deveres": é a liberdade "real" fichteana, grau inferior da vida moral, cuja realização plena se dará como plena atividade, liberdade "material" de decisão e criação. "Do ponto de vista desta liberdade, os atos de decisão e criação são os únicos 'livres', porque apenas eles participam de maneira direta da liberdade criadora; o arbitrário - vontade cega desprovida de motivos - e a escolha subjugada por motivos impostos pela inteligência não são, pelo contrario, senão formas de avassalamento da vontade"(21).

Em Déterminismes, vemos que a liberdade de escolha é aquela em que a vontade que guia a conduta torna-se atual, e o elemento de abertura começa a predominar sobre o fechamento (pag. 87). A liberdade decisão já é caracterizada como liberdade "heróica, que assume grandes riscos e não se detém diante de nenhum perigo, nenhum sacrifício", sendo que nela "são apreendidos a experiência especifica e a vocação particular dos Eu, dos outro, dos nós, dos grupos, das classes sociais, das sociedades inteiras(pag. 92). E da liberdade~criação, enfim, "ponto culminante da liberdade humana", afirma-se que seu drama "não pode e não deve ser superado, pois corresponde exatamente ao drama da liberdade humana" (O grifo é nosso).

Diante de tão épicas expressões, não cabe dúvida quanto à permanência do caráter moral das formas superiores da liberdade humana na obra sociológica de Gurvitch, se o fundamento da moralidade é a realização das vocações específicas dos sujeitos sociais. Mas esta desvinculação entre liberdade e moral, que é tentada visando separar a obra sociológica de seus fundamentos filosóficos, é levada ao extremo: "É confundindo a liberdade humana", lemos em Déterminismes, e em particular a liberdade criadora com o critério do bem, com o ideal, com o valor supremo, que vamos constatar com horror os danos possíveis da liberdade humana ascendendo aos comandos dos determinismos sociológicos". A liberdade humana poderá inclusive chegar à destruição do próprio homem, com a agravante de que, livre dos determinismos, ele seria o único responsável pela própria destruição(22).

A "confusão" entre liberdade e moral, que Gurvitch faz em Moral Théorique, assim como em toda sua obra anterior à Vocation, para não cair em uma justificação moral absurda dos atos de liberdade atentatórios à própria existência humana, de cujo perigo o autor nos adverte, encontra uma saída filosófica na teoria do transpersonalismo. O transpersonalismo, em síntese, procura fundamentar a incompatibilidade de uma atitude contrária ao homem com a verdadeira liberdade, o que de um lado conduz a uma metafísica, e de outro à filosofia social.

Cabe dizer, finalmente, que o próprio Gurvitch de Déterminismes não deixa de lado sua concepção filosófica e ética da liberdade, quando assinala o perigo do monopólio da liberdade por órgãos governamentais no regime comunista (pag. 295), o perigo da anulação da liberdade nos países capitalistas pela "estandardização, publicidade, as armas de sugestão coletivas e da propaganda" (ibid) e finalmente o aspecto positivo da estrutura do coletivismo pluralista descentralizado(23) , que consegue superar o risco da liberdade e "fazer predominar em seu seio a liberdade de criação sobre os outros graus da liberdade humana". Sem dúvida esta última é a única liberdade autêntica, pois que não se impõe sobre as demais e permite a cada sujeito individual ou coletivo a realização de sua vocação. As demais são formas enganosas de liberdade.

E assim termina Les Déterminismes Sociaux et la Liberté Humaine: "Les chances de la liberté humaine, collective et individuelle (...) doivent être reconnues considérables. C'est a nous qu'il appartient de les réaliser."

IV - metafísica: o transpersonalismo

A teoria do transpersonalismo ocupa um lugar proeminente no pensamento gurvitchiano, como fundamento da integração das vocações individuais em uma totalidade. Em L'Idée du Droit Social, caracteriza o autor o transpersonalismo como "uma concepção ética particular que sintetiza a oposição entre o individualismo e o universalismo na idéia de uma onda superconsciente de criação pura". No transpessoal, o todo é distinto da soma de suas partes, mas não lhes transcende nem se opõe a elas, sendo ambos reciprocamente imanentes(24).

Dentro da concepção transpersonalista, as vocações dos sujeitos sociais, apesar de únicas e individualizadas, realizando valores alógicos e irrepetíveis, não significam uma absolutização de cada sujeito em si mesmo. A experiência moral de cada um, confrontando-se com as experiências dos demais, conduz à experiência dos valores de outros sujeitos, e à participação em valores comuns, transpessoais. A experiência da liberdade criadora integra todo sujeito coletivo ou individual em um conjunto de criação que ultrapassa e engloba todas as consciências morais enquanto elementos imanentes, conjunto que recebe a denominação fichteana de "onda transpessoal de criação"(25). Do individual chega-se necessariamente ao coletivo, e a experiência do pessoal conduz à experiência do transpessoal.

A liberdade criação, que supera o próprio mundo dos valores, se caracterizará como aquela na qual torna-se clara a interdependência entre a liberdade coletiva e a liberdade individual. "De fato, a criação humana tem tendência a participar em diferentes graus dos conjuntos de criação futuros, presentes e mesmo passados"(26). E isto é possível porque "a experiência da liberdade criadora é a que faz ressaltar com maior intensidade a integração da pluralidade dos dados morais equivalentes em um conjunto onde eles se completam como elementos indispensáveis em sua originalidade absoluta"(27) A experiência da liberdade criadora une as consciências em toda sua profundidade, conduz à originalidade perfeita e revela ao mesmo tempo seu caráter indispensável ao conjunto, no todo da criação. Este todo é a "onda transpessoal de liberdade criadora" (Espírito), conjunto especificamente moral, todo infinito que entrevemos quando, na análise da experiência moral, fazemos ressaltar a presença da liberdade criadora, que servirá de base à verificação filosófica da objetividade dos dados diversos do vivido social, em oposição às ilusões coletivas(28).

Este "todo infinito" de valores morais, no qual se integram os valores irredutíveis entre si, surge necessariamente como a solução filosófica que concilie a pluralidade irredutível dos valores morais, sem também lhe sobrepor uma moralidade transcendente. A integração das diversas consciências no transpessoal, existente apenas como ideal moral, deriva entretanto da constituição social do homem, que só se efetiva como tal na medida em que reforça sua sociabilidade. O homem está destinado a viver em sociedade, vemos em Fichte, é seu dever viver nela; ele não é homem se está em contradição com ela, e se vive isolado. Não é senão entre os homens que o homem se torna um ser humano(29). A participação do homem na totalidade humana concreta, no plano ideal a onda transpessoal de liberdade criadora, no plano social a comunidade, pressupõe um conceito de justiça que permita a integração do todo e das partes numa só totalidade; onde um não subjugue os demais, e a realização de cada um dependa da realização de todos: a justiça social. O conceito de justiça social é atingido pela análise da vida jurídica, a qual é sempre a tentativa de aplicação da idéia de Justiça em uma sociedade dada(30).

* * *

A experiência da liberdade material é a experiência do Espírito, o todo da liberdade criadora de que participo quando, "por um esforço de minha vontade, eu me elevo ao mundo espiritual da liberdade, que é um salto absoluto, uma vivacidade absoluta, uma produção absoluta não se apoiando em nada. Este mundo, por minha decisão livre, penetra em mim, e sou desde então membro do mundo da liberdade".(31)

Estamos em plena metafísica fichteana, base da filosofia de Gurvitch. O espírito, em que se unificam as atividades livres, é uma realidade transubjetiva. A matéria empírica, enquanto não conhecida, destituída de determinação, ocupa a ordem infra-objetiva. A de terminação da matéria se dá através do Logos, que lhe é oposto e para ela se orienta, e lhe dá uma determinação objetiva, isto é, válida independentemente do sujeito: é assim uma realidade transobjetiva, Estes domínios, cada qual irredutível aos demais, assim como o domínio da idéia de beleza (no qual se integram os valores estéticos), surgem como disjunções do Absoluto, que e anterior e superior a estas disjunções, conseqüentemente impredicável e inassimilável, do qual "compreendemos apenas que não podemos compreendê-lo"(32)

Os domínios ideais, revelados na experiência social dos sujeitos, nem por isto deixam de possuir objetividade e validade próprias. "O campo de visão do reino espiritual pode e deve ser sociologicamente limitado e muda de uma época social para outra época social, de uma estrutura social para outra estrutura social, sem que isto afete em nada sua objetividade e supratemporalidade"(33). O sujeito social, existindo no mundo material e dotado de vontade, experimenta ao mesmo tempo o sensível e o ideal, este como ideias lógicas (participação no Logos), liberdade (participação no Espírito) e idéia de beleza (participação no Belo). A reflexão sobre a experiência da liberdade permite a filosofia do Espírito, (moral), a experiência das idéias lógicas permitirá a lógica propriamente dita, a reflexão sobre a experiência dos valores estéticos servirá de base à estética. Se o direito é a manifestação sensível do espiritual, a experiência que permite a filosofia do direito será um intermediário entre a experiência moral e a experiência das idéias logicas(34). Quanto à experiência mística, enfim, base para a filosofia da religião, não será jamais a experiência direta do Um, pois as disjunções irredutíveis do Absoluto são experimentadas tão diretamente quanto os próprios dados, escapando pois ao homem tal experiência direta. Antes de qualquer outra coisa, teremos um ato de angústia intuitiva, uma nostalgia do Absoluto que não se dá à experiência(35).

A filosofia, em seus diversos setores, terá como objetivo não a emissão de juízos de valor, pois que os valores são dados objetivamente, mas juízos de realidade, sobre a integração ou não dos valores e fatos normativos (a experiência jurídica) em suas totalidades infinitas específicas(36). Para isso, sua tarefa inicial será a de fazer ressaltar a especificidade da experiência a que se refere, através de um método específico de redução e inversão, de cunho fenomenológico e bergsoniano. Para sua tarefa, a filosofia precisará de uma descrição da totalidade da experiência humana naquele setor, isto é, das sociologias especiais da moral, da arte, do direito, da religião, etc. Além do método filosófico, carecerá de um método propriamente sociológico.

Segunda parte - questões metodológicas

I - Os Quadros da Sociologia Estrutural

Partindo de uma concepção ética essencialmente empirista, de uma filosofia que não deduz nem prescreve, que "não admite julgamentos de valor, mas julgamentos puramente teóricos, sobre valores efetivamente vividos e de sua necessidade objetiva, ou seja, de sua capacidade ou incapacidade de serem integrados no todo infinito"(37), a sociologia surge como a ciencia que proporcionará o conhecimento total e particularizado do fenômeno humano, de forma absolutamente neutra e desinteressada, conhecimento este que sirva de base à reflexão filosófica.

A ciencia sociológica terá como objetivo a apreensao do fenômeno social enquanto totalidade, na qual os fenômenos da subjetividade não sejam eliminados em benefício de qualquer rigor científico, mas que tambem não sejam hipertrofiados, levando à simples supressão dos elementos determinantes e configuradores desta subjetividade. Os quadros em que os fenômenos sociológicos são estudados serão os do fenômeno social total, categoria por definição mais rica que qualquer aspecto isolado que se considere. Os fenômenos sociais totais de caráter global serão apreendidos através de seu elemento configurador, a estrutura, que por sua vez é operada por tipos. Os fenômenos sociais totais de menor envergadura, grupos, serão estudados por uma tipologia diferencial, alem de integrados no quadro global. Finalmente os fenômenos sociais totais micro-sociológicos serão estudados de forma sistemática, através das "formas de sociabilidade", dispostas logicamente e que darão as diversas maneiras de se estar ligado "pelo todo e no todo". A função explicativa da ciência será apreendida mediante a integração dos fenômenos em seus quadros respectivos, mediante procedimentos técnicos que respeitem as nuances, as imprevisibilidades e as descontinuidades entre os quadros e seus aspecto particularizados. A presença da liberdade humana dentro dos quadros sociais torna sua apreensão extremamente precária, pois que esta liberdade escaparia a qualquer tipificação ou caracterização, objetivo da sociologia na construção de seu objeto(38). Na realidade "a liberdade não pode ser nem deduzida, nem explicada, nem tirada de qualquer construção. Não se pode senão prová-la, vivê-la, experimentá-la e descrevê-la a seguir"(39).

* * *

A apreensão dos fenômenos sociais de larga envergadura, classes sociais, sociedades globais, será realizada através dos tipos de estrutura social, "substitutos, intermediários, obras complexas, armaduras dos fenômenos sociais totais que as desbordam"(40). As estruturas serão definidas como equilíbrio precário de hierarquias múltiplas, e observar-se-á que as estruturas têm uma existência real, diferente do fenômeno social total assim como do conceito que a apreende, o tipo. Mais do que o Fenômeno Social Total, a estrutura admite uma tipologia, "mas devemos atentar bem e não confundir uma construção conscientemente artificial, feita pela sociologia, e que não possui senão uma validade operacional - o tipo - com a estrutura que designa um setor, uma parte da própria realidade social", adverte o autor.

Da polêmica estabelecida em torno do conceito de estrutura social, considera Gilles-Gaston Granger(41) que decorre de um mal entendido, uma concepção ontológica, de Gurvitch, em contraposição a uma concepção puramente operacional, de modelo, utilizada entre outros por Claude Levy-Strauss. Gurvitch operaria com um ser real, setor efetivamente existente e constatável na realidade social, ao passo que seus opositores trabalhariam em modelos construídos abstratamente. Para Granger, esta estrutura não seria pois "senão um dos modos de ser possíveis do fenômeno social, que pode se apresentar como estruturado ou mesmo como 'a-estrutural'. É claro que na perspectiva ontológica que é a sua, o autor não pode senão repelir como incongruente a idéia de uma estruturação - para nós metodológica - do amorfo" (pag. 36). Haveria entretanto para Gurvitch um momento de apreensão abstrata, que se localizaria no estudo das conjunturas sociais, apenas indicado.

Na realidade não falta a Gurvitch o momento abstrativo, que é efetivado com os tipos de estrutura. Mas o autor não explica como passa da estrutura ao tipo, do objeto ao seu conceito. "Ora deve-se dizer", argumenta Granger, "que mesmo concebido ao nível do fenômeno, do ser objetivo, a estrutura social não pode ter um sentido preciso, não pode tornar-se um conceito senão graças à elaboração do pensamento abstrato", e a tipificação, da forma imprecisa que é proposta, não chega a realizar esta abstração. Em síntese, o mal entendido "consiste, de uma parte, em recusar um método em nome de uma ontologia", e de outra, "identificar confusamente matemática e medida". Pois o fato de a estrutura ter uma realidade fenomênica não exclui a necessidade de uma conceituação de tipo matemático, que não significa necessariamente quantificação.

Enquanto Gurvitch pretende a apreensão total e minuciosa do fenômeno social, propõe Granger uma ciência menos pretensiosa, que a partir de determinadas constantes e pela consideração de variáveis estratégicas, permita uma previsão dos fenômenos, e assim a possibilidade de uma ação humana eficaz sobre eles. É este exatamente o caminho que tomaria Levy-Strauss, com uma noção instrumental de estrutura, que não se apresenta como sistema de explicação global, esgotando o campo total do humano. "Mas esta limitação é exatamente a sua grande fecundidade. É justamente porque o fato humano é total que o pensamento estrutural se coloca explicitamente em uma perspectiva que é sempre, de certa maneira, uma perspectiva de conjuntura, que não visa senão uma modalidade estrategicamente determinada do ente". E é a esta apreensão que Gurvitch não chegaria, por um "pessimismo epistemológico" que faz a ciência social impotente para a previsão, e assim sem garras sobre o real, apesar de suas grandes pretensões(42). Operacionais seriam então tanto os tipos de Gurvitch quanto os modelos estruturais, mas enquanto a concepção ontológica de estrutura não leva senão à um processo de tipificação impreciso que se revela impotente enquanto ciência pragmática, as estruturas abstratas, puramente conceituais, se manifestam como instrumentos hábeis operacionalmente.

A partir de suas origens, a sociologia de Gurvitch jamais poderia orientar-se para a construção de modelos abstratos operacionais, pois embora pretendendo-se desvinculada da filosofia junto à qual surgiu, continua dentro do mesmo espírito de apreensibilidade total do homem em todas suas manifestações, mormente as mais espontâneas e irracionais. Na realidade o ideal científico gurvitchiano não corresponde ao da "science apliquée", e a operacionalidade de seus modêlos não se prende à manipulação do social, idéia que repugna como intromissão da tecnocracia no conhecimento sociológico. O que pretende é o conhecimento exaustivo da totalidade da experiência humana, para que a filosofia, "conhecimento de 2 grau", possa iniciar sua reflexão.

II - o coeficiente humano - a) hiper-empirismo dialético

Projetando seu ideal científico para a totalidade dos cientistas sociais, considera Gurvitch que a divisão da sociologia em escolas e correntes deriva de sua imaturidade científica, da parcialidade em que permanecem cada uma das diversas tendências. Os conflitos das escolas são "doenças infantis", "testemunhando a dificuldade dos problemas, aspectos e perspectivas que não se conseguiu ainda dominar". E o autor está convicto de que a sociologia está em vias de se tornar uma ciência, na qual "o coeficiente humano ou existencial" pode ser reduzido, na medida em que dele se toma consciência.(43). A preocupação em superar o coeficiente humano ou existencial no conhecimento sociológico vai se tornar central em Gurvitch, e o caminho indicado para esta superação, no plano metodológico, será o hiper-empirismo dialético. Suas linhas gerais, expomos a seguir:(44)

No conhecimento de uma realidade complexa, variada e descontínua, como a realidade social, as categorias com que os estudiosos buscam apreende-la são sempre limitadoras e deformantes. Encarando a realidade da experiência humana por categorias fixas, tratando-a racionalmente conforme o arbítrio do estudioso, chega-se a teorias e formulações arbitrárias, se não completamente divergentes da realidade da experiência vivida. E no entanto, não se pode evitar algum tratamento, pois a tarefa científica consiste em construir seu objeto próprio através da manipulação do domínio por um método específico.

Contra estas deformações da razão, o empirismo teria representado sempre, em todas as suas formas, uma revolta contra o empobrecimento artificial da experiência, enquanto que a dialética teria pretendido sempre colocar em questão conceitos firmados, pela sua contraposição a outros, da confrontação dos quais resultariam conceitos mais válidos, mais abrangentes.

Mas os empirismos de maneira geral limitavam a experiência a apenas alguns de seus aspectos, enquanto que as dialéticas eram sempre domesticadas, ascendentes ou descendentes, variando com as posições filosóficas que as orientavam para fins preconcebidos. Ora, a dialética que queira ser válida há de ser "impenitente e intransigente", "não domesticada", e tem que ser independente de qualquer otimismo ou pessimismo, de qualquer concepção do mundo, pois não constitui uma filosofia, podendo, isso sim, precede-las, salvando-as de unilateralismos deformantes. Também os empirismos não podem prender-se a nenhuma limitação, ao empirismo dos sentidos, por exemplo, pois existem tanto as percepções sensíveis quanto a experiência dos valores e objetos ideais.

Se a consciência é parte do ser, como tendente a ele, e se o ser pode ser considerado como presente à consciência, sem lhe ser dado, a dialética, movimento do ser e método de conhecimento, não é um deles somente, pois as próprias relações entre o método e a realidade devem ser dialetizadas. "Toda a realidade que podemos conhecer e compreender já é dialetizada pelo próprio fato da intervenção do humano coletivo e individual, não importando que esse humano seja manifestado por método ou fora de todo o método". E esta realidade humana é a experiência humana total, a própria subjetividade, o mundo que os homens vivem, constroem e conhecem, o meio que os rodeia, que o transforma e que ele transforma.

A experiência é a fonte única do conhecimento, e a dialética visa à flexibilização e renovação permanente dos quadros de referencia para a apreensão da experiência constantemente renovada e fluida. Como a experiência quotidiana não é jamais totalmente imediata ou totalmente construída, mas sempre intermédia entre os dois, a dialética hiper-empírica procura apreende-la em todos seus graus de maior ou menor espontaneidade, contradições e incoerências. Faz-se uso, assim, dos procedimentos operatórios de complementaridade, polaridade, ambigüidade, reciprocidade de perspectivas, implicação mutua e outros que forem descobertos, tendo-se sempre em vista que o objetivo de sua utilização é a demolição perpétua dos conceitos, a destruição de tudo que possa impedir ou dificultar a entrada em contato com as sinuosidades do real. A pluralidade de técnicas de dialetização é considerada como a superação de "um dos graves erros de toda a dialética passada", que era de reduzir os diferentes procedimentos operatórios a apenas um, o da antinomia ou polarização entre contrários.

Em síntese, o hiper-empirismo dialético parte da consideração de que o conhecimento científico, efetuado através das categorias que empobrecem a experiência, é sempre limitador. E a solução que encontra é a demolição ate ao limite dos quadros conceituais, transformando-os em massa quase amorfa, que possa cobrir integralmente a experiência em todos seus meandros e nuances. É reduzir ao mínimo o intermediário entre o conhecimento científico da experiência e a experiência propriamente dita.

III - o coeficiente humano - b) sociologia do conhecimento.

Vimos que o hiper-empirismo dialético pretende realizar a eliminação das deformações que inevitavelmente surgem nos atos de conhecimento. Mas a experiência humana é sempre uma experiência configurada, e se realiza conforme a experiência anterior já vivida pelo agente da experiência, conforme seus valores e sua expectativa ante o que para ele é problemático. Desta forma, o sujeito se relaciona com o objeto inevitavelmente de forma definida, o que determina o "coeficiente humano" que se pretende eliminar. E o próprio Gurvitch reconhece que este coeficiente, "mesmo trazendo uma limitação social ao campo de visão, revela ao mesmo tempo aspectos e setores desconhecidos da realidade e da verdade, em sua variedade infinita."(45). E continua: "não duvidamos ser a sociologia do saber, quando dirige suas analises para a própria sociologia, a mais apta a depurar até ao limite esta ultima, abrindo-lhe novos domínios de estudo".

Entretanto, em Les Cadres Sociaux de la Connaissance Sociologique(46), vê-se apenas o intento de realizar a primeira tarefa, ficando a segunda sem qualquer efetivação. Para esse fim, o fruto da sociologia do conhecimento seria o de "por entre parêntesis tanto quanto possível, o coeficiente de avaliação e o coeficiente social e humano que são próprios ao conhecimento sociológico" (pag. 166), "dentro de um esforço para a sociologia tornar-se cada vez menos dependente dos juízos de valor espalhados no meio social dominante, e das finalidades que lhe são impostas pela estrutura social em que se manifesta" (pag. 170).

É o fantasma da tecnocracia, da subserviência da ciência e do homem à máquina que o subjuga, e o coloca como simples peça da engrenagem que não controla, que leva às preocupações acima, que possam subtrair a ciência social à subserviência inumana. A sociologia teria tendência, em uma sociedade tecnicizada, em tornar-se também técnica. Mas a tendência de transformar os sociólogos em "técnicos de administração, e mais exatamente, da manipulação do homem, é muito perigosa"(pag. 172). Perigosa não apenas enquanto preocupação ética, mas inclusive em um prisma científico, pois limitaria horizontes da visão sociológica, como vimos anteriormente.

Mas se o "coeficiente humano", ou seja, a ciência elaborada a partir de um prisma particular, traz limitações, traz também a revelação da aspectos insuspeitos da realidade. O verdadeiro problema consiste em mostrar como e em que medida esta revelação é feita, e se a presença do humano, antes que uma limitação a ser superada, possa ser, de maneira explícita, o ponto de partida para a fundamentação da ciência do homem. Qual o ponto de vista, qual o coeficiente humano que limita a realidade, ou a abre para o estudioso? Trata-se apenas de uma questão de escrúpulos, higiene mental, ou de superação de "obstáculos epistemológicos", etc?. Ou não se trataria de um fenômeno histórico, passível também de um conhecimento científico, o grau de totalização que atinge hoje a ciência do homem? Se Gurvitch consegue propor um sistema de abrangência universal, será isto um fato apenas interno, fruto de um desenvolvimento imanente da ciência sociológica, ou um fenômeno que só cobra sentido dentro de uma totalidade humana com uma configuração histórica determinada passível de explicitação? Questões que não encontram resposta dentro do sistema de Georges Gurvitch, que admite por hipótese a possibilidade de um conhecimento ao mesmo tempo rigoroso, imparcial, total e neutro. ***

A ser válida a interpretação de Granger, a sociologia de Gurvitch é tecnicamente inoperante, ainda que se possa dizer que ela não tenha esta pretensão. O hiper-empirismo dialético, antes que um método rigoroso, é uma propedêutica, revela antes uma preocupação, sem dúvida elogiável, que um procedimento eficaz.

Especialmente no que se refere à dialética, quer nos parecer que o combate às "domesticações", que tornariam as dialéticas "ascendentes ou descendentes", redundou em eliminar o aspecto fundamental da dialética (ao menos hegeliana) onde o que importa é antes o processo que a relação. Neste sentido, o "descobrimento" de novas técnicas de dialetização significa na realidade um empobrecimento da dialética, ao ignorar que a contradição é antes de tudo negação. O hiper-empirismo dialético termina com um ser enriquecido sinuoso e contraditório, existente na dimensão tempo, e de impossível apreensão. E apesar das contínuas referencias ao estado de mobilidade, precariedade, temporalidade, etc., do ser social, parece-nos que Gurvitch não chega à idéia de processo, de um ser que não é desta ou daquela maneira, mas devém, e é apreendido não enquanto dotado de mobilidade ou temporalidade, mas exatamente enquanto devenir.

No que se refere à sociologia do conhecimento, cabe a afirmação inicial que Gurvitch não admite determinação do conheci mento pelo meio social, mas apenas o estabelecimento de relações funcionais entre um e outro. A validade do conhecimento independeria do meio em que se manifestasse (estes seria o equívoco de Manheim, ao confundir o plano sociológico com o epistemológico), e a influencia dos quadros estaria apenas na limitação do campo a ser conhecido.

Ora é a esta limitação que Gurvitch pretende se subtrair, não só enquanto sociólogo mas inclusive na filosofia, que, como vimos anteriormente, se apóia no material colhido pelo conhecimento sociológico. No que toca particularmente à sociologia e epistemologia, uma das contribuições que aquela traria a esta última consistiria em "depositar, diante do trono desta ultima, um tesouro de materiais concretos e empíricos". Permanece ignorada a limitação sociológica ao campo a ser conhecido, e Gurvitch continua preso ao pressuposto da possibilidade de um conhecimento total e neutro; nesse sentido, não escapa à tese de Mannheim sobre a "intelligentsia", que atingiria ao conhecimento total pairando acima dos partidos e facções que se entrechocam.(47) (3).

Sobre a tese de Mannheim, tão criticada, não nos cabe aqui deter. Seria o caso de comparar o intelectual de Mannheim, o cientista neutro e desinteressado de Gurvitch e o intelectual marxista, que por uma angústia sintoniza com o proletariado, encarnação histórica da moral e da verdade do processo(48). Em que medida cada um deles realiza ou fracassa no ideal de apreensão total do fenômeno social humano?

IV - a explicação

Apesar de seu método tipológico, a sociologia é uma ciência essencialmente explicativa. Enquanto tal, ela não pode ser senão determinista, no sentido de que pressupõe a possibilidade de integrar os fatos que estuda em um quadro (...) de certa coerência relativa"(49). Estabelecidos os quadros (tipos de estruturas, grupamentos e formas de sociabilidade), construídos de forma empírica, eles permitirão a tarefa explicativa, realizada pelo seu relacionamento com os fenômenos de forma definida.

A tarefa inicial da explicação será pois. o estabelecimento do tipo de determinação existente entre o fato e o quadro, o que será feito através dos procedimentos técnicos do determinismo. Estes procedimentos vão desde as leis causais, "que não representam senão uma combinação muito especial de integração em conjuntos reais, cuja coesão e equilíbrios reforçados dependem de exame", até as causalidades singulares, que fogem ao típico prendendo-se antes ao histórico e irrepetível(50). E quando não for possível o estabelecimento de relações causais, ligadas ou não a leis, lançar-se-á mao das covariações, correlações e regularidades, chegando-se até à integração direta nos conjuntos, "quando não é possível estabelecer o tipo de correlação entre o fato e o quadro, embora sua determinação não pareça inspirar dúvida".

Falando sobre "o que o determinismo não é", procura Gurvitch mostrar que ele não possui, inicialmente, o caráter de necessidade filosófica (fatalismo, necessidade metafísica ou transcendental), ou também um caráter de necessidade lógico-matemática. Não se dando no plano especulativo nem no plano dedutivo ("silogismos que não mordem sobre a realidade e que não servem para expor senão o que já se conhece"), restaria apenas o plano empírico, em que os relacionamentos obedeceriam a necessidades meramente factuais. o determinismo implica apenas, afirma, a suposição básica de que "existem conjuntos ou quadros reais, ou mais largamente, universos reais e concretos aos quais podemos atribuir certa coerência cujo grau é muito relativo e variável"(51).

Trata-se, no determinismo, do estabelecimento de graus mais ou menos constantes de relações empiricamente observadas, sem o sentido de necessidade ou causalidade interna. Os fenômenos sociais apresentariam diversos graus de coerência, penetrados de diversas maneiras pela liberdade, que consiste exatamente no não-coerente, no irracional, insinuando-se nos interstícios dos quadros, modificando-os e os alterando. O gráu de previsibilidade dos fenomenos, e de sua apreensão conceitual (no caso, tipológica), será inversamente proporcional à presença do elemento essencialmente contingente que é a liberdade, o humano.

A noção de explicação na ciência social, entretanto, não se atém apenas ao aspecto meramente objetivo do fenômeno, tal como fazem supor os procedimentos técnicos de determinação, com sua origens nas ciências naturais. A permanecer neste nível, a tarefa explicativa só teria sentido se permitisse a previsão de outros fenômenos semelhantes, a tomada de posse da realidade social, a manipulação das causas para a obtenção dos efeitos. O critério de validade de uma sociologia, neste plano, seria o de sua eficácia, de sua utilidade pratica. A sociologia de Gurvitch, enfatizando a irracionalidade do humano, parece não conduzir por este caminho.

Mas por um outro lado, que não o meramente empírico, de constatação de regularidades, a função explicativa se ligará à noção de causa, em que um fenômeno será considerado explicado não apenas quando for possível a constatação de regularidades e relacionamentos entre o fenômeno e q quadro, mas quando decorrer de uma necessidade inerente a este quadro. Os fenômenos humanos são dotados de um sentido que apreendemos, e as condutas humanas se desenrolando conforme este sentido permitem-nos introduzir uma relação de causa e efeito que ultrapassa o nível da simples constatação empírica. A lei da oferta e da procura, por exemplo, não é um fato que sem maior surpresa poderia ser inverso, o aumento da oferta levando ao aumento de preços; mas decorre do sistema de valores e interesses da economia de mercado, que apreendemos por compreensão e do qual deriva a lei.

Não falta a Gurvitch, evidentemente, a noção de sentido interno, como se evidencia no uso que faz do conceito de compreensão, em função da qual se daria a explicação: "o determinismo é a integração dos fatos particulares em um dos múltiplos quadros (...); ele situa estes fatos, isto é, os explica em função da compreensão do quadro".(52) E se a riqueza de significações humanas no fenômeno sociológico leva a explicação sociológica a alto nível, esta explicação se coloca fora. do plano do necessário, do conceitualmente apreensível, e permanece em nível meramente descritivo, de constatação.

Com efeito, a primeira regra da explicação dos fatos sociais consiste em integrá-los sucessivamente em quadros cada vez mais abrangentes, culminando nas "conjunturas totais concretas em que agem", que não é senão o momento histórico. E a 7 . regra indica a necessidade de utilizar o procedimento de constatação de determinismos mais explicativo, que é, na ciência do homem, a causalidade singular, histórica. A nona regra, finalmente, preconiza a aproximação entre a sociologia e a história, aonde os sociólogos deverão buscar a explicação(53).

A história é considerada "mais explicativa" que a sociologia, tendo como meta a acentuação das continuidades e passagens entre os quadros, no estudo dos esforços libertários humanos, das "coletividades prometenianas". O método histórico é continuísta, pois busca "preencher as rupturas, lançar pontos entre os tipos sociais que singularizam e individualizam até ao limite, passar sem solução de continuidade das estruturas globais aos fenômenos sociais globais, reconstruindo a continuidade do tempo"(54). Não obstante este método, os fenômenos que estuda são os mais descontinuístas, no sentido de que são livres e irrepetíveis , do que resultará o paradoxo fundamental da historiografia: ciência continuísta dos fenômenos descontinuístas. O fenômeno histórico, considerado essencialmente explicativo, é ao mesmo tempo o mais irracional, o mais rebelde à captação em quadros conceituais. E se a ciência deve ser a ciência do oculto, se "il n'y a pas de science que du caché", "as molas das forças vulcânicas em fluxo e refluxo, das quais os fenômenos sociais são os focos, representam, social e cientificamente, os elementos mais 'cachés'", e sua busca deve ser o fim essencial da sociologia; o que significa que é irracional a verdadeira explicação, irrepetível e imprevisível, passível de descrição e compreensão, jamais de apreensão racional. Explicitamente, "a história nos dá o exemplo de uma ciência procedendo por método individualizante e não buscando nenhuma lei"(55).

* * *

Se é certa, no entanto, a exigência de Gurvitch em rejeitar "a identificação completamente errada entre determinismo e necessidade", entendida como necessidade lógica, transcendental ou metafísica, parece-nos indiscutível que os quadros reais e concretos sobre os quais versa a ciência têm em si uma necessidade específica, que cabe à ciência apreender. A tarefa científica, se não quer permanecer exterior ao objeto, deve penetrar em sua interioridade, e verificar seu dinamismo próprio, que o explica no sentido mais elevado do termo, com a conotação de causa e necessidade.

A aceitação de uma colocação desta ordem implica evidentemente uma tomada de posição epistemológica sobre a possibilidade ou não do conhecimento essencial do objeto pela ciência, em cujo mérito evidentemente não entraremos. Assinale-se apenas que a tese da irracionalidade do real, à qual se opõe vigorosamente Gurvitch, não responde apenas um empirismo tipo Locke ou Hume, tal como nosso autor o admite, criticando apenas seu unilateralismo (cf. hiper-empirismo dialético). Negando a realidade puramente contingencial dos fenômenos, e pretendendo superá-la tanto quanto ao racionalismo metafísico pré-kantiano, assim como ao criticismo, o pensamento hegeliano-marxista propõe uma lógica do processo da relação homem- mundo progressivamente apreensível de forma necessária, essencial e conseqüentemente explicativa. E se o conhecimento essencial e "interno" dos fenômenos naturais, no sentido de uma "dialética da natureza", é discutível, ainda haverá campo para um conhecimento profundo da realidade humana e humanizada, em processo dialético de totalização(56).

Resta saber se é aceitável o conceito fichteano de liberdade, uma liberdade em seu mais alto grau criadora, superior à liberdade meramente formal de resposta a problemas, superação de conteúdos aos quais se vincularia. A validade da concepção irracionalista da explicação gurvitchiana, assim como de sua teoria sociológica e moral, ficam na dependência da superação ou não de Hegel por Fichte. Em que medida "a liberdade concebida como liberdade do espírito absoluto, à qual o 'espírito subjetivo' participa por intermédio do 'espírito objetivo"', sobre a qual Gurvitch pergunta se "merece ainda o nome de liberdade humana", corresponde a verdadeira intuição hegeliana, retomada por Marx?

Segundo Merleau-Ponty, por exemplo, a dialética da Fenomenologia do Espírito difere qualitativamente da Lógica e outras obras de 1827, uma vez que "não pretende canalizar a história total em uma lógica pré-estabelecida, mas trata de reviver cada doutrina, cada época, com toda a imparcialidade que todo afã de sistema parece esquecido"(57). Esta filosofia de Hegel, "militante, não ainda triunfante", parece ser desconhecida para Gurvitch, e o conceito do liberdade aí desenvolvido, dotado de uma lógica imanente, é passível de uma apreensão superior à simples descrição empírica ou compreensão intuitiva. A ser aceita a colocação da Fenomenologia do Espírito, a compreensão escaparia ao dilema Dilthey - Weber, e teríamos ao mesmo tempo razão e liberdade. E se "a mais bela filha de França não pode dar senão o que ela tem" e a dialética de Gurvitch não chega à explicação, o mesmo não poderia ser dito da dialética hegeliana.

V - sociologia e filosofia

A função primordial da ciência sociológica, além do ideal de conhecimento puro, seria de servir de ponto de apoio para a reflexão filosófica. "O conhecimento filosófico é um conhecimento

de segundo ou terceiro grau, que se volta para outros conhecimentos e atos mentais já realizados e se esforça por integrar estas manifestações parciais nas totalidades infinitas: tem assim por objetivo a tarefa de justificar a validade, a veracidade, a realidade, o ser ou o valor de um e outro"(58). A contribuição da sociologia à filosofia é, de um lado, negativa, no sentido de que impediria uma série de perspectivas filosóficas limitantes; mas é também positiva, colocando uma série de questões a resolver.

Dentro desta concepção, os diversos setores sobre os quais incidiriam a preocupação filosófica seriam absolutamente específicos e irredutíveis aos demais, cada um deles rebelde a qualquer construção teórica, e o momento filosófico absolutamente distinto do sociológico. Após a sociologia jurídica ter descrito o fenômeno jurídico, por exemplo, a filosofia procuraria ressaltar sua especificidade imediata. E como o fenômeno jurídico o permite, a filosofia do direito realizaria a construção de seu objeto por via intuitiva, que será a imagem da justiça, obtida pelo tratamento do material empírico por um processo que ressalte sua especificidade essencial(59). A etapa filosófica terá dois momentos de tratamento dos setores infinitos do espiritual, o primeiro cognitivo e o segundo propriamente filosófico.

O momento cognitivo é aquele em que o filósofo, partindo das manifestações sensíveis do fenômeno, procura penetrar em sua interioridade, buscando ressaltar a experiência imediata que lhe é subjacente. "Para atualizá-la, torná-la consciente, e apreende-la em sua integralidade, é necessário, por um esforço de redução e inversão (que se realiza por etapas), voltar da experiência quotidiana da vida jurídica à experiência depurada do imediato"(60). Na sociologia do direito são oito as etapas que que se atravessa do construído até ao "Espírito", e já vimos os níveis da vida moral. É este, sem dúvida, o início do escalonamento do fenômeno social em "paliers en profondeur", característico da obra sociológica posterior.

Significa estes antecedentes que, além da explicação empírica, existiria uma explicação filosófica, que procuraria ressaltar a essencialidade dos fenômenos, à maneira fenomenológica?

Na obra sociológica recente de Gurvitch, é constante a afirmação de que o grau de maior ou menor profundidade de um nível é função apenas da dificuldade de sua apreensão, excluído qualquer juízo de valor. É fortemente acentuado que "as relações entre níveis, camadas e patamares da realidade social são inteiramente variáveis e que as forças dinâmicas de mudança se alteram em função dos tipos de sociedade e sua expressão parcial nas estruturas sociais globais".(61)

No plano sociológico. de constatação empírica, nenhuma hierarquia é proposta. Não obstante, sigamos o caminho para o estudo dos níveis em profundidade desenvolvido em La Vocation Actuelle de la Sociologie

Ultrapassado o aspecto morfológico do fenômeno social, o primeiro nível é o das organizações sociais, que não se bastam a si mesmas, sendo "expressões sempre parciais e insuficientes de níveis mais profundos". "É pois indispensável levar a analise além dos níveis organizados"(62). Chega-se então ao nível dos modelos sociais, mas "abaixo do nível dos modelos, quer sejam técnicos ou culturais, quer representem clichês, tradições, sinais, signos, regras, se encontram os comportamentos coletivos que podem realizá-los: são as condutas mais ou menos regulares"(63). As condutas sociais tem por fundamento a trama dos papéis sociais, e assim sucessivamente. Chega-se finalmente, após uma serie de planos, aos símbolos sociais. Os homens agem conforme os símbolos, mas "se estas condutas coletivas não são forças cegas, quais são os motivos motores, sua inspiração? Quais são os conteúdos com os quais elas entram em contato direto e que se esforçam para revelar ou suscitar por novos símbolos, após a falência dos velhos símbolos em derrocada?"(64) Os"motivos motores'; e os" conteúdos", compõem o nível das idéias e valores coletivos, o reino do espírito na Sociologia do Direito, idéias e valores que são por sua vez apreendidos, provados, vividos, conhecidos, tornados conscientes pelo último nível, o do sujeito propriamente dito, o nível do psíquico, dos atos mentais e estados psíquicos coletivos..

Não cabe dúvida que, ainda que a hierarquia de determinação e explicação dos diversos níveis seja, no plano sociológico, uma questão meramente fática, existe presente uma noção de causa pela qual cada nível explicaria de forma essencial o superior, e seria explicado pelo inferior. Até que a causa fundamental partisse do sujeito em tensão para a espontaneidade, do psíquico essencialmente libertário, "todo grau de tensão decrescente se opondo ao grau anterior pelo seu caráter não-psíquico, e todo grau de tensão crescente se apresentando em relação ao precedente como sendo psíquico"(65) Estamos diante de uma explicação filosófica, que é proposta como não tendo nenhuma relação com a realidade objetiva: a fato de uma obra humana ter por base um ato de liberdade não significa que o comando da história em alguns casos esteja com a obra e não com a criador, com o organizado e não com o espontâneo. A única utilidade da explicação profunda estaria em servir de base à reflexão filosófica "a posteriori", e quando fosse possível (no caso da experiência jurídica) em permitir a construção, de forma intuitiva, do ideal. ***

O segundo momento da filosofia, pois, consiste em um julgamento teórico sobre a espiritual, sobre a objetividade dos valores, da razão, etc.

Mas há uma terceira tarefa ao menos para a filosofia jurídica, que é de propor o ideal e definir a ideia de justiça, "chamada a conciliar de forma prévia as conflitos reais entre os valores pessoais e transpessoais reconhecidos como equivalentes". Diferente do ideal moral, passível apenas de experimentação e reconhecimento de segundo grau, "a justiça constitui, como pela primeira vez evidenciou claramente Fichte, uma etapa para racionalizar e reduzir a um certo aspecto quantitativo a ideal moral, em si alógico".(66)

É este aspecto semi-lógico do fenômeno jurídico que permite, após a reflexão sobre a experiência, propor a estrutura jurídica que mais se aproxime do ideal de justiça. Tarefa à qual se dedica preocupadamente Gurvitch, desde os trabalhos "Le principe démocratique et la démocratie future" e "Socialisme e propriété"(67) , escritos em 1927-8, passando por La Déclaration des Droits Sociaux, proposta para a França de após-guerra, e chegando até à proposição do tipo de sociedade "planificada segundo os princípios do coletivismo pluralista descentralizado", e que "nunca foi experimentada"(68).

Segundo a Déclaration (69), proclamar a declaração dos direitos sociais seria "proclamar de maneira jurídica a negação de toda a exploração, de toda a dominação, de todo o arbitrário, de toda desigualdade, de toda limitação injustificada da liberdade de grupos e dos indivíduos"(pag.79). Entretanto o estado liberal do capitalismo concorrencial, após a revolução francesa, após a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, constrói um sistema jurídico que, conforme mostra Gurvitch, não favorece ou desconhece inteiramente os grupos de caráter não territorial", um direito que "só favorece ao direito estatal e dos indivíduos"(70).

Não caberia à sociologia mostrar por quê a época atual permite uma declaração de direitos que desça ao detalhe da garantia ao trabalho e a subsistência, enquanto que no capitalismo concorrencial se permanecia no geral e no abstrato? No próprio surgimento do estado liberal, não caberia explicar sociologicamente a discrepância entre as formas finalmente adotadas e os projetos avançados dos socialistas franceses, como Luís Blanc e Proudhon? No que se refere às declarações de direitos da URSS, não seria tarefa sociológica explicar como a situação política e econômica determinou os limites e as possibilidades do que foi feito, e indicar quais as condições permitiriam ir alem? Mas Gurvitch apenas consegue assinalar a "genialidade" de Proudhon (pag. 24) e afirmar o fato de que no regime socialista os grupos e indivíduos "não são reconhecidos como centro ativo de proteção de seus direitos; não são chamados a controlar desde a base o poder e não obtêm nenhuma garantia de autonomia e liberdade" (Déclaration, pag.33).

Sob a análise de Gurvitch, estes textos perdem toda a força explicativa como símbolos de riquíssima situação político-social, e são reduzidos a meros antecedentes da Déclaration. A crítica que Gurvitch deles faz é interior, sem sair da "especificidade do domínio", e a superação é buscada a partir de dentro, embora acabe por encontrar, dentre as razões do fracasso de algumas declarações de países de "baixa cultura democrática", fatores não jurídicos (ausência de "garantia social", "reforma de estrutura da sociedade burguesa", etc.). Mas mesmo estes fatores (que a nosso ter ultrapassam os limites estabelecidos pela metodologia das "domínios específicos") decorreriam de uma necessidade não global, mas apenas da realidade jurídica. Gurvitch chega, de uma forma ou outra, à proposição de uma ordem jurídica definida que responda a problemática social contemporânea. De nossa parte, consideraríamos que sua tarefa nesse sentido é perfeitamente explicável, como resposta a uma situação concreta sociologicamente definível. Mas dentro da ciência gurvitchiana, caberia apenas constatar seu ato de rebeldia a uma situação a que não se conforma, no máximo compreendê-lo, e explicar a Déclaration como um fenômeno de causalidade singular: contar como. em um ato de liberdade absoluta, esta declaração foi proposta por nosso autor.

* * *

Julgaríamos, não obstante, que se a sociedade, as organizações e as demais obras, essencialmente humanas, possam em situações concretas comandar e determinar as ações dos homens, demandando um movimento inverso de suprimi-las, haverá ao menos em tese a possibilidade de se estudar de que maneira o produto se "desgravita" do produtor, e como o produtor novamente o assume em outro nível de organização social. Pois esta alienação do produto (não se trata senão disso) se dá de maneira definível ,e passível, em princípio, de estudo rigoroso. O método de Gurvitch permite propor um ideal pluralista em que "as subjetividades individuais e coletivas não se alienem em totalidade transcendente, nem admitem sua projeção como objeto exterior ou sujeito exterior à multiplicidade de seus membros"(71); mais explicitamente, permite fundamentar um direito social fundando em um Nós que "não se aliene" e permaneça fiel a si mesmo, ou seja, "não se submeta seja a uma organização dele separada por um abismo, seja a um chefe carismático, cujo poder, ao invés de ter sua força no Nós, atribui a si mesmo qualidades mágicas". Mas não mostra de que forma esta alienação se produz concretamente, e como permite ou não sua negação.

Vê-se que não falta a Gurvitch a consciência do conceito de alienação, e a importância do método de redução e inversão (abandonado na obra mais recente) talvez resida precisamente na possibilidade de, a cada momento, fazer ressaltar a alienação presente. Mas é totalmente impotente para dizer como surgiu esta alienação, e como ela gera o ato de libertação que a nega. Pois sua sociologia não atinge este nível explicativo, e a filosofia também não trata destas questões, permanecendo apenas na manipulação do material recolhido por uma ciência afinal de contas tão impotente na apreensibilidade total dos fenômenos, na previsibilidade e na explicação.

Bibliografia Citada

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Toulemont, R.. 1955 Sociologie et Pluralisme Dialectique, ed. Nauwelaerts, Louvain.

Notas

*(Curso de Sociologia e Política, Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade de Minas Gerais, 1960)

1. Agradeço imensamente a Fábio Wanderley Reis por ter guardado a única cópia deste texto por mais de trinta anos.

2. Ainda que as obras em lingua francesa sejam acessíveis, é praticamente impossível consultar as obras anteriores a 1930, em russo e alemão. Sobre Fichtes System der Konkreten Ethik ( Sistema de Ética Concreta de Fichte ), obra fundamental inaccessível, tivemos que nos valer da exposição de René Toulemont, 1955.

3. Gurvitch, 1957.

4. Noção de sujeito como liberdade, comum ao pensamento existencialista e intuicionista. Sobre esta concepção, existe entre outras a exposição de Gabriel Madinier, 1947.

5. A vida moral se manifesta em condutas, que são gestos ou movimentos de corpo dotados de significação interna (Gurvitch, 1948, p. 165). As condutas são consideradas ações quando inspiradas por decisões e criações atuais ou virtuais (ibid., p. 169 ). As condutas que permitem experimentar o sujeito são ações, ainda que relativamente às formas mais livres.

6. Gurvitch, 1955, p. 69.

7. id, 1957, p. 69.

8. id., 1956.

9. "Objet et Méthode de la Sociologie" in Gurvitch, 1960, p. 21.

10. Fichte, citado em Gurvitch, 1948, p. 22.

11. ibid, p. 179. Sobre "moralidade", ver mais adiante.

12. Gurvitch, 1955, p. 95. Vale a pena comparar com o trecho célebre de Hegel, a quem Gurvitch nega uma teoria da liberdade:

"Ce qui est limité a une vie naturelle n'a pas, par soi même, le pouvoir d'aller au-de la de son être-là immédiat; (. . .). Mais la conscience est pour soi même son propre concept, elle est donc immédiatement l'acte de outrepasser le limité, et, quand ce limité lui appartient, l'acte d'outrepasser soi-même (. . .). La conscience subit donc cette violence venant d'elle même, violence par laquelle elle se gâte toute sa satisfaction limité. Dans le sentiment de cette violence, l'angoisse ne peut pas s'apaiser; en vain elle veut se fixer dans une inertie sans pensée; la pensée trouble alors 1'absence de pensée et son inquiétude devant cette inertie; en vain elle se cramponne de une forme de sentimentalité qui assure que tout est bon dans son espèce; cette assurance souffre autant de violence de la part de la raison que ne trouve pas quelque chose du bon, précisément en tant que c'est espèce" (La Phénoménologie de l'Esprit).

13. Gurvitch, 1955, p. 84/5.

14. Gurvitch, 1948, p. 24.

15. ibid., p. 36.

16. ibid., p. 166.

17. ibid.

18. ibid., p. 175. Valeria a pena comparar com a dialética do Senhor e do Escravo, na Fenomenologia de Hegel.

19. ibid., p. 181.

20. Gurvitch, 1955, p. 92n.

21. Gurvitch, 1948, p. 81, 82 e 181.

22. Gurvitch, 1955, p. 294.

23. ver abaixo.

24. Gurvitch, 1942, p. 9.

25. Gurvitch, 1948, p. 183.

26. Gurvitch, 1955, p. 94.

27. Gurvitch, 1948, p. 183.

28. ibid., p. 184.

29. Gurvitch, 1932, p. 407.

30. Gurvitch, 1945.

31. Gurvitch, 1948, p. 170.

32. Toulemont, p. 22 e seguintes.

33. Gurvitch, 1945, p. 51.

34. Gurvitch, 1935, p. 51.

35. Gurvitch, 1935, p. 41; 1948, p. 191.

36. Gurvitch, 1948, p. 128; 1935, p. 82

37. Gurvitch, 1935, p. 82.

38. Objet et Méthode de la Sociologie", in Gurvitch, 1960, p.19 e seguintes.

39. Gurvitch, 1955.

40. Gurvitch, 1960, p. 213.

41. Granger, "Évenement et Structure dans les Science de l'Homme".

42. ibid, p. 38

43. Gurvitch, 1957, p. 5.

44. Gurvitch, 1953.

45. Gurvitch, 1957, p. 6.

46. Gurvitch 1959.

47. Gurvitch, 1957, 1958, 1959.

48. André Gorz, 1959.

49. Gurvitch, 1960, p. 236.

50. "Procédés Techniques du Déterminisme", in Gurvitch, 1955, p. 41 e seguintes.

51. Gurvitch, 1955.

52. "Les Règles de l'Explication en Sociologie", in Gurvitch, 1960, p. 236 e seguintes. Sobre a interpretação de compreensão, cf. Gurvitch, 1948, p. 25 e seguintes.

53. Gurvitch, 1960, p. 243/245.

54. Gurvitch, 1956, p. 16.

55. Gurvitch, 1948, p. 28.

56. Discute-se da possibilidade de uma dialética da natureza tal como propôs Engels, mesmo dentro do marxismo, se a dialética é a constituição do real pelo confronto homem-natureza. A propósito desta discussão, cf. Jean-Yves Calvez, La Pensée de Karl Marx, p. 382n, assim como Sartre, "Question de Méthode", in Critique de la Raison Dialectique. Gurvitch, por sua parte, parece levar o conceito de compreensão além das ciências do homem, que é ela mesma tratada de maneira empírica e descritiva. Há quem observe, no entanto, que a única dialética da natureza possível são as próprias ciências naturais, enquanto apenas ás ciências do homem caberia estudo compreensivo, para as conexões objetivas de significado.

57. Merleau-Ponty, 1954.

58. Gurvitch, 1957(2).

59. Gurvitch, 1935, p. 82.

60. ibid., p. 63.

61. Gurvitch, 1960, p. 157; 1955, p. 103, etc.

62. Gurvitch, 1957, p. 73.

63. ibid., p. 76.

64. ibid., p. 102.

65. ibid., p. 107.

66. Gurvitch, 1935, p. 100.

67. Publicado em Gurvitch, 1935.

68. Gurvitch, 1960, p. 232.

69. Gurvitch, 1946.

70. Gurvitch, 1945, p. 307.

71. Gurvitch, 1946, p. 67.

Simon Schwartzman(1)
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon



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