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A Igreja e o Estado Novo: O Estatuto da Família (página 2)

Simon Schwartzman

 

O casamento incentivado, a prole numerosa premiada, a mulher presa ao lar e condicionada ao casamento, a chefia paterna reforçada, a censura moral estabelecida em todos os níveis , as letras e as artes condicionadas pela propaganda governamental: tal é o projeto que sai do Ministério da Educação e Saúde.

O arquivo Capanema contém inúmeros estudos e subsídios para a elaboração deste projeto, que consistem, basicamente, em analises demográficas, por um lado, e materiais a respeito de outros países, por outro. Dentre estes, ressalta um documento do Padre Leonel Franca entitulado "O problema da denatalidade", e que foi sem dúvida a inspiração principal para o Estatuto proposto. Nele, Leonel Franca começa por afirmar que a diminuição da natalidade é o maior flagelo que pode ameaçar uma nação na sua vitalidade. Leva diretamente ao suicídio social". Além disto, esta seria uma doença de cura quase impossível, sendo necessário, portanto, preveni-la. Dai, uma série de sugestões, entre as quais:

- "redução progressiva do trabalho feminino fora do lar (a mulher que trabalha fora, funcionaria ou operaria, ou não é mãe, ou não é boa mãe, ou não é boa funcionaria). O salário familiar permite a volta da mulher a casa, com mentalidade renovada."
-"luta contra o urbanismo. Os grandes centros são hostis às famílias numerosas. Rumo à terra! Rumo ao campo!".
- "proibição de instrumentos e drogas destinadas a praticas anticoncepcionais (veja anexa a lei francesa, de 31 de julho de 1920)".
- "proibição de livros, folhetos, cartazes, filmes, peças de teatro e de qualquer propaganda anticoncepcional."
- "proibição legal eficiente do aborto."
- "conservar o clima espiritual e cristão em que respiram as famílias brasileiras e lutar contra o materialismo que alimenta a concepção egoísta da vida estéril".

Vargas sente, evidentemente, as dificuldades de um Estatuto desta natureza, e prefere ouvir outras opiniões. A critica feita em conjunto por Oswaldo Aranha e Francisco Campos é bastante negativa na forma, mas, curiosamente, não apresenta maiores divergências de fundo. Assim, muitos dos artigos propostos são criticados porque já estariam implícitos na legislação ou na constituição de 1937. Do artigo 13, por exemplo, que previa uma educação diferenciada para os sexos, diz-se que ele "se reduz a uma tirada puramente literária", já que "esses fins já estão implícitos na legislação". O artigo 14, que restringia o trabalho feminino. foi considerado "de caráter puramente regulamentar, visto que os regulamentos relativos à admissão ao serviço público compreendem a restrição recomendada no artigo"; a parte sobre a censura é também considerada supérflua, já que "a propaganda contra a família já é considerada pelas leis em vigor como atividade subversiva"; os empréstimos familiares, finalmente, são considerados como um incentivo monetário ao "casamento de pessoas incapazes ou miseráveis, não cabendo evidentemente ao Estado estimular ou favorecer este tipo de casamento".

Capanema não teria maiores dificuldades em rebater ponto por ponto este tipo de objeções, e isto lhe dá oportunidade para explicitar melhor seus pontos de vista. Em sua "análise do parecer oposto ao projeto de Estatuto da Família", ele reafirma a importância da família para o crescimento demográfico do país, tendo em vista, principalmente, que "as boas correntes imigratórias vão escasseando, e, de outro lado, a nossa legislação adotou, em matéria de imigração, uma política restritiva. E não haveria dúvida de que a grandeza de um país depende, em grande parte, do número de habitantes que contém." Para confirmar isto, cita Daladier, e também Mussolini: "la potenza militare dello Stato, l'avvenire e la sicurezza della Nazione sono legati al problema demografico, assilante in tuti i paesi di razza bianca e anche nel nostro. Bisogna riaffirmare ancora una volta e nella manera piú perentoria e non sara l'ultima che condizione insostituible del primato è il numero"

Ora, a família, base para o poder nacional, está sob ameaça: "também entre nós", escreve Capanema, "contra a estrutura material e moral da família conspiram os costumes", e isto exige ir muito além do que prescrevia a legislação existente. "É sabido que, apesar da declaração constitucional da indissolubilidade do casamento, apesar do caráter anti-divorcista da nossa legislação civil, a sociedade conjugal aqui e ali se dissolve , não para o mero efeito da separação inevitável, mas para dar lugar a novos casamentos, celebrados alhures, sem validade perante nossas leis, mas praticamente com os mesmos efeitos do casamento verdadeiro. Neste ponto da defesa da comunidade conjugal, não pode o Estado cruzar os braços e dizer que o que cumpria fazer está feito." Uma das medidas propostas, a restrição ao trabalho feminino, também é justificada como inovação importante: "a restrição de que cogita o artigo criticado se refere também aos empregos de ordem privada" , diz Capanema, observando que, até então, "as mulheres (eram) continuamente admitidas, sem nenhuma restrição, em quase todos os serviços públicos do país".

A réplica de Capanema conclui, finalmente, com uma visão clara das profundas implicações do Estatuto que propunha: "é necessário realizar uma grande reforma na nossa legislação sobre tudo que diz respeito ao problema da família. Esta reforma deverá consistir em modificações a serem feitas no direito civil e no direito penal, nas leis relativas à previdência e a assistência social, nas leis dos impostos e outras; há de consistir sobretudo na introdução de inovações substanciais de grande importância como selam o abono familiar, o voto familiar, a educação familiar, etc. É de notar que medidas parciais não bastam".

Esta legislação não passaria, entre outras razões pelo fato de que o Governo Vargas preferia sempre a legislação pragmática e casuística à legislação doutrinária e ideológica. Não faltaram, além disso, outras vozes discordantes. Uma delas, cuja influência real é difícil avaliar, foi a de Rosalina Coelho Lisboa, jornalista e diplomata extremamente ativa nos anos 30, e identificada com o feminismo, por uma parte, e com as ideologias de direita por outra. Em 1939, ela escreve a Oswaldo Aranha uma longa carta sobre a questão feminina no Brasil, provocada, sem dúvida, pelo próprio Aranha, no contexto da discussão sobre o Estatuto da Família. Rosalina Lisboa atribui a Vargas um papel importante na melhoria da condição feminina no país. "Antes dele no Brasil a mulher era uma coisa que geralmente estava à venda como objeto de matrimônio (preço: casa, roupa, teto, dinheiro para alfinetes e, last but not least, garantia para os filhos); ou na venda aviltante da escravatura branca." Limitar hoje seu campo de trabalho, impedir que ela possa competir, "leal e limpamente", com os homens, seria voltar atrás na emancipação política que Vargas havia dado à mulher. E Rosalina Lisboa rebate argumentos do próprio Aranha: "Como é possível que se limite a possibilidade de trabalho de milhões de mulheres porque 'há países que não as aceitam e ridicularizam'? Mas você diz: qual tratamento devido ao marido? Vaidade dos homens, terrível e cruel! (...) Pois o marido terá a posição a que ganhar direito - igualdade se é de valor pelo seu lado, e inferioridade se é inferior". . "O elemento melhor do casal é que deve se impor naturalmente" (Arquivo Oswaldo Aranha, OA. 39.00.00/6).

A carta de Rosalina Lisboa desvenda um aspecto central da legislação proposta por Capanema, que não tem a ver nem com a questão demográfica, nem com os princípios religiosos, mas, simplesmente, com os preconceitos e a "vaidade dos homens" . Uma crítica mais profunda ao projeto, feita por um assessor qualificado de Vargas, cujo nome não consta de seu parecer, leva este desvendamento mais longe.

Segundo o parecer, nenhum dos projetos em consideração, o de Capanema ou o substituto de Aranha-Campos, mereceriam ser aprovados. Este último, por ser muito limitado e modesto; o primeiro, por ser, "realmente, um amontoado de disposições legais sem objetivo, inaceitável mesmo como base de discussão. Os seus consideranda são truismos e os artigos de lei bem merecem a critica Aranha-Campos , que é ainda benevolente".

O ponto básico da crítica é estabelecer a dissociação entre o problema demográfico, que o Estatuto procura resolver, e as soluções propostas, que são o fortalecimento da família tradicional e os incentivos econômicos à família e à natalidade. O parecer não se preocupa em entrar no mérito das concepções a respeito da família de um ponto de vista moral, e procura mudar o foco da questão para o exame das condições sociais e econômicas da população brasileira. "É ingênuo citar o recente estatuto da França", diz o texto. "Basta lembrarmos dois ou três fatos da geografia humana e social desse país para verificarmos que não é o nosso caso, também diferente do que apresenta a Inglaterra e a Bélgica". O parecer não cita estes fatos, mas não é difícil imaginar quais sejam: o tamanho reduzido das famílias europeias, em contraposição às numerosas famílias brasileiras; a alta mortalidade infantil em nosso país, em contraste com a Europa; e a composição etária das populações dos dois países.

A consideração destes fatos levaria a uma conclusão óbvia, que o parecer, por motivos também evidentes, deixa implícita: que a preocupação com a manutenção da família tradicional, com a restrição ao trabalho feminino, com a proibição ao uso de anti-conceptivos, a implantação da censura, etc., tem na realidade pouco a ver com a questão demográfica, e muito com as concepções dominantes entre os setores católicos mais conservadores do país. O parecerista vê nas propostas de Aranha-Campos e Capanema implicações políticas e orçamentarias profundas, que necessitariam melhor análise: "parece-me que a União não dispõe nem de meios financeiros nem de aparelhamento burocrático capaz de fazer cumprir a legislação que se pretende decretar. Em segundo lugar, os benefícios do anteprojeto Aranha-Campos viriam afetar de modo vário as rendas da União e, dada a impossibilidade de uma fiscalização séria, constituiriam, em numerosos casos, instrumentos políticos em mãos de municípios em encargo quase total da União".

O caminho alternativo que o parecerista aponta é fazer da questão demográfica parte da legislação social e trabalhista: "auxiliar a natalidade deve ser auxiliar a produção nacional , auxiliar as camadas mais pobres para que elevem a capacidade aquisitiva e, principalmente, melhorem a qualidade da população, tornando-a mais hígida e forte". Assim como a população é diferenciada, seria necessário tratar diferentemente os trabalhadores da indústria, os do campo e os demais. Para os primeiros, são sugeridos auxílios pecuniários para o casamento e a criação de filhos. No campo, o básico seria o desenvolvimento de serviços de assistência médico-higiênicas, e a "distribuição de terras públicas e pequeno empréstimo de instalação ao trabalhador rural que tenha seis ou mais filhos" . Para os demais, uma série de medidas mais indiretas, como a isenção de certos tipos de impostos, facilidade de empréstimos, etc., para o casamento.

E o parecer conclui: "tentativas como a que pretende o projeto Capanema dificultam mais do que facilitam as soluções certas. A participação das mulheres no processo econômico não é um mal. Qualquer observador objetivo, atento às estatísticas, sabe que no Brasil o mal é, verdadeiramente, o reduzido número de produtores que sustentam o peso do orçamento familial"

Este parece ter sido, ao que tudo indica, o golpe de misericórdia. Uma "Comissão Nacional de Proteção a Família" foi estabelecida em 10 de novembro de 1939, seguindo sugestão do próprio Capanema em sua réplica a crítica de Aranha-Campos, e em 9 de julho de 1940 ela conclui seus trabalhos. Composta por pessoas ilustres de varias origens - Levi Carneiro, Stela de Faro, Oliveira Viana, Cândido Motta Filho, Paulo Sá, João Domingues de Oliveira, Ernâni Reis - ela propõe uma série de medidas já aventadas pelos projetos Capanema e Aranha-Campos, sem entrar em temas mais controversos, e sem adotar a defesa tão intransigente da família tradicional. Na área do trabalho feminino, ela pretendeu assegurar à mulher funcionária pública garantia de manutenção de emprego e salário em caso de transferência do marido, indo assim contra a legislação restritiva que se propunha. A criação do Departamento Nacional da Criança foi oficializada antes do trabalho da Comissão, e suas sugestões nem de longe tiveram o alcance e a repercussão que o Estatuto da Família de Capanema pretendera.

*Publicado em Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, vol. 37, Maio, 1980.

Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br



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