Le canon a tué le féodalisme.
L’encre à écrire va tuer la société moderne. *
Napoleão
A reflexão irônica de Napoleão – já imperador, solidamente instalado no comando de seu império europeu e exercendo plenamente o poder – era dirigida, não sem ironia e desdém, contra aqueles que começavam a ser designados, segundo a expressão então cunhada por Destutt de Tracy, pelo conceito de ideólogos. Para Napoleão, esses litterati nouvelle manière – que de maneira otimista ou ingênua, acreditavam que poderiam influenciar a política dos príncipes – viviam concebendo grandes projetos de reforma da sociedade sem qualquer embasamento na realidade ou sem atender um mínimo compromisso com a coerência.
A situação não modificou-se substancialmente desde aqueles dias e a classe dos ideólogos – uma subespécie da categoria mais ampla dos trabalhadores intelectuais – proliferou de maneira extraordinária na era contemporânea. Alguns ideólogos consideram-se a si mesmos "intelectuais independentes", muito embora vários deles sejam propensos a trocar voluntariamente essa condição pela carreira mais emocionante de "conselheiro de príncipes" (desde, é claro, que estes últimos estejam dispostos a ouvi-los e a acatar seus conselhos aparentemente sensatos e descompromissados).
De certa forma, os diplomatas constituem, no plano da política externa, os ideólogos dos estados modernos. Eles estão sempre procurando soluções inovadoras a velhos e novos problemas das relações internacionais, combinando propostas singelas de melhoria da situação mundial com a expressão mais imediata dos interesses concretos de seus países respectivos. Ao fazê-lo, ele operam um mélange de Idealpolitik com Realeconomik, o que não deixa de representar uma aplicação ponderada da tradicional receita de equilíbrio entre os requerimentos de mudança e as pressões do status quo.
Se os fundamentos da ação diplomática não estiverem contaminados pela ambigüidade ou pela incoerência, tal tipo de atuação representaria nada mais do que uma demonstração do mais puro bom senso. Mas, se é verdade também que a política externa nada mais é do que a continuidade da política interna por outros meios, é mais fácil ser ideólogo no plano nacional ou doméstico do que no das relações internacionais, inclusive porque, pelo menos desde a ruptura renascentista do monopólio papal sobre a legitimidade dos estados, não existem mais príncipes com estatura internacional. Daí porque, mesmo ideólogos da política externa como os diplomatas devem desviar muito de sua atenção para os fatores domésticos da política internacional de seus estados, o que no caso deste texto é assumido de forma explícita.
As reflexões que se seguem buscam, precisamente, discutir as raízes internas das posições internacionais assumidas pelo Brasil ou, de outra forma, recolocar no plano nacional alguns dos fundamentos da atuação externa do Brasil, que muitos julgam poder apreender apenas na interação com outros estados e no contexto exclusivamente externo. Não é esta a posição do autor, que apenas considera compreensível a política externa de um estado quando os diplomatas que a aplicam são capazes de situá-la no contexto dos interesses domésticos e da "ideologia nacional" que a sustenta.
A diplomacia brasileira, por exemplo, sempre ostentou em suas bandeiras ideológicas os princípios da independência e da soberania nacionais, o que nos parece muito sensato e compreensível. Nada nos deveria impedir, contudo, enquanto "ideólogos" da diplomacia, de contestar alguns dos fundamentos dessas idéias e de discuti-las abertamente. Ao fazê-lo confessamos candidamente que pretendemos colocar em causa algumas dessas idées reçues sobre a inserção internacional do Brasil e os requerimentos para uma eventual mudança de status. Assim, as sete teses "idealistas" relacionadas abaixo pretendem comentar, se não discutir, velhos princípios da política externa brasileira que costumam ser reafirmadas de tempos em tempos. O objetivo é confessadamente provocador.
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