João Guimarães Rosa pertenceu à terceira geração Modernista no Brasil e tinha como uma de suas características o uso da narrativa como possibilidade de reconstruir o vivido e, dessa forma, tentar decifrá-lo. A vida, para Guimarães Rosa, só se concretiza e explica através de paradoxos, buscando nos animais (aparentemente distantes do humano) referências de afetos humanos. O paradoxo tem a função de exprimir o que não se pode dizer através das palavras, como afirma o próprio Guimarães Rosa na entrevista concedida a Günter Lorenz1. Talvez esse tenha sido o leitmotiv de Primeiras Estórias2, uma coletânea de vinte e um pequenos contos publicado em 1962.
Guimarães Rosa sofria de distúrbios cardiovasculares que o impediam de manter o mesmo ritmo de trabalho desde 1958 e, portanto, não podia mais se lançar a projetos tão arrojados quanto Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, o que provavelmente contribuiu para a crise existencial que acompanhou seu problema físico. O ano de 1958 pode ser apontado como um marco a partir do qual percebe-se uma mudança em seu trabalho. Essa impressão é corroborada pela leitura das cartas que escreveu aos pais entre 1958 e 1964, em que confessa, reiteradamente, a necessidade que tinha de fazer tudo "picadinho", "miudinho", "devagarinho", evitando emoções fortes3. Nas cartas fala também de sua preocupação com a religião, que passa a ser o centro de sua vida. Os problemas de saúde apresentados por Guimarães Rosa a partir de 1958 seriam, na verdade, o prenúncio do fim próximo pois, além da hipertensão arterial, o paciente reunia outros fatores de risco cardiovascular como excesso de peso, vida sedentária e, particularmente, o tabagismo. Falece em 1967, três dias depois de assumir seu lugar na Academia Brasileira de Letras.
Coincidindo com os distúrbios cardiovasculares, Guimarães Rosa parece ter acrescentado a suas leituras espirituais publicações e textos relativos à Ciência Cristã (Christian Science), seita criada nos Estados Unidos em 1879 por Mrs. Mary Baker Eddy e que afirmava a primazia do espírito sobre a matéria "... the nothingness of matter and the allness of spirit", negando categoricamente a existência do pecado, dos sentimentos negativos em geral, da doença e da morte4. A leitura de tais textos pode ter influenciado o autor a ponto de percebermos em Primeiras Estórias uma preocupação com a transcendência, com a purificação e com a elevação do espírito sobre a matéria. Isso é particularmente importante se lembrarmos que em seu depoimento na entrevista concedida à Günter Lorenz, afirmou ser impossível separar sua biografia de sua obra.5
No décimo conto de Primeiras Estórias, Seqüência, nos deparamos com a história de uma busca6. Essa busca é, a princípio, material pois que um rapaz vai procurar uma vaca desgarrada do rebanho mas, no decorrer da trama, transforma-se numa busca espiritual em que a vaca transforma-se em uma ponte entre o mundo material e o espiritual. Guimarães Rosa trata os bichos, em especial cavalos e vacas, como seres maravilhosos. Em seus contos eles ganham status de personagens e a vaca, com sua imagem de servidão paciente e de força pacífica, tem poder decisivo nas narrativas de Guimarães Rosa. Com isto tira das mãos do homem as decisões sobre seu próprio destino, modificando a situação de submissão existente. É assim com a vaca do conto Seqüência que, de objeto passivo de busca, passa a condutora do destino do vaqueiro, numa inversão irônica que é a chave de compreensão do conto. A busca empreendida se vincula à idéia da viagem que traz em si determinações que pertencem tanto ao tempo quanto ao espaço.
O tempo e o espaço em que se localiza o conto Seqüência situam-se numa larga faixa em que se alojam o substrato latente do tesouro da tradição literária e um repertório mítico que o embasa. Na concepção de Mircea Eliade7, o mito narra a irrupção do sagrado, conta algo ocorrido no tempo do princípio, envolvendo a ação de Entes Sobrenaturais. Essa narrativa que se refere sempre a uma criação, sendo ao mesmo tempo uma criação, e é tida como absolutamente verdadeira. Os mitos são reatualizados pelos ritos iniciatórios, visando o restabelecimento da integridade perdida e, dessa forma, se afirmam como uma conduta de retorno ao tempo primordial.8 Por meio do processo de metaforização o conto em questão retorna aos primórdios da tradição revelando uma afinidade entre o segredo de onde a história emerge e o segredo ao qual a história retorna de tal forma que o como se ficcional se sobrepõe ao que deveria ter acontecido9. Tais histórias, cujo substrato latente se embasa no repertório mítico, retornam ao terreno brumoso de um universo já referido e emergem, na contemporaneidade, como histórias ainda não ditas de nossas vidas10. Buscando na simbologia das palavras, nomes, lugares e personagens do conto, percebemos esse substrato latente que visa o retorno à ordem primordial das coisas, com o restabelecimento do equilíbrio. Assim é a peregrinação do vaqueiro em Seqüência.
A escolha da vaca como um animal a conduzir o destino de um humano deve, portanto, ser entendida metaforicamente. O vaqueiro Guimarães Rosa11 utiliza um cavalo anônimo que leva o vaqueiro filho de Seo Rigério - ao encontro com seu destino traçado pela sabedoria da vaca. Mas a vaca em questão é vermelha, a cor grossa e afundada, chifres recurvos em coroa e vinha pelo meio do caminho, como uma criatura cristã. A tradição judaico-cristã faz referência a um ritual artigo de purificação cujo elemento essencial era uma "vaca vermelha" (Pará Adumá) , sem a qual não poderia haver purificação no Templo Sagrado. Este animal é extremamente raro12 pois todos seus pelos devem ser vermelhos, sem exceção, e não pode ter carregado um fardo nenhuma vez em sua vida. Quando uma vaca como esta era encontrada, era sacrificada próximo ao Templo, e suas cinzas, misturadas em água e outros ingredientes, eram usadas para purificar pessoas que ficaram ritualmente impuras, pelo contato com mortos. A escolha de uma vaca vermelha para conduzir o filho de Seo Rigério até seu destino nos sugere, então, que o conto significa mais do que uma captura que não deu certo. Para Guimarães Rosa, o fio que separa a arte e a religião é tênue, tendo como limite um ponto mágico que, ao se mover impulsionado pela fé, conduz à religião e, por outro lado, com o sopro da poesia, caminha para o mundo da arte ou da literatura.13 O caminho do rapaz é recheado de indagações e dúvidas, mas sem se desviar do traçado da vaca.
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