5. As teorias sobre a vida

Duas teorias procuram estabelecer o momento exato da aquisição da personalidade pelo novo ser, uma afirmando que a aquisição da personalidade deve ser reconhecida a partir do momento da concepção (teoria concepcionalista) e outra aceitando-a a partir da nidação. Nesta última teoria somam-se todas aquelas que afirmam existir pessoa humana após a formação da crista neural (início da formação do Sistema Nervoso Central) bem como a aceita pela legislação autóctone onde encontra-se afirmado que a personalidade é "adquirida com o nascer com vida" (teoria natalista).
Neste último aspecto é que se têm os enfoques bioéticos e do biodireito que aguçam na atualidade os interesses das organizações não governamentais (ONGs) denominadas "pró-vida" e, por sua vez causam mal-estar para o setor da biotecnologia. Verificam-se com grande facilidade estas afirmações quando se percebe na legislação alemã jurisprudências afirmando não ser o zigoto um "bem juridicamente protegido", o que, por conseguinte, permite a realização de experimentos biotecnológicos com os mesmos. O mesmo pode-se verificar nas legislações espanhola e inglesa, dentre outras, onde nos
primeiros 14 dias após a fecundação "in vitro" os embriões podem ser alvo de experimentos, congelados por até cinco anos, descartados ou destruídos sempre que existam sinais de impossibilidade de implantação uterina dos mesmos. Não são poucas as posições no sentido de que não existe personalidade durante os primeiros 14 dias após a concepção. Esta teoria explicaria o porquê da "contracepção de emergência" não ser considerada abortamento. Estas e outras situações ainda não definidas especificamente em lei são alvo da ciência surgida em 1971 com Potter nos Estados Unidos e que desencadeou, por sua vez, o surgimento de várias linhas, sendo um estímulo para o surgimento do Biodireito.
Teorias outras existem procurando afirmar que a personalidade só é adquirida mais tardiamente, ou seja, quando o feto já está praticamente viável. Parece-nos ser esta uma teoria aceita pelos movimentos "pró aborto" que muito se difundiram nos estados europeus e americanos do norte onde se procura fundamentar o ato abortivo no "direito à intimidade" (Rigths of Privacy) e "direito ao próprio corpo".
Para o professor Moisés TRACTEMBERG o ser humano é corpo e ao mesmo tempo mente, consciência. Para esse pesquisador, cujas conclusões são derivadas da análise de ultra-sonografias, o indivíduo passa a existir a partir do momento em que se forma o seu "ego", o que se dá por volta do quarto ou quinto mês de gestação. Afirma o autor citado que passa a existir a partir desse momento uma "mente consciente" que é caracterizada por uma atividade mental que tem consciência de si e do próprio ambiente que cerca o feto.
Através do estudo do sistema nervoso central (SNC) do feto e do embrião é que o professor TRACTEMBERG iniciou a formulação da sua
teoria uma vez que verificado que em um embrião de oito semanas o peso do SNC correspondia a 25% do total, que em uma gestação a termo (40 semanas) este peso decairia para 15% enquanto que em um adulto o peso do SNC corresponde a apenas 3 a 5%. Verificou ainda que já com 12 semanas o feto responde com taquicardia (aceleração dos batimentos cardíacos) ao som de uma buzina acionada em contato com o ventre materno. Este teste é hoje utilizado como fator preditivo de comprometimento fetal e é realizado nos exames ambulatoriais de consultas pré-natais.
Desta forma, verifica-se que a própria ciência médica procura também demonstrar que o início de uma gestação não significa necessariamente a existência de uma pessoa humana uma vez que o "ego" incorpora-se ao feto após o quarto mês.
Como afirmam DINIZ e ALMEIDA No entanto, não são os dados evolutivos da fisiologia fetal que decidem quando se pode ou não abortar, mas sim os valores sociais concedidos a cada conquista orgânica do feto. O que demonstra ser o abortamento um proceder do indivíduo por uma causa iminentemente social. Seja ela solitária (motivos que dizem respeito ao próprio indivíduo, como a sua autonomia de vontade) seja ela comum (motivos que dizem respeito a um segmento ou toda a sociedade como o estupro, a superpopulação, gravidez em religiosas, etc.).
O professor José Afonso da SILVA, ao tecer considerações acerca do direito à vida, reconhece a dificuldade de uma definição, como se constata na seguinte leitura: Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o risco de ingressar no campo da metafísica suprarreal, que não nos levará a nada.
Ao desenvolver este tema sabe-se da polêmica que o mesmo poderá gerar face às diversas definições e conceitos do vocábulo em questão, bem como à gama enorme de situações e fatos, legais e ilegais, aos quais o mesmo encontra-se ligado.

Cita o jurista HÉLIO BICUDO:
Sem dúvida, como salienta a professora Márcia Pimentel, PhD em genética humana, ela começa com a concepção, "pois, a partir do momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide, inicia-se uma nova vida, que não é aquela do pai ou da mãe, e sim a de um novo organismo que dita seu próprio desenvolvimento, sendo dependente do ambiente intra-uterino da mesma forma que somos dependentes do oxigênio para viver. Biologicamente, cada ser humano é um evento genético único, que não mais se repetirá.
No âmbito religioso, especificamente dentro do catolicismo, religião predominante no Brasil, a vida não se restringe ao período decorrido desde o nascimento com vida até a sucumbência definitiva das atividades orgânicas. Crê-se na existência de vida após a morte devidamente interpretado nas citações existentes nos diversos livros da Bíblia. Outro fato de evidente importância na religião católica é o crer na existência de uma alma a qual seria incorporada ao indivíduo no momento da concepção residindo neste fato, talvez, o ponto mais forte do repúdio que o católico tem pelo abortamento.
Estas situações claramente demonstram que o início da vida se dá dentro do organismo materno, em condições naturais, e portanto, confirmam que os direitos da pessoa que está sendo gerada já lhes são inerentes intra-útero sendo apenas formalmente efetivados ao nascer com vida.

Veja-se o que afirma Carlos José MOSSO:
Quien afirma que antes de la anidácion no hay un ser humano, debería poder responder a que naturaleza pertenece el cigoto no anidado, si es un animal, un vegetal o un extraterrestre. Si dijera que es un animal, debería poder explicar en virtud de qué esse animal puede mutar de especie y convertirse en un ser humano después de la anidácion. Aún por la vía del absurdo podemos concluir que hay ya un ser humano cuando el espermatozoide penetra en el óvulo.

Não há que se confundir o tema até o momento desenvolvido com as teorias de SAVIGNY – teoria da fictio juris, teoria de GIERKE – teoria organicista ou real, teoria de Maurice HAURIOU – teoria institucionalista entre outras uma vez que estas dizem respeito à personalidade jurídica em especial e não apenas ao sentido de pessoa. No entanto, devido à sua importância para o direito, far-se-á mais adiante uma pequena explanação sobre as diferentes teorias da personalidade.
É importante se observar que, nesta situação, contrapondo-se ao interesse jurídico existente, embasado no artigo 5.º da CF/88 quando no seu caput determina a garantia da vida, encontra-se o direito da gestante à intimidade e á privacidade ao próprio corpo. Desta forma estabelece-se um distúrbio de interesses tendo por um lado um ser que está sendo gerado através de um ato humano no ventre materno e, por outro lado, o desinteresse da gestante em levar ao termo aquela gravidez por motivos que, para ela, são relevantes. Este é, talvez, na atualidade, o termo crucial da discussão uma vez que pontos de vista religiosos, legislativos e filosóficos conflitam-se isolada ou associadamente.
Pelo até o momento exposto, torna-se necessário enfatizar a impossibilidade de confundir ou utilizar-se como sinônimos os termos "ser humano" e "pessoa". Tornou-se bastante claro na explanação supra que todos da espécie humana são seres humanos porém não são, necessariamente, pessoas. Para a personalização torna-se necessária a interação plena do ser humano com o meio onde vive, a inter-relação com outros seres humanos e pessoas. A simples presença do ser humano no seio da sociedade não o faz pessoa mas sim a consciência e inter-relação do mesmo no seio social são fatores determinísticos para tal. Torna-se necessária a autodeterminação como "conditio sine qua non" para determinação da personalidade.
Segundo GOBSTEIN o que é condição necessária para que o embrião possa ter a ele atribuídos direitos denomina-se consciência e afirma:
Porém, no processo que conduz à emergência da consciência, a sensibilidade surge como forma rudimentar do que será mais tarde a consciência de si reflexiva. É por isso que a definição do momento em que o embrião começa a sofrer determina o início do seu ser pessoal.
ENGELHARDT afirma não ser o fato do ser humano pertencer à espécie humana que atribui o homem o seu valor, mas a consciência, a racionalidade e o sentido moral de que são capazes os membros dessa espécie, embora também devessem ser considerados pessoas os seres que não pertencessem à espécie humana mas que apresentassem, no entanto, essas características. (não existe grifo no original)

Afirma Eliane S. AZEVÊDO que
As discordâncias também não convergem para um ponto geral de aceitação total; muito ao contrário, as opiniões divergem e as sugestões de quando a vida humana se inicia buscam fundamentação no surgimento de estruturas em momentos diversos do desenvolvimento embrionário.
Em 1979, o Ethics Advisory Board nos Estados Unidos da América do Norte propôs que o 14.° dia de gestação fosse considerado o inicio da vida, justificando ser este dia o final da fase de implantação.
Para outros o 6.° dia, quando as células passam do estado de totipotência para o de unipotência, deve ser considerado o início da vida humana, porque a partir deste momento sabe-se se será formada mais de uma pessoa (gêmeos) ou uma única pessoa. Para outros, todavia, o momento divisório entre ser ou não humano é o início da formação do sistema nervoso, ou seja, o início da vida cerebral, que o ocorre na 8.ª semana.
Para outros, o marco é o surgimento do suco neural no 11.° dia.
A Comissão Waller-Australia considera o aparecimento da linha primitiva. Para os que defendem este momento, a justificativa é que o aparecimento da linha primitiva é o sinal de que se começa a formar um só embrião. Antes desse momento, para os defensores dessa tese, não teria sentido falar da presença de um verdadeiro ser. Criou-se, assim, o termo pré-embrião para definir uma entidade não-humana sobre a qual se estaria permitindo a realização de pesquisas.
Afirma ainda a autora citada que ENGELHARDT determina que o recém-concebido não tem consciência, não tem racionalidade e não tem senso de moral e ainda que sendo estas características próprias das pessoas, quem não as tem não merece o reconhecimento de pessoa, e continua assim, nem todos os seres humanos são pessoas, e entre os não-pessoas estão os fetos, os recém nascidos, os retardados mentais graves e pessoas em estado de coma.

Discorrendo ainda sobre o assunto continua a autora:
Para Singer, somente é pessoa quem possui autoconsciência, auto controle, sentido de presente e futuro, capacidade de se imaginar em relação aos outros, respeito pelos outros, além de ser capaz de comunicar-se e demonstrar curiosidade.
A Declaração dos Direitos do Homem datada de 1948 e que, na realidade, corresponde a uma adequação temporal da declaração de 1789 pode, segundo Gilbert HOTTOIS, proporcionar um recurso ambíguo não concludente no que se refere ao assunto abortamento pois a afirmação em nível individual tende a entrar em conflito com as "exigências do bem comum".
Afirma em sua obra o autor supra citado:
Como compreender o artigo 3, que defende o "direito à vida" de "qualquer indivíduo"? Haverá quem queira ler nele uma interdição firme de qualquer aborto, sublinhando o termo vida; outros, acentuando o termo indivíduo, negarão que um embrião com alguns dias ou algumas semanas possa ser considerado um indivíduo propriamente dito. Porém, sê-lo-ia se surgissem outras dificuldades em virtude do direito à saúde (art.25): um embrião não tem o direito de nascer de boa saúde, sem deficiências? Baseada na proteccão dos indivíduos, a "Declaração Universal dos Direitos do Homem" não evoca a preservação do "bem comum", embora esteja evidentemente subentendido desde 1789 (art. 4) que a minha liberdade pára onde começa a prejudicar o outro e que a idéia de um "contrato social" implica a consideração essencial do bem colectivo.
Pergunta então o autor citado: "A partir de que momento se torna mais importante proteger o colectivo (isto é, de facto, os indivíduos também) violando os direitos de certos indivíduos ou de certos grupos de indivíduos?".
Na atualidade observa-se uma grande preocupação dos constitucionalistas no que se refere à observância de princípios e regras constitucionais. Tal tendência tem como centro a idéia de que no positivismo jurídico, como nos é ensinado por Kelsen, a Constituição corresponde à norma mater e todas as demais normas são dela oriundas ou a ela devem se submeter.
Ao adotar-se a teoria principialista cai, automaticamente, por terra a doutrina que classificava as normas em preceptivas e programáticas onde a estas últimas lhes era negado o caráter de força de lei.
Os princípios constitucionais têm como característica fundamental o poder de serem critérios objetivos do processo de interpretação-aplicação do direito que podendo ser invocados colmatam as lacunas porventura existentes na lei.
Constituem, portanto, os princípios constitucionais um segmento das normas jurídicas que constituem o ordenamento jurídico. O ordenamento jurídico é composto, ordinariamente, por normas jurídicas as quais, por sua vez, se diferenciam em regras e princípios.
Duas teorias se apresentam na atualidade no concernente aos princípios frente à Constituição: concepção forte e concepção fraca.
No concernente à concepção forte dos princípios tem-se como base que existe uma distinção "lógica e quantitativa" entre os princípios e as regras.
No que se refere à concepção fraca dos princípios observa-se que afirmam os autores não existir uma diferenciação clara entre princípios e regras. Os princípios, segundo esta concepção não asseguram a solução justa nem mesmo eliminam a necessária discricionariedade do julgador.
São, na atualidade, fortes representantes da teoria forte dos princípios Letizia Gianformagio, Ronald Dworkin e Robert Alexy a qual tem uma forte aceitação pela maioria dos doutrinadores.
Em se referindo aos princípios frente ao tema abordado neste trabalho observa-se que fatalmente haverá colisão entre dois deles quando o assunto é a IVG. Colidem o princípio do direito à manutenção da vida, do viver, do existir que é auferido ao nascituro pela CF e o direito à autonomia, à liberdade, à privacy, ao determinar e gerir o próprio corpo reivindicado pela gestante.
A colisão de dois direitos garantidos por princípios e regras constitucionais determinam ao julgador um julgamento onde deverá o mesmo fazer a interpretação e valoração de cada qual de per si. Tarefa árdua onde valores éticos, sociais, morais, religiosos e legais confluem para o caso concreto e devem ser decantados e separados fornecendo como produto final a justiça para o mesmo.
Quando dois princípios se conflitam ocorrendo a "colisão de princípios" necessariamente, in caso, um deverá suplantar o outro. Observe-se entretanto que não haverá jamais a invalidação do princípio suplantado mas apenas o seu preterimento justificado frente ao outro princípio. Este preterimento justificado ocorrerá, exclusivamente, no caso concreto. Fora do caso a ser analisado os princípios mantém cada qual o seu valor e podem ser invocados a qualquer momento por qualquer do povo.
A preterição de um princípio em relação a outro tem como fulcro a "regra da ponderação" onde o preterimento de um princípio em relação a outro só se justifica quando o grau de importância de satisfação do princípio oposto é maior.
Segundo Robert ALEXY cuanto mayor es el grado de la no satisfación o de afectación de um princípio, tanto mayor tiene de
ser la importância da la satisfación del outro.
Ainda em referência aos princípios, com extrema propriedade afirma Letizia GIANFORMAGIO que i principí non sono mai tra loro incompatibili: sono sempre tra loro concorrenti e isto explica de forma clara a necessidade do preterimento de alguns princípios em relação a outros.
Desta forma quando se verifica a existência de colisão entre os direitos do nascituro de manter a sua existência, de ter um futuro que somente teria interferência das ações oriundas da própria natureza de forma independente da ação humana e os direitos da gestante relacionados à sua autonomia, deverá o julgador ter em conta as teorias dos princípios pois ambos os direitos aqui pleiteados têm o respaldo da Constituição Federal.
Verifica-se que isolados os direitos acima citados não são conflitantes. Ao ver deste acadêmico são, pelo contrário, dependentes uma vez que torna-se impossível falar-se em direito à autonomia, direito ao próprio corpo, rigth of privacy, quando o postulante a tais direitos não é provido de vida. Deste modo, o direito á vida, como posto pela doutrina vigente, é anterior a quaisquer outros direitos fundamentais que, por sua vez, são decorrentes daquele.
Não se quer afirmar que pela sua primogenitude deverá prevalecer o direito à vida sobre qualquer outro direito. Quer-se, sim, que, ao interpretar a norma (regra ou princípio) o julgador tenha para si que a mesma dignidade existente e determinada pelo artigo 1°. III da Constituição Federal para a gestante, também existe para o nascituro. Que ambos têm esse direito pois ambos são seres humanos e vivos (embora separados por uma barreira) constituídos por células diferenciadas em cujos núcleos encontramos 46 (quarenta e seis) cromossomas.
Ao se aceitar a idéia de que as barreiras modificam os seres da mesma espécie estaríamos aceitando a teoria de Adolf HITLLER que, na Segunda Grande Guerra Mundial, mantinha isolados em campos de concentração milhares de judeus para, a seguir, encaminha-los às câmaras de gás culminando com maior holocausto até o momento conhecido pelo hommo sapiens.
A partir das considerações acima, será possível discorrer sobre o tema central do presente trabalho, que versa sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, vulgarmente conhecida como aborto, que será objeto de estudo do próximo título.

 

 

Trabajo enviado por:
Luigino Coletti
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Texto produzido em outubro/2001


 
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