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Adhemar Santos
Oracy Nogueira, no artigo intitulado "Atitude desfavorável de alguns anunciantes de São Paulo em relação aos empregados de cor" (de 1942), observou a existência de preconceito contra negros e mulatos e, também, que este preconceito não se ligava à origem racial dos indivíduos, como nos Estados Unidos (onde é considerada negra toda pessoa que tenha ascendência negra), mas à cor aparente dos indivíduos. A este preconceito brasileiro Oracy Nogueira deu o nome de "preconceito de marca", uma vez que se manifestava de acordo com as marcas raciais. Quando estas marcas não eram visíveis, ou eram "ocultáveis", o indivíduo não sofria discriminação ou a sofria em menor grau, conforme seu distanciamento em relação à cor de pele negra. Ao preconceito de marca Nogueira contrapôs o "preconceito de origem", (tipo de preconceito norte-americano) associado à raça da qual os indivíduos são originários e de acordo com a qual são discriminados, ainda que não aparentem as marcas raciais. É o caso dos Estados Unidos onde mesmo pessoas brancas, loiras e de olhos azuis, são consideradas negras se em sua ascendência houver negros até há cerca de 5 gerações. Oracy observou ainda que, no Brasil, havia um preconceito de classe que atingia de modo indireto os negros, já que estes pertenciam majoritariamente às classes pobres.
Ampliando a análise de Oracy Nogueira, Virgínia Bicudo, cinco anos depois, no artigo "Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo" diz que negros e mulatos, por internalizarem os valores culturais brancos, compartilhavam esse preconceito. À medida que ascendiam socialmente, negros e mulatos tenderiam a uma maior identificação com os valores brancos, o que tornava difícil a organização política de grupos negros, já que estes privilegiavam as relações com os brancos em detrimento das relações com os negros. Negros mais pobres se identificavam mais, segundo Virgínia, com negros e com pobres.
"À medida que o indivíduo `branqueia' na pele e na personalidade, encontra maior aceitação social. `O que importa é a aparência', afirmam vários entrevistados. Os casos que estudámos demonstram que não temos o preconceito racial, no sentido de uma atitude de antagonismo de toda a população, atingindo a todos os indivíduos descendentes da raça dominada, mesmo que remotamente. Entre nós, é suficiente que os traços raciais sejam atenuados e que o indivíduo apresente valores da classe dominante, para ser integrado entre os brancos. O mulato é discriminado à medida que lembre sua origem africana, principalmente pela cor. Esta observação apóia a hipótese de Oracy Nogueira, de existir entre nós um preconceito de cor distinto do preconceito de raça e de classe" (BICUDO, 1947: 207).
Nas décadas seguintes, a abordagem das relações raciais tendeu a uma interpretação marxista, enfatizando a estrutura de classes e a integração do segmento negro na sociedade. Florestan Fernandes, o principal organizador desta abordagem, procurou mostrar que a mobilidade social se articulava com as relações raciais no Brasil moderno. Para ele, essa articulação se dava em termos da persistência do passado escravista, que atribuía aos negros um papel submisso diante da sociedade capitalista. O problema racial foi visto então, fundamentalmente, como uma questão de classe (mas não apenas) que encontraria solução numa sociedade onde estas fossem abolidas. Atualizando estes dados e oferecendo uma análise crítica, Carlos Hasenbalg nos mostra que:
"a) preconceito e discriminação raciais não se mantêm intactos após a abolição, adquirindo novas funções e significados dentro da nova estrutura social; e
b) as práticas racistas do grupo racial dominante, longe de serem meras sobrevivências do passado, estão funcionalmente relacionadas aos benefícios simbólicos e materiais que brancos obtêm da desqualificação competitiva do grupo negro e mulato. Neste sentido parece não existir nenhuma lógica inerente ao desenvolvimento capitalista que leve a uma incompatibilidade entre racismo e industrialização. A raça, como atributo adscrito socialmente elaborado, continua a operar como um dos critérios mais importantes no recrutamento às posições da hierarquia social." (HASENBALG, 1988:166).
Fica evidente, portanto, a dificuldade de se entender a discriminação sem pensar sua relação com o plano simbólico onde ela se expressa e legitima. Dando-se conta desta dimensão potencialmente manipulativa do patrimônio cultural, o segmento negro "dominado" constrói estratégias de resistência através dos símbolos de sua identidade cultural como, entre outros, as religiões afro-brasileiras, as escolas de samba, a capoeira etc. (AMARAL & SILVA, 1992b; 1996).
João Batista Borges Pereira (1984), ao estudar as formas de resistência dos grupos negros, observa a associação das suas manifestações culturais "sobreviventes" como "intimamente associadas às dimensões do lazer [do exótico] e da magia [do segredo], contrapondo-se ao sério e ao racional da vida brasileira" (PEREIRA, 1984:178). Para Pereira, esta associação é prenhe de resquícios evolucionistas, pois atrela a cultura negra a práticas tidas como "sobrevivências culturais negras" como, por exemplo, a música (samba, escola de samba, afoxés, gafieira) as religiões de origem africana (candomblé, umbanda etc.), a alimentação (aos conhecidos pratos "típicos" como a feijoada, acarajé, abará etc.). Esses elementos culturais, coibidos, discriminados ou assimilados pela cultura brasileira (e muitas vezes até reprimidos pelo Estado, compondo o contraditório quadro da nossa "unidade nacional"), representam um grande desafio à integração do negro na sociedade brasileira pois, para a maioria dos grupos militantes negros, esses elementos devem ser "preservados" como sinais de distinção da cultura negra e, ao mesmo tempo, alçados ao nível de ação política. Nesta, deve representar, como "cultura que resistiu à repressão", peça fundamental na estratégia de ataque. Assim, a passagem da "cultura resistente" para a "cultura de resistência" (ou "de ataque") implica, para Pereira, a manipulação dos elementos dessa cultura de modo seletivo a fim de desempenhar certos papéis:
"1) dar a marca de singularidade do grupo, a marca que diz o que o negro é em relação, ou em oposição, aos outros grupos étnicos que convivem no mesmo espaço cultural e político da sociedade brasileira;
2) oferecer códigos, valores, mitos, símbolos, para a construção de bandeiras-de-combate que nortearão as lutas do grupo na execução de seu projeto político;
3) motivar e legitimar aos olhos dos próprios negros a participação da cada um e de todos na execução desse mesmo empreendimento de conquistas sociais;
4) fornecer aos indivíduos do grupo elementos para composição de uma auto-imagem, de uma auto-representação étnica positiva, espécie de contra-ataque psicológico às investidas deterioradoras de identidade grupal e individual a que estão sujeitos os grupos marginalizados;
5) formar o cimento moral, tecedor da rede social, que irá unir indivíduos matizados pela cor e pela classe dentro de um mesmo grupo, fazendo cada qual sentir-se membro de uma comunidade étnica singularizada e com a qual deve manter compromissos e vínculos de ordem ética". (PEREIRA, 1984:182/3).
Maria Amália Barreto (1990), por sua vez, ao estudar a relação dos movimentos negros com valores religiosos dessa "cultura resistente" (tradicional) aponta o fato de que, no discurso destes movimentos, a referência aos "núcleos de cultura" se estabelece com base numa visão equivocada do que seja a dinâmica cultural. Segundo Barreto, nesta visão é a cultura que gera o grupo e não o contrário, o que suscita os seguintes problemas:
a) a discriminação do negro não se refere necessariamente à religião que professem e,
b) b) ao propor o terreiro como centro polarizador da identidade cultural negra, é deixada de lado a parcela de população negra que professe outras religiões.
Charlie Parker (foto no disponible)
É preciso observar, contudo, que apesar de todas estas interpretações serem fundamentadas, a sociedade brasileira não pode ser considerada essencialmente como racista nem, tão pouco, democrática com relação aos negros, já que os valores raciais poucas vezes são explicitados. Ou seja: brancos podem escamotear seu preconceito através de estratégias diversas e negros, evitando o confronto por meio de atitudes de auto-proteção, tornam os conflitos a tal ponto diluídos que a análise que dispense o plano simbólico dificilmente dará conta desta questão. A pesquisa de campo, ao questionar a abordagem deste tema na educação de crianças em famílias negras, revelou que o problema é ainda mais complexo, pois as crianças negras não são socializadas enfatizando-se os problemas advindos do atributo racial, mas para buscarem tolerar, contornar ou desconhecer o racismo de que são vítimas.
Assim, abordar as questões das relações raciais implica, essencialmente, pensá-las do ponto de vista de como elas são compreendidas culturalmente, mesmo quando o que se pretende compreender são aspectos educacionais, políticos, sociológicos, históricos etc. Os estudos de construção de identidade como os de Barth (1969), Cohen (1969) e Cunha (1985), sobre sociedades africanas e afro-brasileiras fornecem bons modelos explicativos de como se dão tais relações, que devem ser entendidas de modo situacional (dependentes do contexto histórico e cultural) e contrastivo, o que significa que é na contraposição dos elementos tidos como distintivos que se constrói a noção de "nós" e de "outros" entre os vários grupos sociais. Portanto, as diferenças, em si, não constituem elementos para o afastamentos dos grupos, mas de estabelecimento dos contornos de sua identidade através da elaboração situacional das características distintivas. O negro esteve associado por séculos a sinais negativos de distinção na sociedade brasileira por sua cor de pele, sua posição "inferior" no sistema produtivo e por suas práticas culturais, vistas como "incivilizadas". A reconfiguração das relações entre negros e brancos (por motivos vários, entre eles a luta dos negros por direitos iguais e o reconhecimento destes por partes dos brancos) tem acontecido dialeticamente de modo que nesse processo certos elementos da cultura negra foram selecionados (samba, candomblé, capoeira, culinária etc) e receberam sinal positivo, tornando-se legítimos na sociedade "branca". O mesmo processo aconteceu com elementos da cultura branca que foram incorporados pelos negros. É evidente que esta mudança de sinal não acontece de um momento para o outro, nem de forma homogênea ou total. Ela depende do diálogo entre os vários grupos, da compreensão dos códigos de uns pelos outros, de acréscimos, intervenções e, principalmente, da localização dos grupos na estrutura social e, conseqüentemente, de seu poder de negociação. Depende, também, da postura crítica e autocrítica dos grupos envolvidos e esta postura é que deve ser analisada aqui.
Educar é transmitir e reproduzir valores, perpetuá-los ou transformá-los, visando a existência futura de uma pessoa ou grupo sendo, portanto, o principal agente ideológico e transformador da sociedade e uma das mais importantes tarefas que ela se propõe. Entre as instituições sociais que moldam e regulam valores, a mais importante é a família, com seus padrões associados de técnicas de criação e educação de crianças. São as práticas educacionais e de socialização que originam uma constelação de traços que formam, mais tarde, os traços culturais gerais de um grupo. A estrutura educacional, por sua vez, determina a forma e o conteúdo das instituições secundárias da sociedade, que são arte, religião, mitologia, folclore, padrões de pensamento, etc. Assim, é preciso enfatizar as práticas da socialização como variáveis até certo ponto independentes, indo a causação dessas práticas para a estrutura básica de educação familiar e daí para os sistemas ideológicos. Portanto, é preciso compreender, no caso específico das relações raciais entre negros e brancos, se posturas críticas, a-críticas ou alienadas nos adultos datam da socialização e de que modo esta pode estar favorecendo ou embaraçando os anseios dos negros por igualdade.
Basilio Da Gama
Ao observarmos detidamente o relacionamento entre brancos e negros nas diferentes instituições sociais, é possível notar a atitude ainda muitas vezes submissa e inferiorizada de indivíduos negros diante de não-negros. Comparando-a à atitude claramente orgulhosa e altiva diante da diferença racial por parte, entre outros, de grupos orientais, surge a indagação: como compreender a postura diferenciada de ambos os grupos diante da diferença? Por que negros, diferentemente dos orientais, parecem não sentir orgulho de sua diferença ou pelo menos não expressam isto, em sua grande maioria? A atitude de orgulho da diferença, que grande parte dos orientais e europeus mantêm, parece ajudar a barrar, de certa forma, atitudes hostis e claramente preconceituosas, pois demonstram uma auto-estima elevada, quando não um sentimento de superioridade, assim (ou talvez por isso) mesmo, respeitado. É também intrigante o fato de que preconceito e discriminação raciais estejam se transformando tão lentamente enquanto outros valores sociais e até mesmo morais, transformam-se mais rapidamente. E, apesar de negros (considerando aqui mulatos, pardos, cafuzos, sararás etc) constituírem a maioria da população brasileira, a maior parte deles admite sofrer discriminação racial explícita ou implícita e parece não ter adquirido ainda força suficiente para impor sua inserção em bases mais positivas na nossa sociedade. Na pesquisa em que se baseia este trabalho, busquei entender como se educam as crianças negras sob este aspecto e se a educação os prepara para ocupar o lugar de direito ou para a aceitação da discriminação racial como dado social inelutável. Se se escolhe valorizar a negritude ou tende-se a diluir a questão racial nos quadros mais amplos de problemas sociais como as diferenças econômicas. Se se educam as crianças negras para a igualdade ou para a diversidade, o que pode ser dito também como: educam-se as crianças para sentirem-se "iguais" a qualquer pessoa, para sentirem-se diferentes, mas com direitos e capacidades idênticos, ou para a assumpção do status quo como dado inelutável, cuja única possibilidade de resistência adviria da aceitação e desenvolvimento de estratégias para "driblar" o preconceito? Se os pais de crianças negras consideram tais questões ao escolher livros, filmes, brinquedos, escolas, teatro, passeios etc. durante sua educação e se criam seus filhos para assumirem sua cor e sua história positiva e orgulhosamente. E, até que ponto, o critério racial é realmente levado em conta na educação das crianças negras por suas famílias.
Durante as entrevistas, ficou claro que as crianças e seus pais começam a enfrentar os problemas raciais logo na primeira instância social extra-familiar em que a criança se insere, ou seja, na escola. Como as crianças vão à escola cada vez com menos idade (atualmente aos dois ou três anos de idade a maioria das crianças é matriculada em escolas maternais ou creches, quando as mães trabalham fora), o enfrentamento da diferença acontece desde muito cedo. E isto não tem passado despercebido aos antropólogos que estudam relações raciais e a educação formal. Muito tem sido estudada a educação das crianças negras na perspectiva escolar, e os trabalhos muitas vezes constituem mais denúncias que propostas efetivas de modificação das abordagens ou mesmo da produção de material alternativo aos livros oficiais nos quais os negros sempre aparecem como escravos, pobres, humildes ou humilhados ou, se valorizados, em papéis preconcebidos como "de negros" como os de sambistas e jogadores de futebol, especialmente na região sudeste, onde a colonização negra é menor que a do norte e nordeste. (Em lugares como a Bahia, pelo contrário, a negritude e as origens negras têm sido valorizadas, estabelecendo um importante referencial na construção da identidade pessoal e cultural dos negros e servindo de exemplo para os negros de todo o país, conforme pode ser visto em SANTOS, 1997).
Estudando as formas pelas quais a discriminação racial se manifesta na escola pública de primeiro grau Gonçalves (1987) mostra que os mecanismos de funcionamento do "ritual" pedagógico excluem, nos currículos escolares, a história das lutas dos negros na sociedade brasileira, impondo, ao mesmo tempo, às crianças negras, um ideal de ego branco. Aponta também que a escola produz um discurso sobre "tratamento igual de crianças brancas e não brancas" que escamoteia a realidade educacional e simultaneamente folcloriza a produção cultural negra. Esta situação se perpetua, na escola, não pelo que é dito, mas pelo que é silenciado, principalmente. Não se fala do negro como tal senão nos capítulos de história do Brasil, onde aparecem como escravos libertos pela bondade dos abolicionistas e do poder instituído. Suas contribuições à cultura são sempre folclorizadas. Do papel dos negros como operários de todas as construções, lavradores de todas as fazendas, cozinheiros de todas as casas, vendedores de todas as mercadorias, artistas de talentos vários, políticos, religiosos etc., nada se diz. Sobre este aspecto, a fala de Sylvia Egydio, 65 anos, negra, mãe de uma menina e um menino, é exemplar:
Eles [instituições oficiais de ensino e de memória] vêem o negro escravo. Mas os negros não foram apenas escravos. Tinham suas famílias, sua crença, suas danças, suas comidas. Seu modo de viver. Ninguém conta a história dos judeus, que também foram escravos, apenas como escravos. Por que a história do negro tem que ser sempre a do povo escravizado?".
A este silêncio institucional parece juntar-se o das próprias famílias negras, em casa, especialmente em situações de indecisão sobre o que fazer diante da percepção da discriminação racial das crianças, seja na escola, no relacionamento com os colegas, professores e funcionários, seja fora dela, em momentos de conflitos e exposição de fatos e ainda no impedimento de assumir posições de defesa e/ou de ataque. Junta-se ao silêncio sobre a discriminação racial o teor do que é ensinado nas salas de aula (CUNHA JR. 1985, BORGES PEREIRA, 1987, FERNANDES, 1984).
Nota-se, no relato de Cunha Jr., que estudou a discriminação racial em escolas do primeiro grau, o importante papel da família na manutenção da situação de discriminação e da baixa auto-estima das crianças. Segundo ele, os pais não sabem o que fazer diante da criança que conta em casa situações em que foi discriminada na escola por colegas, professores ou funcionários, o que foi reafirmado por esta pesquisa, e suas reações são do seguinte tipo:
"Ouvir sem reação, não acreditar nas crianças por acreditarem que tais coisas não acontecem na escola; ter dúvida se os fatos ocorreram de verdade ou se constituem apenas uma forma da criança resolver outros problemas, como o de não querer ir à escola ou procurar atingir um professor de quem não gosta; acreditar que o fato não tem importância; instruir as crianças quanto às respostas a dar nestas situações, mas ficando inseguro do quanto a criança pode sair machucada destas situações; reclamar na escola duvidando, porém, dos resultados obtidos" (CUNHA JR., 1987:53).
Em todas as situações, parece existir uma indecisão dos pais sobre o que fazer, devida, em parte, ao fato de estarem envolvidos com a idéia de que "não existe racismo no Brasil", ou por procurarem negá-lo, pois admiti-lo seria admitir a condição de "inferior", mesmo no contexto simbólico. Junta-se a isto a descrença na eficácia das atitudes de protesto e ainda o medo de uma maior perseguição a partir de uma reação. Esta pesquisa, realizada onze anos depois da publicação do trabalho de Cunha Jr. revelou que, infelizmente, pouca coisa mudou quanto a este aspecto, especialmente quando as famílias são mais pobres e pouco escolarizadas. A maioria dos pais das famílias entrevistadas não tematiza o conflito racial no cotidiano, com seus filhos, e à minha pergunta sobre o que dizem a seus filhos para fazerem na hipótese de serem discriminados as respostas foram:
"Ah, acho que ninguém tem coragem de discriminar uma criança. Criança é tudo igual" [mãe, negra, empregada doméstica]
"Eu digo para ignorar. Ficar arrumando briga só piora as coisas e a gente já tem tanto problema, né?"[pai, negro, faxineiro]
"Eu ensino a xingar de volta quando xingam de pretinha, fedidinha essas coisas. Mas o pior é quando não dá para ter certeza se você está sendo mesmo diferenciado por ser negro ou se é cisma da gente" [mãe, negra, vendedora]
"É muito duro... acho que em casa elas têm que esquecer isso". [mãe, negra, dona-de-casa]
Ao ser questionada sobre problemas de discriminação na escola, Marta, 46 anos, negra, empregada doméstica, casada pela segunda vez com um homem branco, mãe de cinco filhos com idades entre 25 e 07 anos (este último filho de seu casamento com Ezequiel, branco, e os outros filhos de seu primeiro marido, negro), diz:
"Eles se queixam, às vezes. O Fabinho se queixava mais. Acho que antigamente era pior. Mas como ele era muito vagabundo, não gostava de ir pra escola, não dava pra saber se era verdade ou não. Um dia chegou dizendo que a professora tinha chamado ele de negrinho vagabundo, porque ele não fez o dever de casa. Você acha que eu vou acreditar que uma professora disse isso pr’uma criança? No outro dia, não faz muito tempo, foi a Fabiana, que chegou dizendo que a professora falou que o caderno dela parecia coisa de preto, porque estava tudo amassado. Ela sempre foi muito esculachada, mesmo. Acho que se a professora falou isso não falou para ofender, mas para mexer com o orgulho dela. E funcionou, porque ela criou vergonha na cara. Agora já não vem com esta conversa. A Fabíola [12 anos] outro dia me veio também com uma conversa dessas, mas essas conversas sempre aparecem quando eles estão mal na escola. Eu desconfio. Acho que eles tentam aproveitar essa história de racismo para se livrar das obrigações".
Perguntei, então, a Fabíola, o que havia acontecido. Sua resposta foi significativa:
"A gente tava fazendo uma peça de teatro na escola. A gente escreveu a peça. Então tinha um rei, uma rainha, uma princesa e um príncipe, fada, bruxa, súdito, tudo. Na hora de escolher o papel de cada um a professora perguntou quem queria ser cada coisa [personagem]. Eu disse que queria ser fada. Todo mundo riu e disse que não tem fada preta. Ai eu falei que queria ser rainha ou princesa. Aí eles disseram que não podia e começaram a me encher dizendo que eu tinha que ser saci, essas coisas... Mas tem rainha preta não tem? Fada, não sei, mas rainha deve ter". [Fabiana, 12 anos, negra].
Quando perguntei o que ela tinha respondido aos colegas, a resposta foi:
"Não disse nada. Mas também eu não quis mais fazer nada na peça". [idem].
Marta insiste que Fabíola usa a existência do preconceito racial a seu favor, quando parece estar se saindo mal na escola, mas parece não se perguntar se isto não estaria relacionado com a queixa de discriminação, pois a escola pode se tornar um lugar de tensão e humilhação constantes, diminuindo a vontade de estudar de Fabíola. Marta reitera que a filha usa o tema racismo positivamente, fazendo-o até mesmo dentro de casa quando, em situações de conflito, acusa a mãe de proteger o irmão caçula em detrimento dela, porque o irmão "é branco". "Ela aproveita para se fazer de coitada", diz Marta. No entanto, a Folha de São Paulo publicou, em 30/08/1998, uma matéria apontando que crianças em idade pré-escolar já podem demonstrar racismo:
"Crianças em idade pré-escolar já apresentam comportamento racista, concluiu estudo realizado na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). A pesquisa estudou 50 crianças em idade dos 5 aos 6 anos. ''Com desenhos e brincadeiras, a pesquisa identificou a imagem dos negros para essas crianças. Embora não soubessem explicar o porquê, mais de 50% das crianças disseram que não gostam de pessoas negras'', afirma. Karina Costa, hoje com 8 anos, mostrou um comportamento racista aos 3 anos que assustou sua mãe. ''Quando ela viu o filho da empregada, ficou muito assustada, perguntou por que ele era assim. Depois, dizia que pessoas negras eram más'', diz a empresária Cristina Costa, mãe de Karina. Cristina diz não saber de onde veio o racismo da filha. ''Aqui em casa nunca tivemos preconceito racial. Acho que ela aprendeu na TV'', diz Cristina. A família fez um trabalho para conseguir acabar com o preconceito da filha. ''Expliquei a ela que as pessoas eram diferentes só na cor. Conseguimos convencê-la'', diz Cristina. Hoje, a melhor amiga de Karina, Larissa Vianna Neveu, é negra."
"O pedagogo Luiz Carlos Vale, que faz uma tese sobre o papel do educador no combate ao racismo, diz que o preconceito é introjetado nas crianças a partir dos 3 ou 4 anos, e só campanhas de conscientização podem combatê-lo. ''A criança vai estar exposta a imagens de TV e ao racismo que vê na rua e vai acreditar que negros são 'maus'. Os professores e os pais não podem se limitar a não ser racistas. Eles têm que reforçar na educação que a sociedade é racista mas isso é uma injustiça que deve ser mudada.'' (Revista da Folha, 30.08.1998, pg.48).
Como se vê, o preconceito começa muito cedo e o sentimento de humilhação pela diferença também. As bonecas das meninas negras são loiras e seus pais, mesmo se lembrarem de comprar uma boneca negra, terão dificuldade para encontrá-la como encontram bonecas brancas em qualquer supermercado. Os anjos são loiros, as fadas são loiras, as apresentadoras de programas infantis são loiras. Os negros não estão ocupando os espaços devidos e, ao não fazerem isso, não são modelos para outros negros, perpetuando-se, deste modo, a situação de minoria social versus maioria populacional.
O dado que mais chamou minha atenção, na pesquisa, foi a maneira pela qual muitos negros, internalizando os valores distorcidos dos não-negros, vêem os próprios negros, atribuindo a eles mau caráter ou caráter preguiçoso. No entanto, há também, por parte de muitos, a percepção da complexidade da situação, como se pode ver nas falas abaixo.
"Eu não gosto de preto. Preto quando dá para ser safado, é fogo. Minha avó até dizia um negócio que eu também digo: "Não gosto de coisa com preto/ nem que seja meu parente/ preto tem muita mania/ de fazer vergonha pra gente" (Celina, negra, separada, mãe de cinco filhos).
"[...] mas tem muito preto que procura [ser discriminado], viu? Anda todo desarrumado, a calça lá embaixo, surrada, cabelo despenteado, porque acha que é black e não precisa [pentear-se]...Se é mulher, a pele riscando, não passa um creme...põe a blusa e não liga se a alça do sutiã está aparecendo, entra no ônibus chupando laranja...Tem coisa que o povo fala que é coisa de preto e é mesmo." [F., não quer ser identificada, mãe de uma menina].
"Não participo [de movimentos ou grupos políticos negros] porque acho muito errado esse negócio de ficar gritando e se separando dos brancos, querendo ser racista, não casar com branco, só cultuar o negro. Isso é racismo puro. Nunca vi um lugar de branco dizer que não quer negro lá. Agora vai um branco entrar num destes lugares de negros só pra ver a cara que fazem. Vi uns adesivos de carro dizendo "100% negro". Se um branco usar um adesivo "100% branco" vai preso. A saída não é essa. Racismo contra preconceito, pra mim, é como apagar fogo com breu". [Getúlio, negro, dois filhos]
As avaliações acima mostram claramente a introjeção do preconceito racial dos brancos que desqualifica os negros e prefere vê-los "em seu lugar". Num dos casos, a própria luta pelos direitos iguais, quando endurece, é vista como "racismo". Essa introjeção também é perceptível nas seguintes falas:
"Antes o que era do branco era do branco e o que era do negro, era do negro. Quando começou a misturar, vem os negros com essa fala de que precisa separar o branco do preto, que somos afro...somos nada. Somos é bra-si-lei-ros! Por isso que eu falo que a maior parte do racismo, não vem só do branco, vem do negro".
"- E você fala sobre isto com as crianças? Que a maior parte do preconceito vem do negro?"
"Não. Não falo. Mas mostro que é muito feio esse negócio de ficar falando que nem esses moleques funk, Mano Brown, "não sei que lá"merrrmão".... se vestir mal...depois que tratam mal, aí vem com discurso revoltado..." [Jerson, negro, dois filhos]
A mesma situação é percebida por brancos:
"Os próprios negros são racistas! Você já viu quando a polícia faz aquelas batidas pra procurar bandidos, droga etc nos carros? Os policiais negros maltratam mais os próprios negros! E até falam, que eu já vi, coisas feias como" encosta aí negão vagabundo", essas coisas. Eles mesmos se discriminam. (Elaine, branca, mãe de uma criança)
Aqui encontramos um paradoxo, pois se dependêssemos exclusivamente desta pesquisa para avaliar a questão, chegaríamos à estranha conclusão de que o racismo contra negros no Brasil é fortemente influenciado pelo racismo negro contra brancos e contra os negros também ...
Se na escola e com relação a ela, a questão racial surge e a reação dos pais é ambígua, dentro do espaço familiar, por sua vez, poucas vezes há uma orientação anti-racista, a valorização da negritude ou qualquer incentivo à afirmação desta característica diferencial. Em alguns casos, como o de Marta, existe até mesmo uma certa resistência a enfrentar a questão. As entrevistas revelaram que a crítica ao racismo não tem sido abordada na socialização das crianças negras e que estas crianças não têm repertório de argumentos contra a discriminação. E este problema é antigo:
"Nunca se falou sobre isto na minha casa. Nunca. Também não falo com meus filhos. Mas também, falar o quê? Para brigar? Não sei... eu não sei o que ensinar".
"- E se você for discriminado diante de seus filhos? O que você faz?"
"Já aconteceu! Eu estava em Trancoso, na Bahia, cheio de turista estrangeiro, com uns amigos, também negros, e quando entramos em um restaurante, o dono disse pra gente que a única mesa vazia estava reservada. Circulamos pelo local e logo a mesa foi ocupada por um grupo de brancos. E estava na cara que não tinham reservado nada. Chegaram e sentaram como se faz normalmente. Fomos para outro restaurante, mais caro. Não fiz queixa nenhuma. Em lojas, é freqüente te tratarem como suspeito ou te ignorarem, achando que você não tem dinheiro. Normalmente, eu deixo passar. Dependendo do humor, posso fazer um escândalo. Mas não iria à polícia, apesar de saber da lei. Mas pensando bem, isso não é um bom exemplo...". [Getulio, negro, pai de dois filhos].
Argumentar pela igualdade entre negros e brancos é difícil para as crianças negras. Em geral faltam-lhes argumentos. E faltam argumentos porque faltam informações. Não apenas em casa, mas também na escola, na mídia, na religião, no cinema e nas artes em geral. Faltam-lhes espelhos diante dos quais construir sua identidade, e os raros exemplos que lhes dão soam a acasos e não a direitos ou resultados da luta por oportunidades iguais.
Uma vez que o atributo diferencial é dado pela aparência (cor) e nela certos aspectos são definidores da raça, como os cabelos, é com a aparência a maior preocupação dos pais em relação aos filhos. Cuidar que se apresentem limpos e bem vestidos é o modo não apenas de dar-lhes noção de higiene e bom gosto, mas também de protegê-los da discriminação direta. Quando perguntei qual era a maior preocupação dos pais, as respostas foram em geral relacionadas ao bem apresentar-se publicamente. Além disso, investe-se muito dinheiro na compra de produtos que visam "melhorar" a aparência, como cremes amaciantes e tratamentos de relaxamento de cabelo, serviços de cabeleireiros, roupas e sapatos.
"A gente gasta uma nota com o cabelo. Mas acho importante. Pros meninos, agora que tá essa moda de negro careca, tá bom. Passa a máquina zero e pronto. Mas pra mulher é mais difícil. 120, 150 reais pra fazer o tererê [trancinhas], 50 pro relaxamento, porque alisar faz cair todo cabelo, ninguém quer mais. Mas também não quero ser "nega do cabelo duro" e não quero que minha família seja. Hoje os pretos estão mais bonitos, com o canecalon, essa moda do tererê. Quando acabar vai ser fogo, de novo. Não pode acabar. Se a pessoa é um negro bem arrumado, limpinho, com sua apresentação decente, raramente será discriminado. Eu nunca fui"".(Vilma, negra, 4 filhos)
Portanto, as crianças são ensinadas, como todas as crianças, a serem limpas, arrumadas, educadas; mas para elas será mais que uma necessidade biológica, pois sua aceitação como negros dependerá do quanto elas demonstrem corresponderem à expectativa e ao padrão brancos.
"Minha mãe fala o tempo todo: vai sair? Põe perfume! Põe desodorante! Tomou banho? Não quero filho nego fedido! É todo dia isso". (Joel, negro, 13 anos)
O casamento com brancos é visto positivamente pela maioria. Apenas dois entrevistados disseram que não gostariam que seus filhos se casassem com brancos, alegando que mais tarde surgiriam problemas com os netos. Mas em geral não se proíbem e nem se desestimulam os relacionamentos amorosos inter-raciais. Existe, contudo, a percepção de conflitos possíveis advindos do preconceito e dificuldade na abordagem do tema em família, dada sua complexidade:
"Se a pessoa se apaixona não tem jeito. Eu não proíbo e nem quero proibir porque se proibir, além de medieval, piora. Mas também não acho bom. Até casar, tudo bem, mas na hora que nasce o primeiro filho preto, ou mulatinho de cabelo ruim, a família branca começa a tratar diferente, o povo da rua acha que é filho da empregada... Estas coisas fazem mal pra pessoa. Acho melhor preto com preto, branco com branco. Você viu que até na novela, tinha isso, do pai loiro não querer filho preto, mas ser louco pela gostosa da mulata dele. Aquilo é a pura realidade".
"- E você fala disso com a Luana e o Martin [filhos]?"
"Não. Porque não tenho certeza do que seja o melhor. Não quero eu também virar racista. Eles que escolham e eu digo o que penso. A Luana, por exemplo, está na idade de namorar. Ela gosta de brancos, mas ela é condicionada pela cultura branca. Ela não está escolhendo, como também não está se eu der a minha opinião. Então, ela fique com a dela, ou a que ela pensa que é dela. O máximo que eu posso fazer é mostrar os negros que eu acho lindos pra ela. Eu ensino a ver a beleza negra e a beleza da negritude".
"- E o que você mostra, quando ensina a ver estas belezas?"
"A pele sem manchas, a musculatura, as curvas do corpo, os ombros fortes, os olhos...o sorriso... A coragem, a bondade, o carinho dos negros. Um negro bem vestido é lindo! Mas veja, mal vestido também é. Só que não se vê. Mostro a antigüidade da raça negra, nossa identidade, nossa diferença. Somos o povo mais diferente do mundo. Somos de outra cor! Completamente outra! Isso é lindo demais! [risos]".
RAINHA DO ILÊ AYÊ
A presença do negro como elemento fundamental na construção do país não foi citada pelos entrevistados, embora sua "contribuição" seja vista sempre como positiva e citados os aspectos mais folclóricos como o samba e a comida. A maioria não sabe muito sobre personagens negros atuantes na história e nem lembram de comentar isto com seus filhos. Alguns temem que as crianças se interessem por atitudes radicais como as de "rappers" e "funkeiros". Conhecem poucos empresários, artistas ou cientistas negros. Conhecidos são os grupos de pagode e os jogadores de futebol. Algumas crianças citaram, significativamente, atores de novelas negros (que apareceram recentemente), jogadores de basquete americano e "rappers", mostrando o importante papel da mídia na luta contra o preconceito racial. O negro de sucesso é visto como raridade. Alguém que teve a "sorte" de ter uma oportunidade. Reconhecem como contribuição negra apenas os valores nacionalmente reconhecidos ou que são ensinados na escola formal, embora alguns lembrem outros valores, mais recentes:
"Isso não vai mudar nunca: o samba é do negro, a capoeira é do negro, o candomblé é do negro".
"Futebol é coisa de negro. Ronaldinho é negro, Pelé é negro, Denílson é negro, Garrincha era negro, Leônidas Cafu todos os craques. Agora, vê se tem um técnico de seleção negro. Quem manda nos negros são sempre os brancos".
"O Michael Jackson é um negro de sorte. Mas tá ficando branco; vai ver que é por isso que foi ficando mais rico...[gargalhadas]
A resposta mais constante sobre o que dizem quando alguém diz ou insinua que negros e brancos são qualitativamente diferentes foi a de que "Deus" fez todos iguais, somos todos iguais, o sangue de todos é igual e a alma é igual". Empiricamente, contudo, quando esta igualdade não se dá, não se sabe como argumentar a favor dela em termos práticos, nem mesmo invocando a lei ou a biologia. Perguntando às crianças se elas conhecem negros importantes na história do Brasil, a resposta geral foi não. Apenas duas lembraram de nomes como Zumbi, André Rebouças e outros; sintomaticamente, as que têm pais militantes e escolarizados. Outras falaram de Pelé. Nas artes, os grupos de pagode e artistas de televisão foram os mais citados. Negritude Júnior, Só Preto sem Preconceito e Raça Negra, são tidos como os mais importantes no segmento artístico e o simples fato de ostentarem a negritude no próprio nome já eleva o moral das crianças, que dizem orgulhosamente que estes negros são negros importantes e com os quais gostariam de parecer.
"Eu queria ser como o Salgadinho, o Netinho, o Alexandre [elementos dos grupos de pagode citados] Porque são bonitos, se vestem bem, cantam legal. São muito respeitados".
Perguntados sobre negros famosos na política, os nomes de Celso Pitta (ex-prefeito de São Paulo) e Benedita da Silva (senadora da República) foram citados duas vezes. Não lembram de mais pessoas, a não ser dois casos, em que foram citados Nélson Mandela, Luther King e Malcomm X.
O acesso à informação através do gosto pela leitura de livros, revistas e jornais é fundamental. Os pais e filhos que conheciam mais sobre a situação dos negros no Brasil, seus novos horizontes, produção cultural e organização, obtiveram informações sempre por estes meios, deixando bem claro o fato de que na escola não se aprende nada sobre os negros senão como escravos no tempo do Brasil colônia.
"Tem muitos negros importantes não só no Brasil como fora dele. E negras também. Eu tento mostrar isso pros meus filhos, sim, para eles verem que não existe impedimento disso. Podemos fazer qualquer coisa, ocupar qualquer posto, desde que tenhamos competência para isso. Não falo diretamente, para não criar um clima de racismo negro contra brancos, mas mostro negros em posição de importância. Falo: "olha que negro lindo", "que negra inteligente", sempre. Reforço a cor. Outro dia ficamos assistindo uma entrevista do Mílton Santos [geógrafo, professor da Universidade de São Paulo] na TV. Levei eles para assistirem os filmes de Spike Lee, compro a revista RAÇA, livros da Elisa Lucinda, do Luís de Melo Santos, Machado de Assis, que pouca gente fala que era negro, compro discos de negros como Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Billie Holiday, Ben Webster, Michael Jackson, Mano Brown, Carlinhos Brown, levo eles para assistirem exposições de artistas negros como esta de Moçambique que teve agora, vimos a Mão Afro, tudo. Talvez nem seja tão bom isso... É uma preocupação constante minha, que pode interferir com a cabeça deles, que são o tempo todo lembrados que são negros, e essa é uma preocupação que outros pais não têm. Mas ensino eles a terem orgulho da raça. E não é uma coisa afro e nem black. É orgulho de ser negro brasileiro mesmo. De Luís Gama, José do Patrocínio, Zumbi... Nós somos os melhores negros do mundo". (Heloísa, arquiteta).
Para a maioria das famílias entrevistadas, contudo, dentro de casa, no cotidiano, as questões raciais tendem a ser "esquecidas" voluntariamente, segundo alguns informaram, porque, mesmo admitindo a existência de um preconceito racial a ser enfrentado na sociedade brasileira, a casa deve ser um porto seguro, lugar de paz, onde as crianças não precisem se sentir diferentes.
"Eles já sofrem demais lá fora. Quando chegam em casa eles têm que esquecer disso, ter um lugar de paz. Não falamos disso não." [Marina, mãe, 3 filhos]
"Mas também, falar o quê? Que eles são iguais aos outros? Eles têm que ver que são. Que são melhores? Não, não são não! Que eles devem brigar quando vêem que a coisa tá pegando por causa da cor? Não! Não! Aí, além de preto, vira preto encrenqueiro, preto maloqueiro, sem educação. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come![gargalhadas] [João, pai, 5 filhos].
As crianças, como os próprios pais, não têm muito claro a importância do papel negro na construção da sociedade brasileira, suas lutas pela liberdade, sua produção social e cultural. Apenas os casais mais jovens e escolarizados, entre os entrevistados, demonstraram conhecer esta produção no Brasil e no mundo e a visão crítica dos movimentos políticos:
"O erro de muitos negros ativistas políticos, e eu me incluo nisso, é o de ignorar a existência do indivíduo e só pensar na raça, na classe. A gente nega a existência do indivíduo. Fala "o povo brasileiro" como se o povo fosse igual, no Nordeste, Sul. Ou então, "os negros". Existem os negros, mas existe o negro, também. E existe a família desse negro, o amor desse negro, o filho desse negro em relação com a sociedade branca. Existe a religião desse negro e assim a filosofia desse negro. Negro de esquerda e de direita, negro macumbeiro, católico, evangélico. Que cria seus filhos e sua família assim. Nunca se discutiu o indivíduo politicamente. E mesmo se os negros forem todos ricos, vão ser discriminados não pela classe social, mas pela cor. É preciso começar a lidar com isto. [Selton, 40 anos, médico]"
José Do Patrocínio
A extensão da pesquisa não permite conclusões maiores. No entanto, a recorrência, nos discursos, de certos temas e aspectos permite notar que as crianças negras são socializadas para a igualdade. Este seria um aspecto imensamente positivo não fosse a realidade preconceituosa que devem enfrentar, o que fazem ingenuamente, admitindo o preconceito do outro como defeito a ser tolerado, ignorado ou driblado. A falta de conhecimento e valorização da contribuição negra para a formação da sociedade e cultura brasileiras impede o desenvolvimento da auto-estima e da vontade de combater o preconceito racial que, por sua vez, é muitas vezes internalizado pelos próprios negros, que dizem não gostar de negros e desconfiar deles. Estes valores se transmitem às crianças. E aos evidentes e indiscutíveis obstáculos impostos pela estrutura econômica e cultura discriminatória, soma-se o fato de que já durante a socialização não existe a tematização e postura crítica dos pais em relação ao preconceito racial (ou mesmo de exaltação do valor dos negros) e exista, também, muitas vezes, uma postura que dilui os antagonismos em termos de classe social, episódios, ou divergência de personalidades, levando até ao sentimento de não ser negro quando se é mestiço. Existe ainda a perniciosa atitude "conformada", em que ser aceito é suficiente, mesmo que para isso seja preciso corresponder às expectativas dos brancos, estratégia moderadora de conflitos que, ao repetir-se por gerações, acaba por reproduzir o quadro de subordinação de negros diante de brancos. Todos estes fatores parecem impedir uma atitude mais positiva no enfrentamento do preconceito de cor. Podemos especular, também, que uma baixa auto-estima, que impede a crítica, advém da falta conhecimento, referências e informação sobre a contribuição negra na sociedade brasileira e dos elementos científicos envolvidos na questão racial. Como vimos, muitas crianças negras não conhecem negros brasileiros famosos na história, política, literatura, música, religião, artes etc. Todas, entretanto, conheciam piadas sobre negros. Isso leva a um sentimento inconsciente de inferioridade do negro frente ao não-negro e o fato de ser aceito entendido como uma conquista pessoal, muito menos que um direito, levando à uma atitude "resignada" diante da desigualdade e discriminação, quando não de inferioridade mesmo. Temos ainda o agravante de uma educação formal que não valoriza positivamente a contribuição negra e a diferença racial, nem aponta claramente a discriminação e injustiça existentes. A atitude dos familiares e educadores, neste sentido, poderia levar a uma mais efetiva postura de rejeição à discriminação e a um menor sentimento de exclusão ou inferioridade, dando inclusive argumentos claros e indiscutíveis para o desmonte dos preconceitos oriundos da falta de informação que norteia todo o processo discriminatório na sociedade. Sendo assim, não é de estranhar que apesar de todo o desenvolvimento social, num país plurirracial como o Brasil, negros ainda sejam discriminados.
André Rebouças
A ambigüidade do racismo brasileiro e a falta de informação e crítica dos pais de crianças negras (e de brancas também ), e mesmo a abordagem da questão racial em casa e na escola, podem permitir que a situação de discriminação se estenda por gerações futuras e a escola, primeira instância de convivência das crianças fora de casa, não tem ajudado muito ao folclorizar o negro na sala de aula. A socialização, moldando os valores dos seres humanos no futuro, tem em seu poder fornecer dados para a criação de uma consciência crítica nas crianças e jovens, de modo que, afirmando a negritude positivamente, venha a transformar o atual estado das coisas. O papel da escola, das igrejas, da mídia, dos movimentos negros, deve considerar, portanto, a necessidade de alertar os pais sobre a importância da discussão destes temas em casa e apoiá-los através da criação de material didático e palestras, filmes, exposições que possam informar sobre o papel dos negros no Brasil e no mundo, com nomes, obras, discussões etc.
Bibliografia
A pesquisa que deu origem a este artigo foi realizada em 1998, com uma dotação obtida da Fundação Ford, através do Centro de Estudos Afro-Asiáticos, do Rio de Janeiro, no IX Concurso de Dotações FORD-CEAA. A estas instituições agradeço pela confiança depositada em meu trabalho. O trabalho foi realizado exclusivamente na cidade de São Paulo (SP) e teve como interlocutoras 18 famílias. Destas, 10 eram compostas apenas de negros e 8 de negros casados con brancos.
(*) OS URBANITAS - REVISTA DIGITAL DE ANTROPOLOGIA URBANA :::::: ISSN: 1806-0528
Rita Amaral
ritaamaral[arroba]pobox.com
Dra. em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo NAU-USP
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