Documento de trabalho
EDUCAÇÃO E PRODUTIVIDADE NA ÁREA RURAL BRASILEIRA é uma pesquisa piloto realizada pela Escola Brasileira de Administração Publica da Fundação Getúlio Vargas com o apoio institucional e dentro do marco do grupo de trabalho de ECIEL sobre Educação e Desenvolvimento na América Latina. A equipe de pesquisa é formada por Simon Schwartzman (coordenador), Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes, Rafael Bayce Garcia Lagos, Vera Wrobel e Jane Selma de Lacerda Correia (assistente administrativa).
O objetivo deste texto é colocar alguns problemas conceituais relativos ao estudo, em vias de preparação, sobre educação e produtividade na área rural. O ponto de partida é o modelo interpretativo de tipo econômico, hoje em dia amplamente utilizado, que tende a examinar a educação como um bem de capital, em princípio determinável em suas dimensões de custo, produtividade, etc. O objetivo é colocar esta abordagem dentro de um contexto conceitual presumivelmente mais amplo, que ajude talvez a entender porque as chamadas "teorias de capital humano" têm encontrado dificuldades em sua aplicação em países como o Brasil, e possa também sugerir outras estratégias de policy na área de investimento educacional.
Vale a pena expor, muito resumidamente, os conceitos básicos da teoria de capital humano(1). Existe uma série de fatos que mostram que o nível educacional tem uma relação direta com a produtividade, quer no nível individual - correlação entre escolaridade e renda - quer no nível macro-econômico - a importância do fator educacional na explicação de níveis e taxas de crescimento econômico. É principalmente a partir desta análise macro que Theodore W. Schultz propõe sua teoria do capital humano, indispensável, segundo ele, para o entendi-mento adequado de fenômenos tais como a recuperação européia no pós-guerra, a dificuldade dos países subdesenvolvidos em absorver adequadamente capitais importados, etc. A educação e vista, neste contexto, como um investimento, e como tal incorporada à teoria econômica geral:
"É uma etapa da maior importância em direção a uma teoria geral, em que todos os recursos de investimento são englobados e vinculados destinatariamente de acordo com o padrão econômico significativo estabelecido pelas taxas relativas de rendimento, diante de oportunidades alternativas de investimento" (p.14).
Este conceito ampliado de investimento'em capital inclui a educação formal, a pesquisa tecnológica, os gastos de saúde, enfim, todas aquelas atividades que conduzem a uma melhoria de qualidade do componente humano, e, conseqüentemente,. da produtividade do sistema econômico. O poder explicativo atribuído a este conceito por. Schultz, é enorme, indo desde os fenômenos de crescimento macro-econômicos referidos acima até diferenças em rendimentos entre grupos sociais distintos, em função de raça, idade, sexo, nacionalidade, etc. Referindo-se a estudos feitos nos Estados Unidos, ele afirma que
"dado que tais índices diferenciais de rendimentos correspondem a diferenciais correlatos n campo da educação, eles sugerem fortemente que um é conseqüência do outro". E, mais adiante: "As grandes diferenças de rendimentos parecem refletir, antes, principalmente, as diferenças em saúde e na educação (p.35/6).
Se isto fosse assim, a educação seria uma grande panacéia para os problemas de subdesenvolvimento e desigualdade social; e mais ainda, se fosse possível estabelecer a produtividade específica da educação por nível e setor da sociedade, teríamos critérios para orientar os investimentos públicos e privados em educação no país, de maneira a maximizar os valores de riqueza e eqüidade social. Daí, evidentemente, o grande interesse pela teoria do capital humano.
Existem polemicas e discussões a respeito desta concepção, e me referirei, aqui, somente a duas dificuldades que são mais especificamente relacionadas com o que nos interessa. Primeiro, ainda que diferenças em saúde e educação expliquem uma boa parte da variância em rendimentos entre grupos étnicos e regionais nos Estados Unidos, mesmo naquele país as diferenças devidas. a fatores não econômicos. tendem a permanecer quando os controles por educação e saúde são introduzidos. A correlação positiva entre renda e idade, até certo limiar, pode corresponder efetivamente ao acréscimo de conhecimento que as pessoas adquirem durante sua vida profissional, mas também correspondem a fatores de "seniority" que são amplamente usados como critérios de remuneração e têm pouco a ver, em princípio, com capacidade(2).
Isto nos leva ao segundo problema. que é ,mais básico: a suposição de que existe uma relação clara entre renda e produtividade, fazendo com que aquela possa servir de "proxy" para a mensuração desta, no caso do capital humano. Outros fatores permanecendo constantes, o fato de que uma pessoa triplique sua renda em função de mais cinco anos de escolaridade significa que sua capacidade produtiva também aumentou três vezes? Do ponto de vista individual, sem dúvida; do ponto .de vista do produto de seu trabalho, a coisa se torna extremamente complicada. A maneira clássica de resolver este problema, na impossibilidade de mensuração direta do produto físico, consiste em supor que o produto se mede pelo seu valor no mercado, e que o mercado tende a corrigir distorções e defasagens quando visto em termos agregados e a longo prazo; e que, assim, a renda real é, efetivamente, a medida adequada e única possível da produtividade de uma determinada atividade ou incremento de investimento deste ou daquele tipo.
No entanto, a existência de diferenciais de salário tão distintos entre níveis educacionais de um país a outro e de um grupo sócio-econômico e cultural a outro fazem supor que existe mais que um diferencial implícito de produtividade entre os diversos níveis educacionais. Grande parte da justa indignação dos movimentos de "Women 's Lib" se baseia na constatação de que as mulheres, independentemente de seus níveis de educação, tendem a ter salários inferiores aos dos homens. No meio brasileiro, a remuneração obtida por pessoa de educação universitária tende a ser cerca de 6 vezes(3) superior à remuneração de uma pessoa de educação primária; este fator não é superior a dois ou três nos países mais desenvolvidos.
Ainda nestes casos seria possível argumentar dizendo que, no caso das mulheres , trata-se de uma "discriminação" ou "defasagem", enquanto nos casos das diferenças por educação se trataria de uma conseqüência da escassez de pessoal de nível universitário dos países sub-desenvolvidos. Ou, vendo a coisa por outro lado, que existem 'fatores institucionais" - sindicatos, leis sociais, partidos políticos - que elevariam a renda dos trabalhadores acima de sua produtividade real. Para ambos os casos, o economista liberal clássico tem a mesma solução: terminar com as discriminações positivas e negativas, acabar com as discriminações por sexo, educação ou sindicalização, acabar com as restrições às mulheres, assim como com as leis sociais que garantem salários mínimos, mecanismos de contratos coletivos, etc. Ou, em outras palavras: a instauração do ideal da sociedade de mercado aberto e puro. O problema é que este tipo de sociedade não existe em nenhum lugar conhecido no mundo, e seria realmente um pouco sem sentido forçar o desenvolvimento de sociedades como a brasileira no sentido de se adaptar à perspectiva teórica acima esboçada. O que é necessário, evidentemente, é um modelo interpretativo e analítico que tome mais em conta a realidade tal como ela é.
Críticos da análise econômica muitas vezes enfatizam as funções de transmissão de valores, da formação humanista, do desenvolvimento do espírito crítico, da mente aberta e criadora, que estariam sendo perdidas na análise meramente economicista da educação. Schultz concede, naturalmente, que nem toda a educação é orientada no sentido de aumento de produtividade, e por isto considera que existe também uma busca da educação como elemento de consumo, e não somente como investimento em capital.
Entretanto, um exame mais apurado das funções da educação meramente formal (aprender "bem" a lingua, saber colocar os pronomes, possuir as informações de cultura julgadas necessárias, e, claro, ter o diploma) no esforço de mobilidade entre estratos em mercados de trabalho segmentados mostra claramente que o termo "consumo " não dá conta de todo o fenômeno. Existe uma grande parte do sistema educacional que não está voltada nem para a produção (que consistiria em proporcionar skills específicos para o desempenho de funções) nem para o consumo (por exemplo, aprender literatura pelo lindo que é), e sim para a aquisição de certas maneiras de ser e certos símbolos sociais que permitem o acesso a outros estratos sociais ou segmentos protegidos do mercado de trabalho.
Vale a pena insistir neste ponto. Se a educação indubitavelmente "aumenta" a renda dos indivíduos, tal como se pode ver em pesquisas cross-section, isto não significa necessariamente que o aumento global da educação de uma população dada aumentaria seu produto global. É possível supor, por exemplo, que um aumento generalizado da educação simplesmente aumentaria os requistos educacionais dos candidatos aos empregos disponíveis, mantendo o nível de renda da população, assim como sua distribuição, inalterados. Para que o aumento da educação gerasse, efetivamente, aumento da riqueza, deveria ser necessário, primeiro, que o incremento em educação consistisse em incrementos em know-how especificamente necessário para a melhoria das atividades produtivas, e, segundo, que o sistema econômico tivesse condições de absorver efetivamente e utilizar este potencial de know-how acrescido. Exemplos contrários - populações rurais que se alfabetizam e imigram, universitários que devem abandonar seu país por falta de aproveitamento adequado, padrões de seleção para empregos baseados em requisitos superiores às necessidades da tarefa - são conhecidos demais para que estas dificuldades não sejam tomadas em consideração.
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