Introdução: a situação da educação brasileira
A educação tem sido apresentada, na América Latina como em outras partes, como o principal instrumento para solucionar os problemas de pobreza, desigualdade e falta de oportunidade que afetam os segmentos mais pobres da região. Primeiro, acredita-se que a educação, como capital humano, aumenta a produtividade e gera riqueza. Depois, a ampliação do acesso à educação daria mais oportunidades a todos, reduzindo a desigualdade social. Terceiro, ao difundir os valores de convivência social e comportamento ético, a educação fortaleceria o capital social, gerando mais confiança, honestidade e credibilidade nas transações econômicas, fortalecendo os mercados e criando um ambiente mais favorável para os investimentos. Mais recentemente, a necessidade de aumentar e melhorar a educação em todos os níveis tem sido apontada como a condição para que os países possam participar de forma adequada dos benefícios da nova "sociedade do conhecimento". A esta convicção dos especialistas a respeito dos benefícios da educação para a economia e a sociedade devemos acrescentar a crença que existe na população sobre benefícios privados que ela pode trazer, em termos de renda, emprego e prestígio social. A conseqüência é a demanda crescente, em todos os países, por mais e melhor educação em todos os níveis, limitada somente pelas restrições orçamentárias.
Outros autores, mais na tradição sociológica, vêm a educação de forma mais cautelosa, chamando a atenção para aspectos mais problemáticos Eles observam que a educação, por si mesma, não gera riqueza, a não ser quando combinada com outros fatores associados à modernização e ao desenvolvimento econômico. Em situações de estagnação econômica, a educação pode funcionar como mecanismo de filtragem e consolidação das desigualdades sociais, controlando o acesso a posições de autoridade, prestígio e riqueza. Ao invés de fonte de geração e distribuição de competências, a educação funcionaria, nestes casos, como mecanismo de distribuição e controle de credenciais que permitem ou não o acesso a posições socialmente vantajosas, determinadas pelas condições anteriores, ou "capital cultural" das famílias dos estudantes. Quando isto ocorre, os aspectos formais e burocráticos da educação se tornam dominantes, reduzindo a relevância da formação técnica e profissional. As dimensões morais da educação também sofrem, com os valores do estudo, da cultura e da competência sendo substituídos pela manipulação cínica dos rituais para a distribuição de credenciais, ou transformados em estilos de vida e símbolos de status que discriminam contra os excluídos.
Estes dois lados da educação são importantes quando pensamos na situação brasileira, aonde os problemas de falta de acesso se combinam com sérios problemas de qualidade e desvirtuamento, e ainda é forte a tradição bacharelesca que coloca os diplomas, mais do que a qualificação que eles refletiriam, como o grande objetivo a ser alcançado. A interpretação usual para esta situação é a de que estes são problemas de baixa qualidade, que poderiam ser superados pelo aumento de investimentos na educação em seus diferentes aspectos. No entanto, o Brasil já gasta bastante em educação em relação a seu produto, e os resultados que temos obtido até aqui estão muito aquém do que seria desejável, Deve ser possível melhorar a situação educacional brasileira pelo uso mais adequado dos recursos já existentes, enquanto as restrições fiscais não permitam que eles sejam aumentados de forma significativa.
Não é simples estimar quando o Brasil gasta em educação nos diferentes níveis e setores, mas é importante ter pelo menos uma ordem de grandeza. Uma estimativa recente, feita por um estudo do Banco Mundial em cooperação com o Ministério da Educação (The World Bank, 2002), é que o setor público gastou no ano 2000 cerca de 5.5% do produto bruto, 63.8 bilhões de reais, em educação. Isto coloca o Brasil em nível de gastos equivalente ao da Itália (4.8) Japão (4.8), México (5.5), e acima do Chile (4.3). A isto se pode adicionar cerca de 20 a 30% a título de gastos privados elevando o total de gastos em educação a cerca de 6.3% do PIB, ou US $38 bilhões de dólares.1 Os gastos vêm aumentando desde 1995, quando era da ordem de 4.6% do PIB. O governo federal é responsável por 18% deste total; os governos estaduais, 44.5%; e os governos municipais, 37.5%. Nos últimos cinco anos, a participação relativa de estados e municípios vem aumentando, graças à implantação, em 1996, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – FUNDEF -, que tornou efetiva a obrigatoriedade de Estados e Municípios aplicarem 25% de seus recursos em educação.
Em 2001, o governo federal gastou cerca de 60% de seus 11 bilhões de reais de recursos de educação com o ensino superior; o restante foi quase todo revertido para o ensino médio e fundamental2, como merenda escolar, livros didáticos e outros programas. Os estados, em 2000, gastaram 15.4 de seus 26.5 bilhões de reais com o ensino fundamental (da primeira à oitava série) e 8.7 bilhões com o ensino médio, além de cerca de dois bilhões com programas de educação de adultos. Os gastos municipais foram estimados, para 2000, em 24 bilhões de reais, dedicados sobretudo ao ensino fundamental, mas também, de forma crescente, à educação pré-escolar.
Nestas estimativas não estão incluídos os gastos dos Estados com educação superior, afetos normalmente às secretarias de ciência e tecnologia.
Só o Estado de São Paulo gasta cerca de 2,6 bilhões de reais anuais com suas três universidades; Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, Rio de Janeiro e outros têm também suas próprias universidades.Também não estão incluídos os custos de educação do chamado "sistema S", as escolas técnicas mantidas pelo SESI, SENAI, SENAC e outras instituições patronais, cerca de um bilhão anuais; e os gastos do Plano Nacional de Educação Profissional do Ministério do Trabalho (PLANFOR), cerca de 450 milhões de reais em 1999 com recursos do PIS-PASEP (Fundo de Assistência ao Trabalhador).
Em termos per capita, isto dá um dispêndio de cerca de 1,200 reais por ano por estudante do ensino fundamental e médio, e dez vezes mais, cerca de 12 mil reais, por estudante de nível superior.
Para ter uma idéia do que isto significa, é importante entender melhor aonde vai este dinheiro, e fazer algumas comparações. De longe, a maior parte dos gastos públicos com educação, em todos os níveis, é para o pagamento de pessoal, não só os ativos, como também os aposentados. Esta inclusão é polêmica, porque os aposentados não contribuem diretamente para as atividades de ensino; por outro lado, não há dúvida que os benefícios das aposentadorias fazem parte dos salários indiretos dos professores, e são gastos com o setor de educação, tomado em seu conjunto. Os cem reais por aluno/mês que o setor público gasta com o ensino fundamental e médio podem ser comparados ao que custa uma escola particular para a família do aluno – pelo menos três vezes mais, em média. Por outro lado, os mil reais mensais que o setor público gasta por aluno/mês com o ensino superior é pelo menos duas vezes o que custa o ensino superior particular. Isto é coerente com o que se sabe sobre a qualidade do ensino nestes níveis: em geral, o ensino privado de nível fundamental e médio é de melhor qualidade do que o público, enquanto que no ensino superior ocorre o oposto. O fato de o Brasil gastar dez vezes mais por aluno no ensino superior do que no ensino básico é uma aberração conhecida, parte da conhecida iniqüidade dos gastos sociais do país.
Por muitos anos, havia no Brasil a idéia de que faltavam escolas, e que por isto a população não se educava como devia. Hoje, o acesso à educação fundamental é praticamente universal, e já é possível falar de "inflação educacional" em alguns setores.3 Existem duas fontes principais de informação sobre a cobertura da educação brasileira, os recenseamentos realizados anualmente pelo Ministério da Educação e a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada também anualmente pelo IBGE. Os dados do Ministério da Educação são obtidos das escolas, no início do ano letivo; a PNAD é realizada anualmente, no mês de setembro, cobrindo todo o território nacional menos a zona rural da Região Norte. Os principais resultados destes dois levantamentos, para 2001, podem ser vistos na Tabela 1 abaixo.
Existem hoje, no Brasil, cerca de 26.2 milhões de crianças entre sete e 14 anos de idade, mas existem entre 31.9 e 35.3 milhões de estudantes na educação fundamental, um excedente de 5.7 a 9.1 milhões, segundo uma ou outra fonte. A razão é conhecida: existe muita repetição e atraso, e boa parte destes estudantes têm mais do que a idade devida. A razões da grande diferença entre os dados do Ministério da Educação e os do IBGE são menos óbvias. Como os municípios recebem dinheiro do FUNDEF conforme o número de alunos que tenham, pode haver uma tendência a exagerar este número.
Além disto, a pesquisa do MEC é feita no início do ano letivo, e a do IBGE em setembro, quando muitos alunos podem já ter abandonado a escola.
Tabela 1
De qualquer forma, os dados do IBGE mostram que, embora ainda com algum atraso, a quase totalidade das crianças do país entram na escola, e aí permanecem por vários anos; o abandono só começa a se tornar significativo a partir dos 14 anos de idade, quando a percentagem fora da escola atinge os 7.5% (Gráfico 1)**.
Várias conclusões importantes decorrem destes fatos. A primeira é que não existe, no Brasil, um problema significativo de falta de acesso à escola, ou falta de escolas; segundo, tampouco existe um problema importante de abandono escolar, antes dos 14 anos de idade; terceiro, o país mantém um sistema de educação fundamental que é cerca de 20% maior do que seria necessário, ou seja, poderia estar investindo mais 20% de recursos por aluno se não houvessem tantos alunos desajustados. Estes dados sugerem, ainda, que o FUNDEF pode estar provocando uma inflação de matrículas no ensino fundamental, seja pela incorporação prematura de crianças menores de sete anos de idade, seja pela presença, neste nível, de estudantes que deveriam estar nos cursos de educação de jovens e adultos. A PNAD de 2001 mostra a presença de 830 mil crianças de menos de sete anos e 2.3 milhões de pessoas de 18 anos ou mais na educação fundamental.
O segundo grau tem cerca de oito milhões de alunos, pouco mais ou menos conforme a fonte, o que daria uma cobertura entre 74 e 81% em relação ao grupo de idade, não fosse o fato de que cerca de metade destes alunos têm 18 anos ou mais. Este é um dos setores que mais tem crescido nos últimos anos, um aumento de 210% entre 1992 e 2001. A maioria dos estudantes está em escolas públicas, e estudam à noite. Chama a atenção, aqui, a quase inexistência de um ensino técnico de nível médio, em contraste com o que ocorre na maioria dos países.
O terceiro grau, de nível superior, teve uma expansão ainda maior do que o nível médio, passando de 1.3 para 3.4 milhões de estudantes entre 1992 e 2001.4 Parte desta expansão foi em resposta a um longo período de estagnação, durante toda a década de 80; e em parte responde à demanda criada pela expansão do nível médio. O que mais chama a atenção neste nível é a presença dominante do setor privado, que hoje atende a cerca de dois terços dos estudantes.
Finalmente, o Brasil tem um amplo programa de pós-graduação, com cerca de 100 mil alunos matriculados segundo informação disponível no Ministério de Ciência e Tecnologia, restrita aos cursos de mestrado e doutorado "estrito senso"; ou 270 mil, conforme a PNAD, que tem uma definição mais ampla. A pós-graduação "estrito senso" se concentra quase que exclusivamente em universidades públicas; pouco se sabe, no entanto, sobre outras modalidades de pós-graduação, que não são reguladas, e parecem crescer em grande velocidade.
Página seguinte |
|
|