O dom da eterna juventude

Enviado por Simon Schwartzman


Este texto é uma tradução (corrigida em alguns detalhes) de um trabalho de curso escrito em Berkeley, 1968, e deve ser visto neste contexto. Uma versão, infelizmente com demasiados erros de tradução, foi publicada em Dados, vol. 8, 1971, 26-46.

"Existem as ciências para as quais a juventude eterna é assegurada, e entre elas se encontram as disciplinas históricas; são aquelas em que problemas novos são perpetuamente suscitados pelo fluxo eterno e contínuo da cultura"(1)

I

Já por volta da passagem do século, Max Weber estava consciente de que as ciências sociais não tinham as características de uma disciplina madura, e, ao que tudo indica, esta idéia lhe agradava. Quarenta anos mais tarde, porém, essa mesma juventude não parecia agradar tanto a Robert K. Merton. Para este, a imaturidade das ciências sociais era uma boa razão para mantê-las restritas a uma teorização de alcance médio, e Merton na verdade lamentava a ausência de gigantes sobre cujos ombros se pudesse vislumbrar o cobiçado amadurecimento das ciências sociais(2).

A desagradável inabilidade das ciências sociais de se comportar corretamente como as outras ciências constitui certamente a base de todas as discussões metodológicas e epistemológicas da área. Poucos discordam do fato de esta inabilidade realmente existir. As dúvidas se referem, em primeiro lugar, a se isto é uma coisa boa ou má, e, segundo, às conseqüências que poderiam resultar daí. Teríamos nós que pressupor, como Merton, que as ciências sociais(3) são simplesmente jovens, quando avaliadas em termos de horas acumuladas de pesquisa, sendo dessa forma normal o fato de que não apresentem nem a estabilidade nem a força explicativa das ciências naturais? Ou deveríamos concordar com o fato de que a eterna juventude nas ciências sociais não é uma questão de idade ou de acúmulo de descobertas, e sim, como Weber o coloca, uma conseqüência feliz do "fluxo contínuo da cultura"?

Sabemos que a sociologia é bastante diferente das ciências naturais, com pouca integração teórica, sistemas dedutivos fracos ou inexistentes, baixo grau de confirmação de suas proposições, caos conceitual e pouca cumulatividade de resultados de pesquisa. Na visão de Merton as ciências naturais, e mais especificamente a física, ofereceriam o padrão de como deveria ser a sociologia e de como ela será em alguma época no futuro. As características de uma ciência madura (o espelho no qual se reflete de maneira tão pobre a sociologia) são tomadas tanto da experiência das disciplinas naturais quanto da lógica e epistemologia delas derivadas. Se a estrutura das proposições científicas é sempre a mesma, a imposição deste padrão sobre as ciências sociais parece ser inevitável, uma mera questão de tempo. Abandonar este postulado da unidade do conhecimento científico significaria, como tem significado para muitos estudiosos, buscar formas não empíricas de conhecimento que são incompatíveis com os cânones aceitos e consagrados da intersubjetividade, verificabilidade e refutabilidade que são comuns às proposições científicas de todas as ciências.

A primeira dificuldade com esta visão é que a sociologia não parece ter se tornado mais madura no período transcorrido entre a afirmação de Weber sobre a eterna juventude e a publicação das idéias de Merton sobre as teorias de alcance médio(4). E as sucessivas reedições de Social Theory and Social Structure no período do pós-guerra não assinalam uma comulatividade da pesquisa social nas dimensões esperadas ao final dos anos 40, sugerindo que a tese da eterna juventude talvez tenha, afinal, sua razão de ser(5).

A isto é possível acrescentar que Merton nunca demonstrou como as tendências atuais do desenvolvimento da sociologia estariam levando ao surgimento das características que ela "deveria" apresentar. O mesmo poderia ser dito da maioria das discussões sobre o tema, incluindo a Thomas S. Kuhn, que considera as ciências sociais como "pré-paradigmáticas", em termos da noção de paradigma derivada do estudo histórico das ciências naturais(6).

Conquanto esclarecedora possa ser a analogia com as ciências "mais velhas", existe sempre o perigo de se impor às ciências sociais um modelo que tem pouco a ver com sua prática e tendências reais. Derivar as caracteristicas de uma determinada ciência de um modelo normativo é, como G. G. Granger o coloca, fazer l'hermeneutique d'une mythologie(7). Granger não nega que a prática real de uma ciência envolve, em cada etapa, um ideal específico de conhecimento, mas adverte: "é importante não confundir este ideal, que é parte integrante do pensamento científico como fato, com uma norma universal e pré-determinada. A ciência existe de fato; a dificuldade mais paradoxal da epistemologia é apreendê-la enquanto tal, sem substituí-la por uma imagem hipostasiada".

Nossa suspeita é que essa dificuldade preliminar não está sendo considerada e superada; pior, a "mitologia" que tem sido utilizada como modelo para a sociologia não é nem mesmo derivada de um ideal das próprias ciências sociais, mas de um outro campo. A conseqüência é a tentativa de vestir o modelo como uma camisa de força na sociologia, afastando como inaceitáveis outras formas de análise social. Podemos levantar, em conseqüência, uma segunda suspeita: a de que a sociologia tenha talvez, afinal, recebido o dom da eterna juventude, sem que isto signifique um desvio radical dos cânones mais gerais da epistemologia científica.

Antes de passar a Weber, porém, examinemos com algum detalhe a imagem dos ombros do gigante. Trata-se de uma frase atribuída a Newton, segundo a qual ele não passaria de um pigmeu montado nas costas de gigantes. É curioso como Merton, ao mesmo tempo em que lamenta a falta destes gigantes nas ciências sociais, prega o esquecimento dos poucos que temos. "Nós, sociólogos de hoje, podemos ser apenas pigmeus intelectuais, mas, ao contrário de Newton, não somos pigmeus nos ombros de gigantes. A tradição acumulativa é tão parca que os ombros dos gigantes das ciências sociais não fornecem uma base suficientemente sólida para nela se apoiar. O apotegma de Whitehead se aplica assim muito mais à sociologia que às ciências físicas, que apresentam um grau maior de avanços cumulativos: uma ciência que hesita em esquecer seus fundadores está perdida"(8). A conclusão parece ser que, quando mais necessitamos de gigantes, mais devemos esquecê-los...

A mensagem de Merton, como uma advertência à especulação e personalização excessivas da sociologia, numa época em que as técnicas de pesquisa social estavam surgindo e precisavam ser desenvolvidas e consolidadas, foi e ainda é, sem dúvida alguma, de bastante relevância e valor. O que não é tão certo é se dela se extrái uma imagem adequada de como a ciência social na verdade se desenvolve, e que sua advertência deva ser tomada literalmente em toda e qualquer circunstância.

A idéia de gigantes científicos não é uma mera figura de linguagem. Hoje se aceita que a ciência seja organizada em torno de paradigmas, que são geralmente desenvolvidos em torno de um esquema teórico e estilo trabalho que pode ser atribuído a um autor. Como Kuhn claramente demonstra(9), diferentes paradigmas implicam em diferenças no estilo, critérios de verdade, normas de procedimento científico "adequado", etc. Novos paradigmas são inaugurados por cientistas que se tornam notórios, e que são capazes, devido a certas características intelectuais, psicológicas e sociológicas, de tirar proveito do avanço "seletivamente cumulativo" da pesquisa que termina por levar à exaustão os paradigmas anteriores. Assim, a ciência se desenvolveria por acumulação e saltos qualitativos, as "revoluções científicas"; estes saltos são o resultado de um trabalho individual, personalizado; e esta não é uma atividade puramente "científica", que tenha que ver apenas com as necessidades intrínsecas, ou com as potencialidades de uma disciplina como corpo abstrato de conhecimento. O que leva ao surgimento de gigantes científicos é uma questão de resposta difícil; o que parece estar claro, de qualquer forma, é que as condições apontadas por Merton não parecem ser as melhores para este propósito.

A principal fraqueza do argumento de Merton está em que ele não indica como, exatamente, a acumulação de conhecimentos levaria ao surgimento de gigantes científicos e à consolidação de paradigmas. Não existem critérios que permitam saber quando existe um nível "satisfatório" de convergência de resultados, e muito menos para calcular quantos homens-hora de pesquisa seriam necessários para produzir um gigante de tamanho razoável. O conceito de "avanços seletivos e cumulativos", utilizado por Merton, supõe a existência de um marco de referências comum que, na medida que é implícito, termina por ser "esquecido". A busca desta base como é, exatamente, o que caracteriza uma disciplina moderna ou jovem, da mesma forma que a busca da identidade é uma característica central da adolescência. Se isto é assim, não é somente sem sentido, mas também prejudicial, pedir que a sociologia esqueça seus problemas de identidade e se comporte de maneira educada, da mesma forma que pais pouco perceptivos fazem com filhos excessivamente ansiosos. É muito cedo para a sociologia esquecer seus fundadores, mesmo se aceitarmos a idéia de Merton de que um dia eles entrarão, se não no esquecimento, pelo menos na área do inconsciente. Uma ênfase excessiva em teorias de alcance médio, e uma repressão prematura de atividades mais especulativas, podem significar simplesmente a proliferação de pesquisas esparsas não somente pouco relevantes, mas o que é pior, sem nenhuma cumulatividade.

A despeito de sua fraqueza, o argumento de Merton é importante na medida em que ele se apóia no exemplo das ciências mais maduras, e também porque ele sugere uma saída para as ansiedades da especulação excessiva. Estas ansiedades serão discutidas mais adiante. Examinemos, antes, a argumentação de Weber sobre a eterna juventude.

II

Um breve sumário da tese de Weber, que esperamos não seja uma distorção muito grande do que ele realmente quiz dizer, pode ser feita da maneira que se segue.

Weber caracteriza o objeto da ciência social como histórico, e isto em dois sentidos. Fatos sociais são históricos porque ocorrem no espaço e no tempo. Têm um presente, um passado e um futuro, e são sujeitos a mudanças. As ciências sociais, neste sentido, já são diferentes das ciências naturais, que tratam de fenômenos que são invariáveis no tempo e no espaço(10). As ciências sociais são históricas também no sentido de que tratam de fatos significativos, que são avaliados de forma que varia historicamente. Isto significa que o "mesmo" objeto, que é por si só desarticulado e sem significado, adquire cor e forma diferentes de acordo com idéias e valores mutáveis, e tem que ser estudado repetidamente, de acordo com pontos de vista diferentes. As conseqüências derivadas por Weber de tal caracterização do objeto científico das disciplinas sociais são claramente expressas nos estágios que ele crê que a explicação social deve seguir. Existem três, ou talvez quatro estágios a serem claramente diferenciados(11).

O primeiro deste estágios é a busca do conhecimento das leis gerais, ou do estabelecimento de uma teoria geral que permita analisar e a reduzir a um número reduzido de fatores todos os nexos causais da interação humana. Weber era cético quanto à possibilidade de efetivamente desenvolver uma teoria deste tipo, e nem acha que esta seja a principal coisa a fazer, mas não deixa de reconhecer que se trata de algo logicamente possível.

O segundo estágio consiste na análise de uma combinação específica destes fatores de uma forma que seja significativa. Nos termos de Weber, "analisar configurações individuais historicamente dadas destes 'fatores', e sua interação concreta e significativa, condicionada pelo seu contexto histórico, e particularmente tornar inteligíveis a base e o tipo desta significação, seria a próxima tarefa a ser realizada"(12). O terceiro estágio é o da explicação causal, de tipo histórico: identificar as causas específicas da ocorrência de determinados fenômenos que estamos estudando. O último estágio, finalmente, seria o da previsão de "possíveis constelações futuras".

É interessante notar como Weber dá tão pouca atenção ao quarto estágio, da previsão, em contraste com as tendências mais modernas que tendem a tomar as possibilidades de previsão como o próprio critério da cientificidade.(13) A oposição radical que ele introduz entre a explicação geral e "legal" (através de leis empiricamente verificadas), por um lado, e a explicação individualizada e histórica, por outro, é uma conseqüência de sua descrença na possibilidade de uma sociologia de tipo mais geral, que ele só admitia ser possível, em tese, pela redução dos fenômenos sociais ao nível psicológico. A explicação causal, que ele admite, é somente a de tipo histórico, às quais Weber tampouco dá muita atenção, e que de qualquer forma não sobreviveria à crítica de Popper, que deixou claro como as chamadas "explicações históricas" simplesmente deixam implícitas as teorias explicativas mais gerais que de qualquer forma utilizam.(14)

O que permanece efetivamente como central é o segundo estágio. É aqui que surge a abordagem "compreensiva", e é daqui também que emerge o aforisma da eterna juventude das ciências sociais. Nossa sugestão é que estas duas coisas não estão necessariamente vinculadas, ainda que, em geral, tendam a caminhar juntas, como em Weber. Antes de nos aprofundarmos neste tema devemos, porém, voltar à questão das ansiedades que uma abordagem mais especulativa às ciências sociais tende a criar em determinadas circunstâncias.

 


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