I. Introdução a um documento paradigmático
O dia 22 do mês de junho de 2004 marcou, com Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, ocupando a presidência da República desde 1º de janeiro de 2003, os primeiros dois anos da "Carta ao Povo Brasileiro", um documento singular na história recente do Brasil. Com efeito, nela, um líder político brasileiro, candidato a presidente, propõe um pacto com o povo, assumindo solenemente uma série de compromissos que, um mês depois, em 23 de julho de 2002, seriam confirmados no documento "Compromisso com a soberania, o emprego e a segurança do povo brasileiro" (todos os documentos da campanha do PT de 2002 encontram-se disponíveis no link: http://www.lula.org.br/obrasil/documentos.asp ).
Muitos analistas políticos, entre eles o que assina estas linhas, já destacaram tratar-se a "Carta" de um texto relevante do mais importante partido político brasileiro da atualidade. Creio, pessoalmente, que ela sinalizou uma nítida inversão da curva eleitoral naquela campanha, que se revelaria finalmente vitoriosa, depois das três tentativas anteriores. A partir daquele momento, e antes mesmo de ocorrido o primeiro turno das eleições, consignei a marcha para a vitória numa série de ensaios (enfeixados sob o título comum de "Conseqüências econômicas da vitória"), que depois seriam reunidos no livro A Grande Mudança: conseqüências econômicas da transição política no Brasil (ver sumário em: http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html).
A "Carta" constituiu um instrumento "fundador", sendo paradigmática de uma transição efetivamente realizada, mas curiosamente não explicitada nos anais e crônicas do partido. De fato, a "Carta" deve ser identificada como um documento de ruptura, e talvez duplamente, tanto no sentido de proposta para um novo caminho político, mas também ruptura com "tudo aquilo que estava ali", isto é, com as velhas crenças do PT.
Recorde-se (para fins de "arquivologia política") que a "Carta" foi apresentada pelo candidato como reproduzindo o resultado de uma conferência nacional sobre o programa do PT (então em finalização) e que deveria servir de base para a elaboração da plataforma eleitoral da campanha presidencial de 2002. O teor da "Carta" – ou melhor, os pressupostos adotados para sustentar os compromissos nela firmados – não foi ainda incorporado às "tábuas da lei", isto é, ao programa ou aos textos básicos do partido, enquanto "assembléia de militantes" – já que muitos deles continuam sendo guiados pelas resoluções do último encontro nacional do partido, realizado em Olinda, em dezembro de 2001 –, nem foi ela descartada como instrumento provisório, como tendo servido apenas aos propósitos de campanha presidencial de 2002. Seu estatuto é, portanto, algo incerto no conjunto de documentos de referência do partido. Pode-se no entanto considerar que esse documento continua a representar uma das mais dramáticas reviravoltas da história de um quarto de século do mais importante partido (no presente momento político) brasileiro.
Pretendo deixar de lado, neste momento, o exame da liturgia de concepção, elaboração e anunciação da "Carta", para concentrar-me unicamente na exegese formal do seu conteúdo, tal como se pode deduzir unicamente da letra e do espírito daquele texto, no momento em que foi elaborado (aproveitando-me, aliás, para isso, de argumentos já efetuados no próprio momento em que ele foi liberado). Não pretendo, assim, utilizar-me dos benefícios do chamado hindsight, isto é, o esclarecimento retificador que nos traz a visão retrospectiva, pois isto seria falsear o princípio mesmo da análise do discurso.
Este exercício analítico – que é complementado por análise paralela da "carta-compromisso" – não enfoca, portanto, a eventual assunção das principais teses da "Carta" pelo conjunto do partido, enquanto movimento social, nem sua eventual incorporação doutrinal e programática pelos principais dirigentes do partido, enquanto governo constituído. A junção da teoria com a prática, na história recente do PT, pode ser deixada para ocasião futura, na medida em que o objetivo neste momento é o de, simplesmente, proceder a uma análise do discurso enquanto construção conceitual, isto é, como estrutura argumentativa que sustenta uma determinada concepção do mundo, aquilo que filósofos uspianos gostam de referir-se como sendo uma Weltanschauung.
Procederei do modo habitual, isto é, via compilação linear dos 36 parágrafos do documento em questão, seguindo-se então meus comentários pertinentes ao objeto de cada um dos parágrafos. Para controle dos extratos e fiabilidade da transcrição, remeto ao texto original do documento, que pode ser encontrado neste link do site de campanha do PT: http://www.lula.org.br/obrasil/carta_povo_brasil.asp. Os intertítulos que encabeçam cada parágrafo foram atribuídos pelo autor destas linhas e não figuram, obviamente, no documento original. Esclareço, por fim, que o presente exercício exegético representa uma simples modalidade de "história das idéias" – neste caso, limitada a cada um dos pontos retidos para análise –, sem pretensão alguma a operar um julgamento político entre a adequação dos conceitos emitidos há pouco mais de dois anos e a realidade da prática governativa no presente.
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