A bruxa, a serpente, e as fadas: a discriminação
feminina e o conceito de maravilhoso na Europa medieval
The Witch, the Serpent and the Fairies: the Feminine Discrimination and the Concept of "Wonderful" in the Medieval Europe
O maravilhoso é tudo aquilo que é estranho, sobrenatural, mágico ou milagroso. É, sobretudo no período medieval europeu, sécs. XII, XIII, que aparece o ressurgimento do maravilhoso, através da literatura cortesã, uma produção erudita. Podemos dizer que existe um segundo tipo de maravilhoso: - a maravilha.
Ela se encontra em dois níveis: as maravilhas que ajudam, como objetos mágicos; as maravilhas que se deve combater, geralmente monstros. No maravilhoso, assiste-se a uma desumanização do universo, sem mediador humano, passando drasticamente para um universo mineral, vegetal ou animal de monstros, fadas ou florestas. A maravilhosa Melusina, uma mulher-dragão, será a representante feminina desse contexto medieval.
PALAVRAS -CHAVE:
MARAVILHOSO, FEMININO, MEDIEVAL, MILAGRE;
ABSTRACT
The "wonderful" is all that is strange, supernatural, magic and miraculous. It is mainly in the European medieval period (12th and 13th centuries) that the "wonderful" rises again, though the courtly literature, and erudite production. We can say that there is a second type of "wonderful": the wonder. It is found in two levels: the wonders that help someone, as magic objects, and the wonders that have to be fought, as monsters in general. In the concept of "wonderful", we observe the universe dehumanization, without a human mediator, passing to a mineral, vegetal or animal universe of monsters, fairies or forests. The wonderful Melusine, a dragon - woman, will be the female representative of this medieval context.
KEY WORDS:
Wonderful, Feminine, Medieval, Miracle.
-A BRUXA, A SERPENTE, E AS FADAS: O ETHOS FEMININO E O CONCEITO DE MARAVILHOSO NO MUNDO MEDIEVAL.
O maravilhoso é, em primeiro lugar, a projeção fora do nosso universo, e imerso em sua catarse, de atitudes mentais incompatíveis com a exigência de uma descontinuidade entre o ser humano e a natureza, e que o pensamento cristão tinha por essencial na Idade Média (1). O ethos feminino pode ser analisado como catalisador de mitos, elevando um fenômeno de cultura popular ao mito e vice-versa. Nesse sentido buscado por nós, o de perceber a entronização de uma fábula no meio social, como gêneses de uma cultura - a medieval - terão que analisar as relações entre níveis de cultura e grupos sociais.
Teremos que pensar a Idade Média como uma convivência de populações, impregnadas de tradições mentais completamente diferentes. Desde o fim da Antigüidade Tardia e mesmo em pleno período medieval, observamos a emergência de populações camponesas exercendo pressões sociais importantes, sobre uma elite latina, que somada a uma crescente indiferenciação cultural das camadas culturais laicas frente ao clero, convidam uma crise. Essa cultura clerical, que monopolizava as formas eruditas de cultura, sobretudo as escritas, no grego ou latim, tinha que se ajustar às resistências culturais de origem pagã sejam elas célticas, ou romanas.Teremos dificuldade em discernir qual seria o tamanho e o peso cultural da população camponesa frente ao monopólio clerical dessa mesma produção.
Se nos introduzirmos ao problema do feminino medieval, encontraremos a mulher perante os seguintes paradoxos:
A importância do caráter diabólico da mulher - ela permanece essencial, porque continua a ser o pivô de toda a sorte de desgraças e, na atmosfera cristã medieval, surge uma nova interrogação: a infidelidade da promessa não é menos culposa pelo caráter "diabólico" da mulher. Isso procede devido a cultura da época que desloca o problema. Como se faz a propósito das mulheres "maravilhosas", a distinção entre magia boa ou má, nas fadas ou feiticeira será construída - então o cristianismo oferece a Melusina uma possibilidade de salvação ou condena-a inevitavelmente às penas do inferno. Melusina, simbólica, evoca paixão, numa mescla entre erotismo e prosperidade, de abundância ( "primeiramente Melusina lhe dá muitos filhos").
O Feminino no período medieval
Elas emergem das fontes medievais com imagens contraditórias. A mulher é descrita no pacto matrimonial, como mercadoria a ser avaliada acordo com a herança ou o dote que traziam com elas. Somado a esse lugar social, existia a forte tradição misógina herdada de São Paulo e dos escritos patrísticos, que retratavam a mulher como Eva, a suprema e obstáculo para a salvação. A respeito disso temos o testemunho de Santo Agostinho, dado por Simone de Beauvoir:
"A mulher é um animal que não é seguro nem estável; é odienta para tormento do marido, é cheia de maldade e é o princípio de todas as demandas e disputas, via e caminho de todas as iniqüidades".(2)
Logo, era melhor casar do que se consumir - mas não muito melhor - e um homem decidido a levar uma vida santa deveria ingressar em uma ordem religiosa. Santo Tomás também lhe assegurava esse lugar social discriminado:
" Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade, e a devassidão a perturbará com desordens de toda a espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que uma cloaca num palácio: suprimi a cloaca e o palácio tornar-se-á um lugar sujo e infecto".(3)
Há algumas excepcionalidades. Pelo menos no fenômeno do amor cortês, representada pela figura do trovador, faz ventilar nas cortes algo contra a sedimentação cultural da sociedade cristã. São as "Cortezia es d`amar, o fin`amor, o bom amors, ou o amor valent " - todos inventados por poetas do século XII, exprimindo uma relação completamente nova entre o homem e a mulher, o que traduz um modus operandi de importante alcance: a promoção da mulher na sociedade nobre. Existe um pequeno espaço onde a mulher habita em igualdade de condições, e o faz na poesia. Até no trovadorismo, o mundo aristocrático não tratava a mulher com qualquer espécie de ternura. A princípio desprezada pela sua incapacidade para o manejo das armas, vivendo em um ambiente guerreiro que excluía toda a feminilidade, quase que eternamente tratada em condição de menoridade. Não se atribuía qualquer função além de procriar. Mas mesmo nas canções d´amour a mulher é tida como tentação do diabo. Nesse sentido não existe romance mais famoso que a de Heloísa. A amor cortês representado por Heloísa e Abelardo, foi resumido nessas linhas francamente eclesiásticas:
" Ou est la tres sage Helloïs
Pour Qui fut chastré et puis moyne
Pierre Esbaillart a Saint Denys ?
Pour son amour ot ceste essoyne...
Mais ou sont les neiges d`antan ? ."
" Onde está a sensata Heloísa
Por quem foi castrado e depois monge
Pedro Abelardo em S. Dionísio ?
Por amor dela teve esta desgraça.
Mas onde estão as neves d`antanho " ? (4)
O próprio Abelardo escreveu uma obra intitulada História das Minhas Calamidades, onde relata seu romance com Heloísa, como algo de penoso. Trata-se de um retrato social importante, e com ele podemos penetrar na intimidade de um intelectual da Idade Média, oprimido pelos costumes.
A Melusina - nosso objeto do maravilhoso
Num primeiro momento temos que fazer uma distinção entre o sentido de estranho e de maravilhoso. Que as vezes se misturam. O estranho pode ser identificado pela reflexão, ao passo que o maravilhoso conserva sempre um resíduo sobrenatural, sendo dividido em três âmbitos:
Mirabilis, magicus e miraculosus.
Mirabilis- é o nosso maravilhoso , com origens pré -cristãs;
Magicus- no período medieval este termo deslizou para o lado do mal, para o diabólico.
Magicus é, portanto o sobrenatural maléfico, o sobrenatural satânico.
O sobrenatural propriamente cristão ou maravilhoso cristão, é o que se origina de miraculosus. Mas "milagre", o miraculum, é um elemento bastante restrito, dentro do universo maravilhoso. Assim o penso porque uma das características do maravilhoso é ser representado, certamente por seres sobrenaturais que são inúmeros. Ora, no maravilhoso cristão somente pode haver uma autoria que é precisamente Deus. Logo, é o problema e o lugar do maravilhoso numa religião monoteísta como a cristã. Tiveram que propor - os clérigos da Igreja - a regulamentação desse maravilhoso no corpus do milagre. Essa regulamentação tem que ser até certo ponto desconstruída por nós, para podermos realizar uma crítica ao milagre. Será uma linha tênue, pois faz desvanecer o maravilhoso. Temos uma tendência para racionalizar o maravilhoso, despojando-o de seu caráter essencial, que é justamente a imprevisibilidade. Tanto que se, num apelo reducionista, nos limitarmos a inferir etimologicamente as suas raízes ele significará "aparição". Então, o milagre, se depende do arbítrio divino possui regularidade. Mas se o milagre tiver que se realizar através de seus mediadores que são os santos será ainda mais previsível. Nas lendas dos santos cristãos, a partir do momento em que os santos entram em cena nós já sabemos o que ele vai fazer. Sabemos desde logo que ele multiplicará algum alimento, que fará uma ressurreição, que expulsará um demônio. Dessa forma, há um perigo de esvaziamento do maravilhoso.
Podemos acrescentar qual a função do maravilhoso. O maravilhoso é um contrapeso à banalidade e a regra do cotidiano. Os temas principais sempre são os da abundância de alimentos, a nudez, a liberdade sexual e o ócio. Um mundo ao avesso é em suma a reversão das hierarquias, que a propósito é a emergência de valores pagãos frente a ideologia cristã. O maravilhoso foi em última análise uma forma de resistência ao cristianismo. Há por isso uma recusa a figura do homem como imagem e semelhança de Deus, já que em inversão ocorre justamente o contrário. Bestas se apresentam sempre metade humana e metade fera. A recuperação cristã canalizou o maravilhoso para o milagre, mas este na verdade restringe o maravilhoso. Isto porque se refere sempre a Deus, o regulamenta e o racionaliza. A imprevisibilidade é substituída pela ortodoxia, frente ao sobrenatural. Assim, os santos, anjos e demônios são transformados em milícias cristãs, verdadeiros exércitos de Deus. Por isso existe, por exemplo, a busca pelo Graal. Podem aparecer terras e lugares naturais, como montanhas, lagos, fontes, árvores. Também não podemos esquecer de que o maravilhoso é visto por alguém, é visionário. Logo, pode ser enganador porque ver, mirar evoca o devaneio das miragens. Ora, isso nos remete ao latim mirari,advindo da mirabilia, ou seja, maravilha e a visão. Por isso, as maravilhas são visionárias em sentido lato ou metafórico e tudo aquilo que o imaginário pode representar. Os mirabilia são naturalmente coisas que o homem pode admirar com os olhos, são metáforas visíveis. Trata-se de olhar.
2.1 - A estória maravilhosa de Melusina.
"Melusina, chorando, sempre é vista por um cavalheiro em viagem em uma floresta. Ali, se banhando, nua, persuade o cavalheiro a se casar com ela, mas apenas se nunca a observasse tomando banho". Ele casa com a dama e tem muitos filhas, "Presina, Paulina e Palestina". Mas não conseguindo conter sua curiosidade, a observa por uma fechadura. Então ela o percebe e "se transforma em dragão voando pelos ares da torre do castelo".
Percebemos algumas passagens que nos garantem alguns tabus cristãos quebrados por essa mulher na figura de "melusina". Ele a vê numa floresta, no pagus, no campo, é então uma figura pagã, silvícola. Como as deusas célticas dos banhos, ela se encontra no lago. Ele "a salva" e casa com ela. Ela lhe dá muitos filhos, retratando uma forte preocupação medieval - a demografia- por causa da alta taxa de mortalidade infantil. A quebra do tabu - a de não vê-la se banhando - evidencia a natureza demoníaca de melusina. Na medida em que a água é um elemento purificador, como a água benta da missa cristã, Melusina revela sua aparência de dragão ou serpente voadora e voa pelos ares a fugir. Neste sentido, Melusina nos remete a uma outra lenda, a da " Dama do Castelo de Esperver ". Ela chegava tarde à missa e não podia assistir à consagração da hóstia. Como o marido e os criados a tinham, à força, retida por um dia na igreja, no momento das palavras da consagração, ela voou, destruindo parte da capela e desaparecendo para sempre. Essa estória nos parece a de uma pré- melusina. Mas existem outras. Em " Henno dos Dentes Grandes" há evidente semelhança. Em Aix-en Provence, o senhor do castelo Rousset. No vale de Trets, encontra perto do rio Arc uma bela dama, magnificamente vestida, que o chama pelo nome e que acaba por consentir em casar com ele, com a condição de jamais procurar vê-la nua, porque assim o faria perder toda a prosperidade material que ela lhe irá proporcionar. O Senhor Raymond promete e o casal conhece a felicidade; riqueza, força e saúde, além de muitos e belos filhos. Mas o esposo puxa a cortina um dia atrás da qual sua mulher toma banho no quarto. A bela esposa se transforma então em serpente e some na água do banho para sempre. Só as amas a ouvem de noite, quando ela volta invisível paras ver os filhos. Esta é também uma mulher-serpente. Percebemos que ocorre uma verdadeira comunhão de mitos. E há muito mais ainda. Melusina é criada na ilha de Avalon, a mesma das lendas do Rei Artur. Isso nos dá mais um ponto a favor da origem céltica da lenda. O tema da caçada ao javali, animal psicopompo e visivelmente celta, faz parte igualmente da lenda. O próprio Raimodin encontra nessa caçada, três mulheres muito belas, entre as quais a própria Melusina.
Algo que nos chama a atenção é a forme de "tríade" que configura a formação da família de Melusina e suas irmãs que formam o triunvirato "Melusina, Melior e Palestina". Sendo Melhor e Palestina outra alusão aos problemas dos infiéis ao cristianismo, sendo clara uma referência ao oriente próximo. De qualquer modo, as formas das deusas tríplices celtas e pagãs já foram exaustivamente tratadas por Frazer, Campbell, Eliade, como sendo as deusas do destino e é neste fato que começaremos divagar sobre este problema. Ora, destino é fado, ou seja, algo que não se pode evitar, um jugo. O português "fado" se origina do latim dando origem a "fatal", "fato" que significa justamente isso, "algo terrível, que não se pode evitar". Daí surge a conotação de fatal, ou seja "irrevogável". Talvez graças a isso, Melusina se transforma em serpente todos os sábados. O tempo é cíclico mas não é linear. Ritmos lentos, explosões, perdas e ressurgências, dão vida ao maravilhoso imaginário. Essa variável é a natureza do acontecimento que provoca o desaparecimento. Um fato trágico consiste quase sempre na revelação da natureza do ser mágico, a serpente. Então, Melusina surge com um papel de perturbar a paz da família feliz, provocar qualquer desgraça. Por isso mesmo, Melusina no conto é chamada com adjetivos tais como "pestilenta" e "mui falsa serpente". A Melusina também é assimilada como um demônio súcubo, fruto de cópulas com mortais, que posteriormente dão filhos excepcionais, dotados de dons físicos (beleza para as mulheres e força para os homens) , porém infelizes, retardados, ou tarados.
Estamos preocupados com essas terminologias etimológicas e filológicas para solucionar algo que quase sempre tem passado despercebido pelos estudiosos de mitos medievais. A fada é malévola, fatal, portanto o que nos leva a crer como mui plausível seria uma sutil cristianização desse substrato pagão dos mitos, transformando as fadas em senhoras idosas e conselheiras. Melusina é uma fada, só que em sua gênese, solta fumaça pela boca, é serpentária, mesmo ofídica; um dragão. A necessidade do sobrenatural permeia toda a Idade Média. Isso nos remete ao problema do totemismo. O dragão pagão é antes de tudo um símbolo de poder; símbolo da mulher que já possuiu um lugar social garantido pelo matriarcado céltico em épocas remotas. O cristianismo levou pelo menos meio milênio para impor-se (do século III ao século VIII ). Assim sendo, mesmo com intenso combate a essa mentalidade, deixou subsistir na cultura popular numerosas crenças pré-cristãs.
O nosso pensamento será o de nos remetermos a saída encontrada pela população para falar de si própria: - o mito. Ali, no fantástico no imaginário, qualquer minoria tem o direito de transitar, mesmo que em sonho, ou mesmo pleitear uma nova condição de vida. É a Melusina que representa o imaginário feminino medievo em sua mais saliente pujança. A mulher, nomeada pela Igreja Romana como filha de Eva, portanto portadora do "vírus" do demônio, é retratada em sua forma diabólica, como serpente voadora, dragão e fada dos lagos. Como resposta a essa emergência de valores pagãos, a Igreja para não se expor ao perigo do desmoronamento, ou melhor, para conseguir escapar dele, o faz à custa de numerosas adaptações. Poderíamos citar a princípio o problema do "marianismo" medieval. Ora, a devoção Mariana, ou da Virgem Maria, nasce no século XII com toda a força, já que já que as comunidades rurais européias continuam cultuando uma espécie de virgem negra, das grutas, com um simbolismo visivelmente subterrâneo e pagão, da cultura céltica.(5) A oficialização por parte do bispado através da oficialização das procissões, agora sob nova gênese, renovada pelo manto do cristianismo, nomeada de mãe de Jesus. O surgimento de numerosos "santas" em substituição à divindades pagãs, é um exemplo constante. Nesse processo cultural, - a desnaturação- os temas folclóricos mudam rapidamente de significado. Como exemplo temos a "Vita Marcelli", de Fortunato(6). Neste escrito, o dragão é pagão, símbolo de forças naturais ambivalentes, vantajosas ou prejudiciais. Pois o dragão cristão continua a coexistir com o dragão cristão, este identificado com o diabo e reduzido a um significado de maldade. Mas, surpreendentemente, no "Vita Marcelli", um santo sai vencedor do dragão, mas mantendo ainda um leitmotiv pré-cristão, ele hesita em matar ou domesticar o monstro. Percebemos um enorme fosso cultural entre o caráter ambíguo da cultura folclórica, tendo as forças da natureza como locus, e um certo racionalismo da cultura eclesiástica que prega o binarismo bem e mal.
A Melusina representa o combate cristão a esse substrato pagão céltico implícito na lenda. Essas idéias variáveis e freqüentemente contraditórias sobre as mulheres são sintomáticas da natureza complexa e multiforme de seu status e funções na sociedade medieval.
Por fim poderíamos sinalizar para o conteúdo político da lenda de Melusina. Existe a possibilidade de um "maravilhoso político". Neste espaço mítico, as famílias nobres reivindicam o mito como sua própria gênese. A família francesa Lusignan, um ramo Plantagenetas se diz "filhos da mulher-demônio' por conseguirem prestígio na Côrte de Ricardo Coração de Leão. Então a própria sociedade toma como verdadeiro o mito para se exaltar, como emblema de força, de poder, mesmo que "infernal". Desta forma, a cultura erudita, uma cultura dominante cristã ,dava respostas individuais ou coletivas ao problema da atitude a adotar em relação ao conteúdo da cultura profana pagã, utilizando uma ferramenta intelectual aperfeiçoada por autores didáticos que sistematizavam lendas populares inferindo conteúdo cristão. Os próprios escritores conhecem a versão pagã da estória já que freqüentemente são gauleses ou celtas que adotam rapidamente a cultura cristã, por ali precisamente se encontrar um dos melhores processos de ascensão social. O fenômeno que permite que essas lendas maravilhosas sobrevivam, será o de muito longa duração. As vezes, quanto mais interessados em expurgar esses costumes ancestrais, a atitude favorece a emergência dessas mesmas crendices. Por isso, Santo Agostinho distingue a urbanitas da rusticitas quanto aos aspectos sociais das mentalidades, das crenças e dos comportamentos. Por isso a sua atitude discriminatória em De cura pro mortuis gerenda, ou em De catechizandis rudibus. Em De Civitate Dei, XV, 23, sobre os Silvanos et Faunosquos vulgo incubos vocant, é o local de nascimento dos demônios sexuais da Idade Média. (7)
A evangelização exige dos clérigos um esforço de adaptação cultural: língua ou sermo rusticos, emprego de formas orais, sermões e cantos; certos tipos de cerimônia, tais como liturgia, procissões, rogações, milagres encomendados e oficializados por Gregório Magno. A obliteração de temas pagãos por fim encobre e elimina a cultura folclórica. É a desnaturação, ou fim pelo tema cristão definitivo. Assim, assiste-se na Idade Média, um bloqueio da cultura, estanque, hierarquização. Mas a população não é atingida literariamente já que não era letrada. E a mulher irromperá mais algumas vezes na Idade Média, e muitas vezes depois, muito mais poderosas do que os medievais poderiam imaginar. O milagre se consumou.
LE GOFF, J. O maravilhoso e o cristianismo no ocidente medieval. Lisboa: Edições 70, 1966.
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980 - vol. I, p. 126.
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980 - vol. I, p. 127.
JEAUNEAU, É. A Filosofia Medieval. Lisboa: Ed. 70, 1986. p. 53.
LE GOFF, J. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Ed. Estampa, 1980. P.296.
LE GOFF, J. Níveis de cultura e grupos sociais. Lisboa: Ed. Cosmos, 1966. P. 34.
LE GOFF, J. Níveis de cultura e grupos sociais. Lisboa: Ed. Cosmos, 1966. P. 32.
Fabio Liborio
fabioliborio944[arroba]hotmail.com
Fabio Liborio ROCHA, Graduado em História-Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrando em Filosofia /UGF-RJ/ CAPES. Secretário executivo da Ong. Chave da Filosofia para Educação e Cidadania-RJ.
ANO 2003