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Desenvolvimento social e qualidade de vida: algumas perspectivas de pesquisa (página 2)

Simon Schwartzman

 

3. Estratégias de desenvolvimento nacional

A consciência dos limites do enriquecimento contínuo coloca em evidencia a necessidade de uma estratégia mais qualificada de desenvolvimento nacional. Existem dois polos possíveis na busca desta estratégia. O primeiro consiste em tratar de aumentar a todo custo o estoque de riqueza no território nacional; a lógica deste raciocínio consiste em considerar que, apesar das limitações conhecidas para o crescimento da renda "per capita", um pais com as dimensões do Brasil pode acumular um produto bruto suficientemente grande para jogar um papel de primeiro nível no cenário internacional, e com isto trazer outros benefícios para o país O outro polo consiste em buscar uma presença nacional e internacional através da elevação do nível educacional, científico, e cultural da população. É possível pensar no exemplo da industrialização forçada da União Soviética na época de pré e pós-guerra como exemplo puro do primeiro polo; e nos países nórdicos como exemplo do segundo.

É bastante claro que estratégias mistas são possíveis, e devem conduzir eventualmente a uma visão bastante complexa e diferenciada do papel do país em uma comunidade de nações cada vez mais inter-dependente e presa aos limites do que Boulding denominou "a Espaçonave Terra". Esta visão deverá necessariamente se afastar do modelo do isolamento nacional e autarquia, sem cair na utopia fácil do desaparecimento dos estados nacionais e do mundo sem fronteira. Ela deverá incluir uma perspectiva revigorada das antigas noções de divisão internacional do trabalho e custos internacionais comparados. Mais do que isto, ela deverá incluir cada vez mais a noção de que a existência de um país, tanto para si quanto para os demais, não é uma simples função do poderio de seu centro político, por maior que este seja; e sim a resultante da multiplicidade de ações, opções, criações e presença de sua população em termos econômicos, culturais, científicos, etc. Como lograr este objetivo? Incrementando ao máximo a qualidade de vida da população.

4. Qualidade: carências e plenitude de vida

A maioria dos esforços de dimensionar a qualidade de vida de uma população dada tende á ser feita através de variáveis de tipo negativo, que se referem a carências: deficiências alimentares, ausência de serviços urbanos, mortalidade infantil, más condições de moradia, etc. O acompanhamento da melhoria da qualidade de vida se faz, então, pela mensuração de índices referidos a estas carências. O problema se torna mais complexo, no entanto, quando certos padrões considerados mínimos são atingidos, e não é mais possível considerar o simples aumento indefinido do nível de renda e suá distribuição como padrão adequado de melhoria, no sentido do que poder-se-ia chamar "plenitude" de vida, ou um ideal qualquer de felicidade. Neste ponto o consenso que porventura existisse sobre a natureza da qualidade de vida tende a se esfacelar, e o problema que se confronta não e muito distinto do que existe em relação à saúde mental: existe muito mais acordo quanto as suas manifestações patológicas que quanto a uma conceituação adequada de seus aspectos de sanidade. Existem várias tentativas de colocar e tentar resolver o problema, como veremos a seguir.

a) Necessidade e preferências. É certamente muito mais fácil planificar a satisfação de necessidades que o atendimento a preferências. É claro que o conceito de "necessidade" não é facilmente definível a partir de certo mínimo, já que o tempo, o costume e o meio ambiente tendem a criar necessidade antes não existentes - a "necessidade" de automóvel próprio, ou de consumo de certos produtos difundidos por mecanismos de propaganda, etc. Historicamente, no entanto, a tendência parece ter sido a de um aumento contínuo destas "necessidades" básicas, levando à noção de um crescimento contínuo do consumo de bens e serviços, e deixando pouco lugar ao exercício de opções de preferência, a não ser para a escolha entre bens de consumo alternativos e similares. A conseqüência desta situação tem sido a de identificar "plenitude" de vida com consumo máximo, e desenvolvimento da qualidade de vida com o aumento indefinido de produtos à disposição dos consumidores. Adicionalmente, propõe-se proporcionar ao consumidor a possibilidade de escolha entre vários tipos de cada produto, de tal maneira que suas preferências possam ser expressas. Este é, evidentemente, o modelo da "sociedade de consumo de massas , cujo ocaso aparentemente já se vislumbra.

b) A liberdade de escolha é, assim, um dos critérios mais comumente propostos para a aferição da qualidade de vida de uma população dada. Aqui já se entra quase no terreno da especulação filosófica, quando se identifica bem estar com liberdade de escolha. A implicação deste conceito é que não se deve tentar planificar de antemão as necessidades de consumo de uma população determinada, mas sim estabelecer um sistema pelo qual estas necessidades são continuamente aferidas e atendidas. O mecanismo ideal clássico para este sistema é o de mercado, no qual demanda e oferta se ajustam espontaneamente. Dadas as limitações hoje consensualmente admitidas da sociedade de mercado, no entanto, o problema dá satisfação das preferências individuais adquire um caráter eminentemente político, e deve ser enfrentado em termos sociais e coletivos.

c) O aspecto talvez mais importante deste afastamento do modelo de ajustes automáticos de mercado é a percepção de que o problema da qualidade de vida não é unicamente, e talvez nem mesmo prioritariamente, de consumo. E possível pensar, por exemplo, que o que satisfaz a um cidadão que escolhe comprar determinados objetos não é tanto a posse daí advinda, mas o simples exercício do ato de escolha e aquisição, que o define de certa maneira em relação ao resto dá sociedade. Existem, assim, esforços em definir por outros caminhos o conceito de "qualidade de vida", que se refira a coisas mais básicas e permita abandonar o beco sem saída do crescimento ilimitado da riqueza.

d) Necessidades psicológicas fundamentais. Uma destas formas consiste em uma ampliação tão completa quanto possível de noção de necessidade, saindo do nível meramente fisiológico e passando ao nível psicológico. Erik Allardt, pôr exemplo, propõe a existência de três tipos de valores que correspondem á necessidades humanas fundamentais, ou seja, ter, amar e ser(3). Ter se refere à satisfação das necessidades de sobrevivência física e de segurança, o que tem a ver com as funções econômica e política dá sociedade global. Amar se refere ão relacionamento entre pessoas, sua integração ao meio, e tem a ver com os sistemas sociais chamados "integrativos" (família, associações religiosas, associações voluntárias); ser, finalmente, se refere às funções de conhecimento, educação, auto-respeito e insubstituibilidade em seu meio social.

e) Outra maneira de encarar o problema tem a haver com a extensão do conceito de participação. Um ensaio clássico de T. H. Marshall, retomado posteriormente por Reinhard Bendix em sua análise das transformações sociais e políticas das sociedades ocidentais(4), coloca a questão com bastante clareza, em termos da expansão dos direitos civis, políticos e sociais através do tempo. Nesta perspectiva, a melhoria da qualidade de vida tem a ver com a expansão e consolidação destes direitos, que evoluem desde sua definição mais formal e abstrata da "igualdade perante a lei", que subsiste em condições de grandes desigualdades econômicas e políticas efetivas, ate a consolidação e efetivo uso dos direitos de associação, de educação elementar, do voto secreto, e de condições mínimas de sobrevivência e segurança econômica.

Vale a pena notar que toda esta análise da experiência européia parte essencialmente de uma expansão de direitos a partir do sistema produtivo que se inicia com o direito de associação sindical e chega a incluir o direito de organização do sistema político-partidário em termos da divisão social do trabalho. Assim, o direito à educação tende a assumir a forma de um direito à aquisição de um valor maior no mercado de trabalho; o direito ao voto tende a ser visto como uma maneira de melhorar, através do sistema político, as condições de trabalho; e assim por diante. Existem duas formas pelas quais este sistema ampliado de participação social a partir do sistema produtivo entra em crise, crise esta que se confunde com a própria crise de funcionamento dos sistemas políticos representativos contemporâneos; todas as duas têm a ver com a relativa diminuição da importância da atividade produtiva para as populações.

A primeira forma é típica das sociedades mais desenvolvidas. Uma vez satisfeitas as necessidades econômicas fundamentais, estabelecidas as garantias sociais e econômicas mínimas, e elevado o nível global de produtividade da economia, muitas outras coisas além da vida do trabalho passam a ter importância: o lazer, a educação como forma de auto-realização, os sistemas de vizinhança, a participação em sub-grupos profissionais com seus critérios próprios de atribuição de prestígio, sistemas de valores contrários á compulsividade da antiga ética protestante do hard work, tudo isto coloca em questão todo um sistema educacional, político e social baseado na ampliação progressiva dos direitos de participação no sistema produtivo. A segunda forma, típica de contextos menos desenvolvidos como o brasileiro, tem dois componentes principais. O primeiro é de tipo político-institucional, e tem a ver com o fato de que direitos sociais e formas de participação política e profissional tendem a ser estabelecidos e promovidos pelo Estado muito antes que o sistema produtivo adquira o desenvolvimento e a complexidade correspondente a níveis semelhantes de participação em contextos de desenvolvimento mais antigo. Concretamente, por exemplo, fixa-se salários mínimos, desenvolve-se sistemas previdenciários, regula-se o trabalho de menores, o sistema de férias, garantias contra desemprego, etc. independentemente e por encima dos mecanismos de mercado e sua extensão à arena política. A conseqüência deste componente é que as formas de participação e o estabelecimento de direitos de tipo social e político adquirem precedência sobre os de tipo econômico, já que este muitas vezes são definidos e implementados a partir daqueles, e não o contrário. O segundo componente tem a ver com a implantação de sistemas produtivos de alta tecnologia e concentração de capital em um contexto de grande concentração populacional e baixa industrialização. Em situações de mercado aberto, a conseqüência desta implantação de sistemas produtivos de alta tecnologia consiste freqüentemente na geração de desemprego, e a criação de dualidades sócio-econômicas estridentes. Em outras situações, no entanto, a implantação de alta tecnologia poderia simplesmente liberar mão de obra para outras atividades produtivas, ou para atividades de outra natureza.

O que isto significa é que o problema do lazer, da ocupação do tempo livre, de formas de participação social diferenciada, etc., não é um simples luxo de países super-desenvolvidos, mas uma realidade já presente em um contexto como o brasileiro e que, a não ser encarado de frente, assume os aspectos de subemprego, marginalidade, alienação, disponibilidade, etc.

5. Avaliação e Intervenção

A discussão anterior evidencia que o problema da qualidade de vida, quando vis to além dos problemas de carência, implica uma noção clara e explícita de uma política de desenvolvimento social, em que opções são explicitadas e assumidas, e as conseqüências das diversas políticas governamentais que a elas se refiram são continuamente avaliadas. Daí o chamado "movimento de indicadores sociais", um esforço já hoje internacional de desenvolver medidas que possam aferir e acompanhar a qualidade de vidas das populações. Os esforços de estabelecer estes indicadores padecem, usualmente, de duas dificuldades básicas. A primeira tem a ver com o próprio fato da dificuldade de um conceito positivo de bem estar; os indicadores sociais tendem a se limitar a mensurações conceitualmente triviais de carências de vários tipos, com poucas tentativas de ir mais adiante.

A segunda dificuldade tem a ver com a vinculação entre estes indicadores e os sistemas de planejamento econômico e social em desenvolvimento e implantação. Na maioria das vezes, as variáveis de tipo social são consideradas como de tipo "soft", difíceis de precisar e quantificar, e mais difíceis ainda de incluir de forma sistemática em sistemas bem estruturados de planejamento; por isto, tendem a permanecer como "conseqüências sociais" do desenvolvimento econômico e técnico, e avaliadas e tratadas, quando possível, "a posteriori".

A solução para o primeiro problema consiste em trabalhar com teorias sociais mais audaciosas, e em utilizar técnicas de avaliação e prospectiva mais sofisticadas. É possível, por exemplo, imaginar-se sistemas sociais de participação no qual o setor produtivo tenha uma importância relativamente minúscula, enquanto que o setor familiar, ou esportivo, adquira preponderância cada vez maior. Pesquisas em profundidade podem detectar situações emergentes deste tipo, simulações de tipo homem-máquina podem avaliar suas possibilidades de desenvolvimento, etc. É necessário, em resumo, mais idéias, mais imaginação social na criação de novas formas de participação, e a utilização de metodologias avançadas como instrumentos heurísticos para este fim.

Existem dois tipos de abordagem para o segundo problema. O primeiro consiste em sofisticar cada vez mais os modelos de tipo econômico, de forma tal a incluir as variáveis mais soft, de tipo social. O segundo consiste em perceber que nem todos os aspectos da sociedade podem ou devem ser incluídos em sistemas "fechados" e bem delimitados. É possível, na realidade, admitir a existência de um contínuo de intervenção social, que vai do extremo do laissez-faire ao extremo da planificação completa e total (ou totalitária). Estas diversas formas, ou níveis de intervenção possíveis, são as seguintes:(5)

a) Planejamento formalista. Este tipo de planejamento supõe um conhecimento perfeito de todas as variáveis relevantes para o processo desejado, assim como suas interrelações. Difícil de ser implementado em nível global, o planejamento formalista ocorre freqüentemente em sub-áreas delimitadas e de tecnologia conhecida - implantação de sistemas de comunicação, sistemas de transporte, criação de serviços urbanos, etc. O problema com este tipo de planejamento é o do que sejam "variáveis relevantes". Usualmente, variáveis exógenas ao sistema (de tipo social, comportamental, ambiental, etc.) tendem a ser desconsideradas, ou vistas apenas como "conseqüências" ou "impactos" provocados pelos sistemas em implantação, e tratadas "a posteriori".

b) Abordagem heurística de planejamento: é um sistema de planejamento "aberto", em que não é possível prever o comportamento das variáveis consideradas "endógenas" . A implantação de um sistema integrado de transportes interurbanos, por exemplo, que inclua as variáveis ambientais, de deslocamento populacional, de estabelecimento de desigualdades regionais, etc., tenderia a transformá-lo de um sistema fechado, formalístico, a um sistema aberto, heurístico. Neste caso tornar-se-ia impossível definir de antemão todas as possibilidades, e em seu lugar, uma série de princípios de decisão a serem aplicados em casos de situações emergentes devem ser estabelecidos. A abordagem heurística se combina, idealmente, com uma série de instrumentos de pesquisa prospectiva (simulações, projeções de todo tipo, "delphi", etc.), que permitam avaliar o desenvolvimento possível de algumas variáveis não completamente conhecidas e tomar as decisões pertinentes.

c) Abordagem por unidades operacionais. É uma abordagem relativamente mais simples, e que consiste em trabalhar não com sistemas de variáveis dependentes e independentes, mas com unidades (pessoas, máquinas, instituições) selecionadas cuidadosamente ou preparadas para produzir certo tipo de resultados. Por exemplo, uma abordagem ao problema da ciência e tecnologia de tipo sistêmico formal tenderia a definir as metas de desenvolvimento científico e tecnológico necessárias, os meios necessários pará atingi-las, a distribuição de recursos necessários no tempo, etc. A abordagem por unidades operacionais consistiria basicamente em criar vários núcleos de produção científica e metodológica, dotá-los de recursos suficientes e confiar a eles a tarefa de encontrar e definir uma política de desenvolvimento científico e metodológico para o país.

d) Abordagens "ad hoc", ou incrementais - são aquelas que não implicam definições prévias de modelos, princípios de decisão ou unidades operacionais, mas que partem de situações existentes e tratam de avaliar, em cada momento, o que pode ser feito para melhorar a situação a curto prazo, quer de um ponto de vista remedial, quer em função de um objetivo a longo prazo definido em termos suficientemente amplos.

A percepção destas diversas abordagens ao planejamento leva também a uma visão muito mais complexa e diferenciada das necessidades e possibilidades de estudos e pesquisas na área de indicadores sociais. Ela permite passar da visão estritamente utilitarista de variáveis sociais (em termos de força de trabalho, estoque de recursos humanos, mobilidade geográfica, fecundidade) ou de qualidade de vida em sentido de carências (habitacionais, alimentares, educacionais) e abre a perspectiva para a análise de distribuições sociais, produções governamentais, sociais e individuais, correlações e dispersões de variáveis que, ligadas ou não a modelar sistemas preditivos ou unidades operacionais específicas, permitam ir ao mesmo tempo concebendo e avaliando as possibilidades de melhoria cada vez maior da qualidade de vida e de participação da população em seu país e do país no contexto internacional das nações.

Notas:

1. Meadows, Meadows, Randers e Behrens III, The Limits of Growth (New York: Potomac Associates, 1972), 1 pp. 42-43.

2. Todos estes cálculos são aproximativos, já que o que importa são as magnitudes, e não a precisão dos números. Uma das noções centrais do modelo do Clube de Roma, na realidade, é a de que os valores iniciais não são muito importantes quando estamos tratando com processos exponenciais de crescimento. Assim, por exemplo, a utilização de terras aráveis para a produção de alimentos deverá ir aumentando até ocupar toda a terra arável disponível pouco depois do ano 2.000, de acordo com a atual tendência; a quadruplicação da produtividade agrícola conseguiria apenas adiar o ponto de saturação por 50 anos, se a área total disponível para a agricultura não diminuir, como se espera (The Limits of Growth, Quadro 10, p. 50)

3. Erik Allardt, "A Welfare Model for Selecting Indicators of National Development", trabalho apresentado no Seminário de Indicadores e Modelos de Desenvolvimento Nacional do International Social Science Council, Rio de Janeiro, Maio de 1972.

4. T. H. Marshall, Class, Citizenship and Social Development (New York: Doubleday, 1964); e R. Bendix, Nation Building and Citizenship (Berkeley: Univ. of California Press, 1964), especialmente os capítulos 3 e 4.

5. Para uma ampla exposição desta perspectiva, cf. Robert Boguslaw, The New Utopians (A study of system design and social change), Prentice-Hall, 1965.

*Preparado para o "Seminário sobre Política de Desenvolvimento Social", Fundação Getúlio Vargas, Escola Brasileira de Administração Pública, 3 a 5 de setembro de 1973. Publicado em Revista de Ciências Sociais (Fortaleza) 5, 2, 1974, pp. 101-111.

Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
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