Diferentes autores acadêmicos e autoridades políticas têm alertado para um fato marcante da história recente da economia mundial: em muitos países hoje não há um local - esta primeira instância da governabilidade do território - que não tenha sofrido algum tipo dos efeitos (positivos ou negativos) conjugados pela mutação recente do sistema produtivo e da mundialização da economia. Esta transformação exacerba a concorrência entre as empresas, entre os produtos industriais e agrícolas, mas também entre os modos de organização e de governabilidade das sociedades nacionais e dos sistemas sociais locais.
O local apresenta-se como uma configuração espacial descentralizada da territorialidade global, que integra instâncias de controle, de poder e de estratégias. A maior integração econômica e social do território revela-se na emergência de diferentes sistemas sociais locais nos países desenvolvidos e em desenvolvimento, relançando em novas bases as noções e as estratégias do desenvolvimento local. Nesse contexto, surgem várias alternativas institucionais de descentralização espacial do desenvolvimento que procuram integrar as potencialidades do território e os interesses de médio e longo prazo das comunidades ou sociedades civis localizadas. Estas novas estratégias de desenvolvimento local começam a ocupar um lugar experimental nas políticas públicas, na grande maioria ainda compensatória, embora venham se destacando nas discussões e metodologias recentes para atingir o desenvolvimento econômico sustentável nas regiões.
É nesse novo contexto que o desenvolvimento local reaparece no centro das estratégias dos estados nacionais dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, e, sobretudo, nos interesses dos atores políticos e dos grupos econômicos nos processos atuais de regionalização da economia mundial, como ilustram bem os exemplos do Nafta, da União Européia e do Mercosul. Com isto, o papel do desenvolvimento local tem sido alvo de um intenso debate entre vários profissionais nas áreas da economia, da administração, da sociologia, da política, da antropologia, da geografia e do urbanismo. Temas como a construção e formação de identidades e vocações econômicas, sócio-culturais e ambientais locais, assim como a conformação de novos atores sociais, de novas territorialidades criadas na distribuição/integração espacial do desenvolvimento, de novas estratégias de políticas locais, por exemplo, têm sido re-interpretados com novos conceitos e modelos de análise que possibilitam um novo tratamento ao mesmo tempo amplo, mas também sistemático da questão do desenvolvimento local.
Frente a este quadro, o artigo tem por objetivo abrir um debate sobre o alcance da estratégia de desenvolvimento local do governo brasileiro a partir de 1999, que objetiva a sensibilização dos atores sociais das comunidades para agirem sobre suas vocações e potencialidades, partindo das vantagens locais, através de um processo participativo, democrático e solidário que envolve os governos em todos os níveis (federal, estadual e municipal), entidades de classe, organizações não governamentais e lideranças comunitárias. Na primeira seção apresentaremos o debate das novas estratégias e principais tendências de processos de desenvolvimento local, a partir de situações apresentadas pelo cenário econômico mundial desde meados dos anos 90. Em seguida, analisaremos a pertinência institucional da construção da política pública nacional do governo brasileiro, em processos de tentativas de "desenvolvimento local integrado e sustentável", a partir da coerência das suas formas institucionais, do perfil das instituições e dos atores sociais envolvidos. Na terceira seção sintetizamos as ações propostas na elaboração do Plano de Desenvolvimento e da Agenda Local democraticamente decididos pelos Fóruns de Desenvolvimento Local de cada localidade. Na quarta e última seção concluimos fazendo uma análise geral da estratégia adotada e dos resultados parcialmente obtidos desde a implantação do Programa em 1999.
1. A nova estratégia de desenvolvimento local: Estado, mercado e sociedade civil.
De uma maneira geral, é impressionante a quantidade de semelhanças, apesar das diferenças estruturais, de perspectivas, de soluções, de propostas e de iniciativas de desenvolvimento que existem hoje em várias partes do mundo. Do ponto de vista das estratégias de desenvolvimento local, três grandes questões estão presentes no mesmo debate, tenham elas suas origens nos países desenvolvidos ou nos países em desenvolvimento.
De um lado, o desenvolvimento econômico local passou a ser incorporado por grande parte das instituições governamentais e não-governamentais como uma dinâmica de adaptação local às novas perspectivas da economia-mundo. Neste caso, trata-se de uma inserção competitiva das localidades, onde as políticas públicas procuram integrar a competitividade dos territórios na política econômica nacional, enquanto impõe uma solidariedade econômica do local como potência de economias, internas e externas. O acirramento da competição internacional/local vem reforçar a vocação econômica das regiões e localidades, que aos poucos foram se especializando progressivamente em certos setores da economia e se organizando em redes, fazendo florescer os distritos industriais e os sistemas produtivos locais. Foi assim nos Estados Unidos, na França e na Itália, ou mesmo na Espanha e na Alemanha, e, também, no Brasil.
Por outro lado, diante deste estilo de desenvolvimento estritamente econômico do local, outras dimensões extra-econômicas vem sendo reconhecidas como marcantes numa concepção mais ampla do desenvolvimento local. Neste caso, integra-se ao campo do desenvolvimento local os serviços públicos sociais e o conjunto das atividades do mundo associativo, como aparecem nos conceitos e visões de "economia social", "economia solidária" e "economia sustentável". Neste caso, predominam um conjunto de visões e práticas de inserção solidária e cidadã das localidades ao processo de mundialização, a partir dos interesses e alternativas dadas pelas próprias comunidades. A necessidade da solidariedade vai readaptando ou redefinindo as vocações locais, como um conjunto de potencialidades não apenas econômicas, mas de condições sócio-culturais e ambientais que possam garantir a manutenção dos atores econômicos presentes e a qualidade de vida das populações no desenvolvimento local.
Por último, o desenvolvimento local em si coloca a análise do território e do longo prazo segundo as configurações dos regimes de acumulação nacionais/locais. Neste caso, os territórios integram-se ao campo do desenvolvimento local como entidades sócio-econômicas construídas, de cooperação entre diferentes atores com ancoragem geográfica para engendrar os recursos particulares e as soluções inéditas. Desta forma, a análise dos recursos de um território permite não somente compreender as dinâmicas dos atores que produzem esses recursos mas também as condições de sua reprodução no longo prazo. O desenvolvimento local de longo prazo deve ser "durável" ou "sustentável", mas também "coerente" ou "integrado"; quer dizer, deve tornar compatível a rentabilidade econômica e a viabilidade ecológica e demográfica de uma perspectiva por sua vez de longo prazo.
O maior equilíbrio da interdependência dessas estratégias ao longo do tempo é que vai permitir a configuração específica do modo de regulação do sistema local, que guarda semelhanças e diferenças no tempo e no espaço.
Partindo dessas noções e estratégias de desenvolvimento, é plausível supor que inerente a todas elas subjaz um sentido particular de recomposição dos espaços e de mudança social, como sendo um resultado agregado da ação humana cooperativa, consciente e intencional no território. Nesse caso, a mudança social no teritório envolve um conjunto de tendências, os problemas decorrentes dessas e, ainda, um conjunto de atores, ou ações, e as estratégias localizadas para se lidar com perigos, riscos e ambigüidades destas tendências. A mudança social não é aquilo que nos faz vítimas de forças sobre-humanas, mas é algo que podemos fazer, realizar e promover de formas desejáveis. Podemos fazer escolhas sobre as mudanças sociais, podemos lidar com fatores objetivos e com tendências.
De um ponto de vista econômico, social e político, este novo quadro conceitual e estratégico do desenvolvimento requer ultrapassar os limites e dilemas dos mecanismos clássicos de regulação dicotômica do desenvolvimento, como o Estado e o mercado, introduzindo o papel da sociedade civil e do território através de arranjos institucionais intermediários como as comunidades e associações locais. Desta forma, Estado, mercado e sociedade civil comunitária seriam os três atores capazes de promoverem o desenvolvimento e as mudanças sociais. Todavia, qualquer forma de se apoiar, doutrinariamente, em apenas uma das três pontas do triângulo (Estado, mercado, sociedade civil comunitária) incluiria o perigo de eliminar e incapacitar as outras fontes de ação, necessárias para a criação, regulação e a integração sociais. A sociedade civil enquanto comunidade(s) pode(m) jogar um papel determinante na conciliação dos imperativos da eficácia dinâmica do crescimento, quer dizer, da produtividade, do nível de vida e de justiça social, necessários para uma repartição não demasiadamente desigual dos dividendos do crescimento.
Nesse sentido é que o novo debate do desenvolvimento procura um equilíbrio necessário e complementar entre o Estado, o mercado e a sociedade civil/comunidade. Ao Estado corresponde a capacidade humana de julgamento razoável, ao mercado corresponde o interesse, e à comunidade corresponde a solidariedade. Nesse sentido, o debate atual acentua a cooperação na estratégia de desenvolvimento, o alcance dos aspectos extra-econômicos, que objetivaria a sensibilização da comunidade ou da região para suas vocações e potencialidades, partindo das vantagens econômicas e extra-econômicas localizadas, através de um processo de governabilidade participativa, democrática e solidária que envolveria os governos (federal, estadual e municipal), as entidades de classe, as organizações não governamentais e as lideranças comunitárias. A mudança social esperada seria o resultado combinado das ambigüidades frente as novas tendências de democratização, globalização, descentralização.
É nesse sentido que alguns observadores procuram chamar a atenção para uma questão significativa, constitutiva de uma "mudança paulatina de escala", ou de uma nova recomposição dos espaços frente as novas tendências da evolução econômica internacional. Trata-se portanto, de uma mutação geopolítica maior das condições de produção, de competência e de interdependência. Se na escala superior comprovamos a criação ou o reforço dos blocos econômicos (no começo principalmente como mercados comuns, e logo evoluindo para espaços político e econômicamente unidos), na escala mais baixa notamos a busca por um reforço das unidades territoriais no nível regional e local. Assim, podemos distinguir quatro níveis pertinentes de análise: o mundial, o supranacional (zonas ou blocos econômicos), o nacional (Estados-nacionais) e o regional (local/intranacional).
Para fins deste estudo, interessa assim ressaltar que do ponto de vista da dinâmica atual do sistema econômico mundial, as regiões e as localidades, ou melhor ainda, os territórios têm se convertido em fontes de vantagens competitivas, e, as políticas públicas de desenvolvimento do território, antes a cargo do poder central, tem sido, por sua vez, delegadas às suas coletividades territoriais e locais. Assim é que o "desenvolvimento local", em teoria e na prática, vem substituir o desenvolvimento estatal e centralizador característico do período anterior. Hoje em dia parece que nos encontramos em um novo período dos programas e dos projetos regionais e locais. A relevância dos fatores locais nas dinâmicas econômicas vem criar novas perspectivas de diversificação das políticas econômicas, sociais e culturais.
Portanto, o renascimento dos meios locais e regionais como lugares da organização econômica, cultural e política oferece novas e inesperadas possibilidades para a renovação da vida em sociedade e comunitária. Enquanto uma nova visão política local está se gestando em relação com o novo contexto global, a democracia e a cidadania adquirem um novo sentido no contato da sociedade local. A criação de novas entidades locais e de novas ações democráticas estão em perspectivas. Uma nova visão de desenvolvimento baseado na sustentabilidade e na solidariedade aparece como uma ferramenta possível de edificar comunidades e sociedades locais mais equilibrada e menos desigual. No Brasil, esta análise do desenvolvimento local como possibilidade de descentralização da política estatal centralizadora deve procurar lançar as evidências de um novo processo ao mesmo tempo conceitual, prático e politicamente controverso.
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