Objetivo: Criar uma entrevista estruturada em português, sensível à cultura brasileira, para avaliar usuários de cocaína.
Método: Uma revisão da literatura foi usada para desenvolver uma "agenda oculta" que dirigiria as entrevistas exploratórias com 20 usuários de cocaína. Essas entrevistas ajudaram no processo de conceituar e operacionalizar as perguntas que seriam utilizadas na primeira versão do instrumento. Essa versão foi submetida a um estudo piloto com 40 usuários de cocaína vindos de diversos serviços de atendimento. Após cada entrevista, o questionário foi revisado até não haver modificações significativas.
Resultados: Na versão final da entrevista havia 245 questões que, em sua maioria, eram fechadas com respostas dicotômicas, numéricas ou de múltipla escolha. A entrevista continha 13 seções, sendo: (1) dados sociodemográficos, (2) uso de drogas lícitas, (3) uso de drogas ilícitas, (4) iniciação no uso da cocaína, (5) transições na via de administração, (6) padrão de consumo durante o período de uso mais intenso, (7) atividades criminais, (8) uso recente de cocaína, (9) história de injetar drogas, (10) experiência de tratamento, (11) "overdose", (12) história familiar do uso de álcool e drogas e (13) comportamentos de risco para a transmissão do vírus HIV.
Conclusão: Essa é a primeira entrevista estruturada, detalhada e sensível à cultura brasileira criada no Brasil para avaliar usuários de cocaína, e que teve um estudo piloto extenso com uma amostra grande e diversificada.
DESCRITORES: Cocaína. Crack. Abuso de substâncias. Desenho de questionário. Brasil. Entrevista estruturada.
ABSTRACT
Objective: To create a culturally-adjusted structured interview protocol in Portuguese to evaluate the drug history and HIV risk behaviors of cocaine users in Brazil.
Method: A review of the literature provided a "hidden agenda", used as a guide for exploratory interviews with 20 cocaine users. The interviews helped to conceptualize the questions and make them operational in order to be included in the first draft of the working tool. This draft was then tested with 40 cocaine users from different health clinics. The questionnaire was reviewed after every interview until no more major changes were necessary.
Results: In the final version of the interview protocol there are 245 questions. Most of them are closed questions with dichotomous or numeric responses or multiple choice. The questionnaire comprehends 13 different subjects: social and populational information, use of legal drugs, use of illegal drugs, initiation into cocaine use, transitional steps for different routes of cocaine administration, pattern of cocaine use during peak usage, criminal activity, recent use of cocaine, past of drug injecting, previous treatments, overdose episodes, family history of alcohol and drug use, and HIV risk behavior.
Conclusion: This is the first culturally-adjusted detailed structured interview protocol developed in Brazil to evaluate cocaine users which has been subjected to an extensive piloting process using a relatively large and heterogeneous sample of cocaine users.
KEYWORDS: Cocaine. Crack cocaine. Substance abuse. Questionnaire design. Structured interviews. Brazil
Na maioria dos trabalhos publicados no Brasil, em que uma avaliação de usuários de drogas foi feita, foram utilizadas entrevistas estruturadas,1-8 embora nem sempre.9,10 Portanto, muitos dos pesquisadores criaram tais entrevistas somente com o objetivo de usá-las nos seus próprios trabalhos, sem nunca as terem publicado,1,2,4,6,8 deixando os pesquisadores posteriores sem outra escolha além da criação de novos instrumentos.
O processo pelo qual esses instrumentos foram criados é muitas vezes misterioso e não obedece a critérios muito claros. Vários autores relatam que seus questionários foram "baseados" em outros instrumentos, principalmente os da Organização Mundial da Saúde,1,4,11 das Nações Unidas,1 do Instituto Nacional de Drogadição (NIDA),1 da Associação Americana de Psiquiatria,4 de outros centros estrangeiros,4 ou até "após consulta com profissionais de reconhecida experiência no campo".12 O recurso de copiar perguntas de outros instrumentos tem uma validade limitada,13 principalmente se a pesquisa for aplicada em culturas diferentes daquela em que o instrumento original foi criado. Além disso, poucos autores chegaram a testar seus instrumentos com amostras grandes, pacientes heterogêneos e usando princípios básicos de construção de questionários,14 como estudos piloto.6 A maioria dos estudos citados acima foi feita com amostras muito pequenas (por exemplo, menos de 26 pessoas)7,8,15 e com pacientes de apenas um só serviço.1-4,6,9,12,15
Outra crítica séria aos instrumentos já criados é que a maioria tem uma abrangência muito limitada, devido ao número pequeno de perguntas incluídas nos instrumentos de avaliação, que varia de 512 a 353. A maioria dos artigos nem relata quantas perguntas o instrumento tinha, mas os resultados apresentados sugerem que foram poucas.1,2,4,6,9,10
Tem sido uma tendência crescente para pesquisadores brasileiros, que trabalham na área de abuso de drogas, participarem de trabalhos multicêntricos e internacionais, nos quais o uso de instrumentos padronizados é um requisito.5,7 Embora essa tendência seja recomendável, pois possibilita a produção de resultados mais confiáveis e mais fáceis de serem comparados com outros trabalhos, a grande desvantagem é que os instrumentos geralmente são criados em outros países, com culturas bem diferentes da brasileira, sendo depois, simplesmente, traduzidos para o português.
Muitos questionários estrangeiros usados nessa área contêm perguntas com pouca relevância à realidade brasileira. Questionários norte-americanos ou europeus, por exemplo, geralmente incluem muitas perguntas sobre o uso de heroína e de metadona, drogas com baixa disponibilidade e até desconhecidas na maior parte do Brasil. Às vezes são feitas questões sobre atividades que não há conhecimento se acontecem no país, como pessoas injetando drogas em "shooting galleries" (lugares onde o usuário aluga seringas para injetar sua droga) ou o uso de "speedballs" (cocaína misturada com heroína para injetar).
Há a necessidade de criação de uma entrevista estruturada para avaliar a história de uso de drogas e os comportamentos de risco para a transmissão do vírus HIV em nosso meio, podendo ser utilizada para investigar os hábitos de usuários de drogas brasileiros e levando em consideração a cultura brasileira. O objetivo dessa pesquisa foi criar tal instrumento para ser usado com usuários de cocaína e crack, as drogas ilícitas que mais levam pacientes a buscar tratamento nos serviços de atendimento especializado no Brasil. Este trabalho relata o processo de desenvolver um instrumento, mas não é um estudo de confiabilidade nem de validade; esses aspectos do instrumento serão abordados em futuros trabalhos.
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