Julio Cortázar, a inquietante busca pela unidade do ser em "el perseguidor"

 

Trabalho final apresentado à Professora Dra. Bella Jozef no Curso de Pós - Graduação entitulado O criador e sua crítica.
De la Argentina se alejó un escritor para quien la realidad,
Mi problema sigue siendo [...] un problema metafísico, un desgarramiento continuo entre el monstruoso error de ser lo que somos como individuos y como pueblo en este siglo , y la entrevisión de un futuro [...] Desde el momento en que tomé conciencia del hecho humano esencial, esa búsqueda representa mi compromiso y mi deber.
Julio Cortázar, 1967.
O presente trabalho se propõe à análise do conto "El Perseguidor", de Julio Cortázar. Este conto pertencente à coletânea Las armas secretas, além de ter se tornado uma referência obrigatória da obra cortazariana, nos permite adentrar no mundo de múltiplos estratos da realidade do escritor argentino e constatar, sob a perspectiva do processo de criação, sua literatura de eterna busca.
A temática principal de
"El Perseguidor" gira em torno da busca obsessiva ― seja por determinadas imagens, palavras ou acordes, seja por aspectos ideolσgicos particulares, abstrusos devaneios, caracterνsticas íntimas, etc. ― que acomete o artista, antecedendo o processo criador. Frente a esta constatação, Cortázar revela a faceta obscura de um artista acometido por uma obsessão que o leva perseguir obstinadamente o ideal da arte como um modo de existência, entendida aqui como variante metafórica da busca individual que empreende pela unidade de seu próprio ser. Acreditamos que esta faceta obsessiva também representa a trajetória percorrida pelo próprio autor na busca de uma "nova forma de expressão, de novos códigos e mensagens, observável num primeiro nível, na tortuosa variação ou mesmo na dissolução dos gêneros literários [...]." Deste modo, somos enfáticos em afirmar que a atmosfera obsessiva que se instaura no universo cortazariano é elemento imprescindível para que se crie uma "literatura de invenção, marcada na essência pela busca e pela experimentação contínua de novos rumos" configurando, assim, um dos rasgos definidores de todo conjunto de sua obra: a busca por uma literatura que seja tão intensa e contraditória como a própria vida.
Julio Cortázar ― autor inventivo e intra
nsigente ― ainda que casualmente nascido em Bruxelas em 26 de agosto de 1914 nos primσrdios da Primeira Guerra Mundial , foi um escritor latinoamericano e profundamente argentino, tanto por seus temas como pela exaltação e renovação da linguagem que sua obra representa.
Filho de pais argentinos, com o fim da guerra européia em 1918, sua família regressou à Buenos Aires onde o escritor viveu toda sua infância e juventude. Aos nove anos mostra, precocemente, sua inclinação para a literatura escrevendo seu primeiro romance. Realizou estudos em Letras e Magistério, e lecionou durante algum tempo em colégios do interior argentino e na Universidad de Mendoza. Vivendo na Argentina, foi fortemente influenciado por autores da geração dos anos 40 sem, contudo, deixar de ser um escritor inventivo que, mais tarde, figuraria entre os grandes narradores hispanoamericanos do século XX. Para nós, a incontestável inventividade de Cortázar foi determinante no delineamento dos primeiros traços distintivos de sua obra: o jovem autor somou à lucidez e rigor borgianos, "a paixão de Roberto Arlt e de outra linha da tradição rio-platense, compromissada com o realismo crítico."
Em 1951 fixou definitivamente sua residência em Paris, onde deu continuidade à sua brilhante carreira literária, iniciada dois anos antes com a publicação de um poema dramático em prosa, Los Reyes. A partir daí, o universo literário vê surgir o Cortázar deslumbrante por sua fantasia e sua revelação de mundos novos que serão progressivamente enriquecidos em sua obra futura. Amante confesso do box, do jazz e também da pintura, das filosofias orientais e da política, a vocação pelas Letras foi, sem dúvida, sua maior paixão.
Cortázar, de acordo com a descrição de um de seus grandes amigos, o escritor colombiano Gabriel García Márquez, tinha "um rosto de menino perverso, com os olhos muito separados, como os de um novilho, e tão oblíquos e diáfanos que podiam ser os do diabo se não estivesse submetido ao domínio do coração." O homem desmesuradamente alto, " que sempre se reservou a um mistério" era "introspectivo, quase tímido e [...] tinha mais amigos no mundo da música e das artes plásticas que no dos escritores", morreu em Paris, em 12 de fevereiro de 1984, levando consigo suas contradições, seus erros e suas esperanças, sem jamais ter abandonado sua vontade total e definitiva de ser o que entendia que devia ser até o final. Com sua morte, Cortázar deixou órfão o mundo das Letras. Por outro lado, logrou alcançar o centro de sua esfera, encerrando assim uma formidável busca de muitos achados...
Desde suas primeiras publicações, Julio Cortázar sempre se manifestou como um inconformista, descontente da literatura que estava confinada às belas artes que configura um âmbito pré-estabelecido pelas estruturas da linguagem. Assim, escrever será para ele um instrumento de exploração global do vínculo existente entre o indivíduo e o mundo. Uma apetência, uma obsessão extra ou supraliterária que o leva a empreender uma busca que supera não só a literatura, mas também a linguagem. Escrever para Cortázar é o resultado da ousadia de pôr em jogo recursos de desvio, agressão, reversão e desbaratamento para impedir que a linguagem imponha suas regras, se interponha entre consciência e mundo, entre apreensão e expressão. Constrói uma literatura de profundidade abissal a medida que desenvolve um gênero literário considerado espeleológico, cuja escrita se encontra sobre um vulcão. "Daí seu apego a Lautréamont e Rimbaud, a prosa incontinente, limítrofe. Daí a se propor a captar descentrada, extática, angustiosamente a experiência vivida por extenso como perturbação, como desajuste entre o subjetivo e o objetivo, como deslocamento do homem no mundo." Dentro desta perspectiva, segundo Carlos Fuentes, a obra cortazariana nos permite "olhar nosso próprio rosto em um aquário [...] ou podemos assistir esse teatro londrino, ver o primeiro ato sentados em nossa poltrona, passear durante o intervalo e entrar despreocupados no segundo ato, perguntando quais serão nossas falas no diálogo."
Durante uma conversa com Omar Prego Gadea, Cortázar confessou que há muito lhe perseguia uma idéia, uma obsessão que se impunha irresistivelmente e o impelia a escrever um conto que, pela primeira vez em seu caso, fosse possível olhar o outro, experimentar o enfrentamento com outro ser humano que não fosse ele próprio e, através do descobrimento do próximo, plasmar uma nova visão de mundo. Assim, o conto "El Perseguidor" surge como fruto de uma "necessidade mediúnica", resultado de uma busca obsessiva pela construção de um texto latente no inconsciente do autor e que, até sua concretização, o deixou à mercê de suas estruturas internas.
Segundo a opinião de David Arrigucci Jr., com a qual concordamos, "El Perseguidor" é um dos mais belos contos que Cortázar escreveu e que o define em mais de uma direção. Nele, a intenção do escritor argentino nos parece muito clara. Cortázar buscava, na verdade, escrever como um jazzman quando no ato de criação: improvisando sempre, experimentando uma "convulsão" criadora constante. Tal como o fazia Charlie Parker, "que tomou como um de seus modelos de artista", cuja a admiração confessa o faz ressurgir em sua obra sob a pele do protagonista Johnny Carter.
Não muito distante de ser uma composição jazzística, ou a configuração de uma "improvisação que se espirala na perseguição do tema esquivo", "El Perseguidor" é acima de tudo uma grande obra literária que ─ conforme explicita Cortázar em seu ensaio Algunos aspectos del cuento ─ encerra elementos pertinentes à estrutura narrativa a que se propõe: sendo um gênero breve, contém em si uma vitalidade sintetizada. Ou seja, mesmo estando inserida dentro de um espaço e tempo condensados, mantém uma unidade textual e literária que possibilita a coexistência da vida real e a expressão escrita dessa mesma vida. Ainda de se tratando do gênero em que se insere, "El Perseguidor" configura uma narrativa longa. Entretanto, não pode ser considerado romance, uma vez que seu texto é sintético. Por fim, destacamos que a intenção de Cortázar ao compor sua versão escrita da vida real de um jazzman concentra-se, quase que exclusivamente, nos aspectos apreendidos do reflexo do mundo real.
Outrossim, acreditamos merecer destaque a forma como a obra analisada se constrói. Através de sua peculiar habilidade invent
iva ― habilidade esta que contribuiu sobremaneira para a criaηão de uma nova retórica do relato breve ― Cortázar é capaz de plasmar recortes significativos e intensos da vida, fundindo em perfeita aliança objetividade e imaginação. Deste modo, ao desatender a obsessão em fazer que o conto seja presidido pela racionalidade ou pela coerência lógica, o dota de uma crescente tensão e de um ritmo semelhante em liberdade ao do jazz, seu estilo musical preferido, em sua fluência. Em "El Perseguidor", Cortázar funde de forma magnífica o mundo real ao fictício diluindo as fronteiras entre esses dois universos: tudo cabe no território da realidade possível, sonhos, desejos, esperanças e angustias, provocando por sua vez uma ilusão de plenitude e de complexidade labiríntica.
O conto "El Perseguidor", dedicado In memorian a Ch. P., não deve ser concebido como mera ficção, uma vez que a alucinada parábola de um saxofonista boêmio, drogado, mas sobretudo genial, é verídica e retrata a vida do talentoso e problemático jazzman Charlie Parker, projetada de forma fantástica em um personagem considerado como o primeiro protagonista caracteristicamente cortazariano: Johnny Carter ―
que reϊne nome e sobrenome de dois saxofonistas memorαveis: Johnny Hodges e Benny Carter ―, "herdeiro" de todas as paixões de Parker : álcool, drogas, escândalos, amores fugazes...
Dotado de uma enorme capacidade intuitiva e, ao mesmo tempo, ignorante e primário, Johnny é também um indivíduo que problematiza a realidade, questiona, nega o que todos aceitam por uma fatalidade histórica e social, enfim, rompe radicalmente com a rotina. Músico arbitrário e genial, desloca com gestos e desplantes de intuitivo seu constante interlocutor, o narrador-testemunha Bruno, um crítico racional que está escrevendo um livro sobre ele.
Como afirmamos anteriormente, a temática principal do conto gira em torno do processo de criação ― para nós, símbolo da busca ontológica do homem ―, representação metafórica do desejo humano de igualar-se ao Criador. O "desejar" acercar-se à imagem do Deus-Criador implica empreender uma busca individual pelo devir, fato que nos remete ao universo metafísico cortazariano descrito por Reynaldo Damazio como um lugar onde o "impalpável, o indizível, o estranhamento sem explicação de seus personagens diante da realidade despida de mitos, de fé, de razão e de esperança ganham sentido." Dentro deste universo metafísico, Cortázar faz com que "a anormalidade nos pareça normal, ainda que apresente fraturas abissais na ordem aparente das relações."
Apesar do confronto gerado pela justaposição entre os dois universos (real e transcendente) habilmente delineados pelo autor, o processo criador ―
entendido por nσs como configuraηão da busca ontológica ―, tem mesmo lugar no mundo real e implica solidão e desencontros. De acordo a esta perspectiva, recorremos ao pensamento do escritor cubano José Lezama Lima ― figura a quem Cortázar dedicava especial admiração ― quando defende que o caráter cíclico da existência humana se deve ao fato de que "o homem é criado incessantemente e é criador incessante." A afirmativa lezamiana vem endossar nossa idéia de que o homem nada mais é que o reflexo mimético do Universo: a existência de ambos consiste em um constante criar-recriar. Entretanto, este processo que faz do homem um eterno perseguidor, é parte de uma trajetória que só é possível ser percorrida
individualmente.
Nas filosofias da existência, segundo reflexões heideggerianas observadas em "El Perseguidor", ao contrário do eu absolutamente certo acerca de si mesmo, o indivíduo mantém consigo próprio uma relação marcada principalmente pela incerteza. Isto é, antes de ter em primeiro lugar a certeza do saber absoluto acerca de seu próprio eu, o homem "só toma ciência de si a partir de um jogo que [...] se joga singularmente, em cada um e por cada um, e que só se decide a cada passo, a cada momento. Este aspecto do ser [...] significa que ninguém pode desempenhar o papel do outro ou em lugar do outro. É um jogo que se joga na primeira pessoa, sem que isso demande a construção de qualquer solipismo filosófico." Frente a esta perspectiva existencialista, cabe a nós mencionar a afirmativa de Bella Jozef de que "a condição humana de eterna busca, a tomada de consciência crítica ante o mundo, obriga o ser humano enfrentar-se consigo mesmo" e enfrentar-se nem sempre é uma empresa simples.
Na clara intenção de plasmar o processo descrito anteriormente, Cortázar se utiliza de "uma linguagem extraordinariamente criativa e flexível", além de manipular figuras ―
que nγo se apresentam como simples personagens ficcionais nem arquétipos ― as quais dá um poder verdadeiro, que é o poder do devir, de estar sendo, de não acabar. Segundo Carlos Fuentes, "esta é a própria definição de figura, em processo de metamorfose, sendo, estando, livre da conformação tradicional. Entretanto Cortázar, como nenhum outro narrador contemporâneo de língua espanhola, insufla as figuras ― fantoches compartidos com o leitor ― com uma veneraηγo incomparável, como a que requer para crescer, as flores de um jardim."
Desde o título, Cortázar nos dá pista de como o enredo se constrói através da busca alucinada empreendida pelas figuras que povoam seu conto. Como mencionamos anteriormente, a busca é uma condição humana por excelência e, em "El Perseguidor" todos os personagens, à exceção do próprio jazzman, esperam encontrar no saxofonista sua imagem refratária, a unidade do sujeito que gostariam de ser. Neste sentido, Johnny Carter ―
perseguidor de uma mϊsica inexistente, variante metafσrica de sua busca ontológica ― funcionaria como um personagem-espelho. Entretanto, o conceito do chamamos de personagem-espelho ι desfeito pelo próprio Johnny: sujeito possuidor de caráter claramente narcisista, cuja possibilidade de poder se ver refletido no outro, de alcançar um estado compartido de consciência inexiste. Talvez a explicação mais acertada para a dissolução da idéia de espelho seja a consciência que o personagem possui de que, no jogo da existência, não se pode desempenhar o papel do outro, senão o que lhe cabe. O "descobrir-se" singular, o saber ser impossível "viver" no lugar do outro é o que faz Johnny captar, apenas, a angustiante, solitária e incompreendida imagem que sua triste figura reflete. Dentro desta perspectiva existencial, o caráter narcisista de Johnny o leva experimentar "o drama do egocentrismo suspicaz, esteio da convivência moderna" que o transforma em "um eu solitário que se esforça para obter a companhia de um mundo e de outros eu; mas não encontra outro meio de alcançá-los senão criá-los dentro de si."
À medida que avançamos na leitura de "El Perseguidor" somos forçosamente levados a compartir com Johnny seu universo caótico, o que nos permite tomar consciência do que falta no livro de seu colocutor, habilmente elaborado, mas em realidade superfici
al, pois Bruno ― perfeito representante da inteligentzia burguesa ― ignora o lado mais profundo da personalidade de Johnny.
A eterna sensação de incompreensão da qual é vítima, aproxima Johnny de Oliveira, protagonista de Rayuela. Aliás, como o próprio Cortázar conta, se não tivesse escrito "El Perseguidor" teria sido incapaz de escrever Rayuela, seu mais genial romance considerado por Carlos Fuentes como "o repertório mais crítico e incitante da modernidade urbana da américa espanhola". Não foram poucas as vezes em que Cortázar se referiu a "El Perseguidor" como pequena Rayuela, numa alusão clara de que neste conto já despontavam os problemas que foram tratados com maior profundidade em seu grande romance: "o problema de um homem, Johnny em um caso e Oliveira em outro, que descobre abruptamente que uma fatalidade biológica o fez nascer em um mundo que ele não aceita, Johnny por seus motivos e Oliveira por motivos mais intelectuais, mais elaborados, mais metafísicos. Mas se parecem muito em essência." Experimentam a sensação contínua que persegue o ser humano: a de estar em um mundo diferente do que deveria ser. Por não estarem conformes com a realidade que se impõe, estão fadados a um destino trágico.
As duas epígrafes que introduzem o conto são resultantes do passeio intertextual de Cortázar pela Sagrada Escritura Cristã e pela literatura de caráter romântico do poeta e escritor galês Dylan Thomas. Estas epígrafes, ao iniciarem a obra, são absorvidas pelo discurso cortazariano; integram-se à trama à medida que simbolizam a procura do autor pela palavra que pudesse definir de forma sintética, como requer a estrutura de um conto, características significativas dos dois personagens centrais.
Seguindo a ordem de importância dada a cada personagem na narrativa, relacionamos a primeira epígrafe do conto ― Sé fiel hasta la muerte ― ao boêmio jazzman Johnny que se mantém fiel às suas verdades, às suas convicções; por mais que tal posicionamento o faça seguir na contramão da vida, assumindo uma posição à margem do mundo. Paradoxalmente, a epígrafe que sintetiza o caráter e o modo de agir de Johnny ― para nós, a personificação surreal do Criador ― dentro da narrativa não foi extraída da Gênese, "o primeiro livro do Pentateuco, de Moisés, no qual se descrevem a criação e os tempos primitivos do mundo."38 Ao contrário, a frase bíblica que relacionamos a Johnny advém do Apocalipse ― livro que estabelece uma oposição natural à Gênese –, "o último livro do Novo Testamento, atribuído a João, o Evangelista, e que contém revelações terrificantes acerca dos destinos da humanidade"34.
Assim como o Apóstolo que revela o fim dos tempos e que ―
talvez por uma incrνvel coincidκncia ― dα origem a seu nome, Johnny em sua trajetória alucinada se mostra inconformado com o mundo que o cerca, assume uma posição que desestrutura a ordem vigente das relações aparentes, instaura o caos e, deste modo, nos revela aos poucos o apocalipse de seu universo particular, vaticinando a proximidade de sua morte. Deste modo, à medida que o universo de Johnny nos é revelado, percebemos que ele estabelece uma relação autêntica com a própria morte, fato que explica a suspensão de todos os laços, de todas as ligações dele com os outros. Neste sentido, a morte também pode ser concebida como variante metafórica da solidão em que se encontra. Como observadores da trajetória sombria de Johnny Carter, entendemos o livro bíblico como sendo a metáfora ampliada de sua própria vida. Entretanto, o Apocalipse, ao mesmo tempo que profetiza o caos, também revela que este mundo em desconformidade será transformado: plasmando o verdadeiro devir, surge a esperança.
A renovação pós-apocalíptica simboliza o ciclo vital que condensa o Universo em um incessante "construir-destruir
reconstruir", "fazer-desfazer-transformar", ou ainda, "nascer-viver-morrer". Esta esfericidade harmônica, símbolo da própria vida, do querer constituir-se em uma totalidade é o que realmente Johnny busca. Por fim, o saxofonista que sempre perseguiu a dissolução de todas as suas angústias, desajustes e conflitos, encontra no final de sua busca a ausência de resposta, descobrindo no imenso vazio que se instaura, o inexorável da morte. Dentro da perspectiva do inexorável, a morte, enquanto integrante da estrutura existencial, "circunscreve, delimita a existência humana: na morte o homem está no fim."35 Neste sentido, "em seu inautêntico ser quotidiano, o homem é uma infinitude facticial para qual a finitude é essencial. Sua possibilidade última ou final, aquela que o faz retornar a finitude que ele sempre constituiu ou o completa, é a morte."36 Em "El Perseguidor" a morte, para Johnny, representa a possibilidade de uma totalidade projetada do seu eu, cuja configuração intensifica uma modalidade superior de liberdade: "livre de tudo, o homem é liberado, por esse nada, para si como próprio. A morte como essa via de acesso ao próprio torna-se um fator trancendental."37
Seguindo nossa análise, Dylan Thomas surge na narrativa como poeta preferido de Johnny Carter. É dele o verso que teria sido a última frase pronunciada pelo jazzman e que é também uma das epígrafes do conto: O make me a mask.
Para nós, o fragmento de verso do poeta galês tem sentido ambíguo na narrativa cortazariana Ou seja, serve tanto para revelar a incap
acidade de Johnny em se mascarar ― talvez por isso Johnny clame por uma mαscara, "instrumento" capaz de poupá-lo de tanto sofrimento e incompreensão ― , quanto para desmistificar de forma incisiva e mordaz o caráter pequeno-burguês do homem moderno, definindo perfeitamente o perfil do escritor racionalista, puritano e conformista, Bruno.
Outrossim, nos parece oportuno destacar que para Davi Arrigucci Jr., a utilização do verso de Dylan Thomas, poeta contemporâneo de Charlie Parker, "representa uma intuição profunda de Cortázar, um achado notável do ponto de vista da coerência literária, uma vez que capta, por debaixo das diferenças, uma analogia fundamental entre essas duas breves existências, autodestruidoras e lendárias, da arte contemporânea. A referência ao poeta galês de Death and entrances está impregnada de conotações que repercutem e enlaçam nas dimensões mais fundas e complexas do personagem."
O make me a mask. O verso de Dylan Thomas além de comprovar que a existência humana não passa de ilusão, justifica o posicionamento de Bruno ante Johnny à medida que revela que não fazemos outra coisa senão nos enganarmos e adularmos mutuamente. Tal constatação, vem endossar a idéia de que ninguém fala de nós em nossa presença como fala em nossa ausência. Deste modo, o verso nos faz crer que a união existente entre os homens assenta apenas nesse mútuo engano; e poucas amizades subsistiriam se todos soubessem o que deles dizem os amigos quando não estão presentes, mesmo quando falam com sinceridade e sem paixões. Neste sentido, as palavras do poeta galês, atestam que o homem não passa de um disfarce, mentira e hipocrisia, tanto em face de si próprio como em relação aos outros.
Em nossa leitura, o vocativo de Dylan Thomas simboliza a necessidade de Johnny e Bruno
― e porque nγo dizer, de todos nσs ― de se esconder atrαs de uma máscara, interpretando diferentes papéis de acordo com as situações que a vida apresenta. Aqui, podemos fundamentar a diferença primordial que opõe Bruno a Johnny: o jazzman é incapaz de se mascarar, enquanto Bruno sente-se seguro dentro do disfarce e da acomodação proporcionados por "uma realidade escorada na rotina e no bom senso."
Podemos explicar o comportamento de Bruno através do fato de que usando máscaras, vivenciando distintas personas, nos livramos de experimentar a marginalidade reservada aos que ousam se mostrar por inteiro. Por outro lado, a metáfora da máscara também pode ser entendida como um manifesto do tácito desejo de Bruno de querer ser o outro; de poder se ver refletido em Johnny, ou pelo menos, adquirir dele a faceta que lhe parece mais agradável: a imagem do homem genial, liberto
de qualquer convenção, dono de um saber lúcido e claro que se desenvolve na fértil escuridão de seus delírios.
Indivíduo moldado no "meio inte
lectual" ― ambiente onde comumente nos deparamos com a inveja disfarηada, o σdio surdo ao
sucesso alheio, a deslealdade, a intriga e o ressentimento ―, Bruno traz em si a pior corrupηão que é a dos supostos melhores. À medida que Bruno permite que seu desejo latente se revele, percebemos nele uma atitude de parasitismo ético, em que se procura sempre subtrair força ao outro, diminuí-lo, desdenhar dele, sem que se dê conta de que está, ao mesmo tempo, amesquinhando a si mesmo. Entretanto, o narrador-testemunha de Cortázar não possui coragem suficiente ― e necessαria! ― para seguir o mesmo trajeto que Johnny empreende em sua busca ontolσgica. Esta busca implica adentrar-se em um universo escuro e caσtico o qual teme, descer aos abismos mais profundos, para sσ entγo emergir com a verdadeira luz do conhecimento. Sem coragem, resta a Bruno tentar encontrar em seu interlocutor sua imagem refratαria.
Bruno ι a personificaηγo de todos os nossos pudores e medos. Representante de nossa covardia latente, de nosso pseudo-conformismo. Indivνduo incapaz ― como todos nσs! ― de se desvencilhar da aparκncia pacata que configura seu estilo de vida artificial. Vive ΰ
espreita, sempre observando o outro, perseguindo seus passos e, de certa forma, desejando viver sua vida. Porém, como é verdadeiramente impossível ser o outro, não se furta de tecer críticas ferozes ao estilo de vida de Johnny, reprovando, sob suas máscaras, todas as atitudes do amigo.
Para ele a morte de Johnny resulta em um misto de tristeza e alívio. Tristeza porque, além da cumplicidade da verdadeira amizade, Bruno o admirava profundamente. Alívio por ter conseguido se manter escondido sob suas máscaras, atitude que o preservou da reprovação geral e do consequentemente aniquilamento. A morte de Johnny encerra o livro biográfico escrito por Bruno e, também, põe fim a via crucis que a "perseguição" ao saxofonista o fez percorrer. Além disso, a morte do jazzman também responde sua pergunta latente: o mundo não perdoa o homem que ousa se mostrar por inteiro. É preciso que se use tantas máscaras quantas forem necessárias, se quiser sobreviver ao caos existencial.
Johnny morto, o elo que prendia Bruno a seu universo maravilhosamente caótico se rompe. Livre, Bruno retorna aos braços de sua amorosa e dedicada esposa, publica seu livro e experimenta o sucesso e o reconhecimento. Contudo, não se pode negar que o sucesso de Bruno se deve a Johnny, verdade incontestável que sempre o manterá à margem do outro.
A ironia do relato se deve ao fato de que Johnny consegue perturbar o racionalismo cômodo de Bruno, revelando assim sua
covardia pessoal ― sνmbolo da posiηão ideológica que assume ―, sem que este se sinta minimamente obrigado a comprometer o êxito de seu livro modificando a segunda edição. O intelectual Bruno, o homem de conceitos mentais e de palavras, não só se reconhece incapaz de ajustar seu estilo de vida à verdade de Johnny, como também oculta tal verdade na
biografia do jazzman para se poupar de complicações com o público.
Marcadas as diferenças entre os dois personagens centrais, não podemos deixar de dizer que, paradoxalmente, o antagonismo que se estabelece entre ambos é também o ponto de equilíbrio que os impulsiona a empreender a busca rumo ao auto-conhecimento. Johnny e Bruno personificam a união dos opostos, são como yin-yang, céu e inferno. Assim como a mandala, representam uma imagem sintética do dualismo entre diferenciação e unificação, variedade e unidade, exterioridade e interioridade, diversidade e concentração. Reúnem características que simbolizam a luta suprema entre a ordem e o anseio pela unidade do ser, possível apenas através do retorno à condensação original que sobrevive no espaço e no tempo do universo metafísico.
Deste modo constatamos que, assim como em Rayuela, Cortázar se nutre do conceito de mandala para construir sua narrativa. Em uma anotação quase à margem de seu Cuaderno de Bitácora, Cortázar sintetiza o conceito de mandala dizendo que "a teoria da mandala é a busca do centro, a necessidade de uma grande desordem no homem e no Cosmos."40 Assim, de acordo com esta perspectiva, funde o racionalismo cartesiano ocidental e o conhecimento intuitivo oriental, na tentativa de melhor descrever o mundo em desordem de Johnny e a perfeição de Bruno.
Dentro do conceito mandálico, "El Perseguidor" é a busca em espiral de seus personagens, ao centro de si próprios. Para Bruno, Johnny é uma metáfora, uma mandala a qual ele jamais chega a conhecer totalmente. Por outro lado, Johnny é um perfeito metafísico que passa a vida perseguindo o centro de si próprio. Empreende uma busca desesperada que o faz destruir tudo o que o cerca ―
seu sax, seus amigos, suas mulheres e atι sua prσpria vida ―, na intenηão de encontrar seu verdadeiro centro, sua razão de ser. Mas esta busca o faz cair em total incomunicabilidade, o faz crer que seus perigos são apenas metafísicos, perigos estes que provocam sua morte. Johnny gira em torno ao espiral da mandala enquanto persegue sua música inexistente, vive buscando a entrada e nunca a encontra.
O gregarismo é a solução para a solidão em que se encontra. Por outro lado, também o faz experimentar a grande ilusão da companhia ausente, fato que o ajuda a compreender que a solidão acompanhada é ainda pior. Johnny é um homem só na sala dos espelhos. Seu último lamento é constatar que está realmente só. Conhece o limite entre duas realidades e não tem como compartir este conhecimento, porque para isto é necessário que lhe estendam a mão que está do lado de fora, mas esta mão não existe.
Enquanto viaja no metrô de Paris, labirinto metafórico que o conduz ao universo transcental, Johnny experimenta a sensação de evadir-se do tempo. Por outro lado, sua música também possibilita a entrevisão da porta que se abre para a outra realidade. Assim, Cortázar faz de seu jazzman um "saxofonista metafísico que sem abstrações, sem cultura, sem palavras, logra aproximar-se ao yonder"35. Segundo Donald Shaw, Johnny consegue atingir este estado a custa de estar angustiosamente consciente nos momentos instáveis da realidade, do mistério de sua própria personalidade, de sua radical solidão e de sua morte iminente. A grande tragédia de Johnny é que ele sabe que está destinado a morrer antes de atingir a totalidade que busca.
Dentro do tempo e do espaço do conto, a narrativa se desenvolve incisivamente e permeia o conflito que busca estabelecer um possível equilíbrio entre ser e querer ser, ebulição e estagnação, inconformismo e conformismo.
Finalmente, "o legado de um escritor é o mundo que ele constrói com sua obra. A este mundo só nos cabe exigir que nos divirta, nos emocione, nos conceda beleza, nos faça mais imaginativos e mais inteligentes. Julio Cortázar, escritor com uma inteligência cheia de vida, escreveu textos memoráveis ―
como o que acabamos de analisar ―, outro discutνveis, outros que ainda nos reservam surpresas."42 Em "El Perseguidor" criou um texto provocador e irônico para nos contar a parábola de Johnny e, com certeza, neste conto sua intenção vai além do simples registro da procura de um saxofonista boêmio e drogado por uma música inexistente. Neste fantástico metatexto, precursor do hipertexto de Rayuela, Cortázar quis registrar acima de tudo a busca do homem pela unidade de seu ser, eternizada na parábola de um entre tantos perseguidores incansáveis do sentido de sua existência.

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Trabajo enviado por:
Josete De Brito Piantavinha
Jozinh[arroba]aol.com
Aluna do Curso de Mestrado em Letras Neolatinas : Língua Espanhola e Literaturas Hispânicas


 
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