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Por outro lado, determinadas potências econômicas, como a Alemanha, o Japão ou mesmo o Canadá e a Itália, não ostentam um poderio militar à altura de sua presença no comércio e nas finanças internacionais, ainda que elas possam ser ativas em missões de manutenção de paz da ONU. Todos elas estão no G-7 e podem ser consideradas potências médias apenas do ponto de vista de sua limitada capacidade a determinar um cenário estratégico, da mesma forma como, por exemplo, a Rússia, a China ou mesmo a Índia (mas esta se vê "dissuadida" pelo Paquistão, também nuclearizado). Em todo caso, o que identifica todas essas potências médias é o fato de possuírem "alguma" capacidade de "moldar" cenários regionais ou mesmo determinadas conjunturas internacionais, mas um poder limitado no que se refere ao recurso "último" à arma nuclear no caso de uma confrontação estratégica. Nesse particular, talvez apenas EUA, Rússia e China sejam relevantes, todos os demais sendo atores de segunda ou terceira linha.
O Brasil aparece como claramente situado num escalão modesto das potências médias, daí o freqüente apelo — ou recomendação — de muitos de seus dirigentes políticos (e conselheiros diplomáticos) a algum tipo de "relacionamento especial" com outros países médios, na suposição de que essa interação aumentará nosso poder de tentar influenciar, modificar ou moldar em nosso favor determinadas vertentes da agenda internacional (no caso do Brasil, claramente no sentido de se impulsionar um projeto de desenvolvimento econômico e tecnológico, concebido como a base de maior projeção política e militar internacional). O pressuposto é o de que o relacionamento com as grandes potências comporta situações assimétricas que não são facilmente superáveis, o que confirma nossa situação de desigualdade ou mesmo de dependência nos terrenos financeiro, tecnológico ou militar. De fato, não se afigura como factível qualquer diálogo de igual para igual com os EUA, assim como não são isentos de percepções assimétricas as relações com a Franca e a Grã-Bretanha, os outros dois membros ocidentais — e plenamente capitalistas, como o Brasil — do CSNU.
Mas, também no caso da Rússia e da China, os outros dois parceiros apontados como estratégicos nessa recomendação de "alianças privilegiadas", o fato nuclear e o pertencimento ao CSNU coloca alguns constrangimentos para um diálogo aberto a considerações de natureza estratégica ou militar. Essas duas potências não plenamente desenvolvidas encontram-se por sua vez envoltas em situações potencialmente conflitivas que têm pouco a ver com os interesses do Brasil no sistema onusiano ou mesmo no plano do diálogo político ou cultural (em matéria de direitos humanos ou de cooperação direta entre instituições governamentais, científicas e culturais). Existe, por certo, um espaço e potencial para o desenvolvimento de áreas de cooperação de caráter semi-estratégico — como no caso do programa sino-brasileiro para a construção e lançamento de satélites — ou mesmo para a expansão do comércio e de outras trocas econômicas, mas as diferenças de sistemas sócio-econômicos, culturais e sobretudo de caráter estratégico são fatores limitantes na ampliação da interface.
Considere-se, por exemplo, que não é da China, da Rússia e muito menos da Índia que virão os capitais, o know-how e os investimentos de ponta que permitirão ao Brasil avançar ainda mais na escala de sua industrialização ou no da sustentação de sua relativa fragilidade financeira (presumivelmente perdurável no futuro próximo). Esses países tampouco poderão conformar, com o Brasil, uma agenda comum para a reforma das instituições multilaterais políticas e econômicas — seja o funcionamento do CSNU, seja o do FMI ou do Banco Mundial — que atenda os interesses supostamente comuns (mas de fato diferenciados) de todos eles.
Resta a intensificação dos laços comerciais e econômicos de todo tipo com esses países mencionados, sem descartar a cooperação tecnológica e científica, mas reconheça-se, desde logo, a limitada capacidade transformadora desses vínculos no quadro de um sistema econômico já relativamente complexo como o do Brasil, inserido, por sua vez, numa rede de ligações de toda sorte com empresas e instituições dos principais países capitalistas avançados. No campo dos valores, por outro lado — direitos humanos, democracia, tratamento de minorias, identificação cultural — não é preciso ressaltar a intensidade, a diversidade e a fluidez naturais, inclusive por razões humanas dotadas de fortes raízes históricas, dos laços afetivos e materiais que nos unem a esses países.
Deixando o plano longínquo das "estepes asiáticas" pode-se apontar, no lugar de um investimento relativamente custoso nas duas potências nucleares não-ocidentais, a forte indução à intensificação dos laços de cooperação e de integração, inclusive política e social, com os países vizinhos da América do Sul, ou mesmo, por razões talvez mais sentimentais do que lógicas, com os latino-americanos em geral, como se a América Latina fosse uma realidade "manipulável", no plano operacional, para qualquer tipo de diplomacia concreta por parte do Brasil (descontando aqui a retórica política dos grupos regionais nos foros multilaterais, muito pouco "rentável" em si mesma). Ainda que essa vertente tenha sua razão de ser, sobretudo do ponto de vista da projeção econômica brasileira no plano regional, deve-se atentar, uma vez mais, para os custos e limites desse tipo de investimento regional e integracionista.
A integração não pode ser considerada como um fim em si mesmo, uma vez que ela não se destina a corrigir nenhum grande obstáculo de natureza estratégico, militar ou econômico que se interponha no bom desenvolvimento das relações de todo tipo entre os países da América do Sul. Existem limitações do ponto de vista da infra-estrutura ou derivadas do caráter "excêntrico" da maior parte de nossas economias, resultado de alguns séculos de história colonial e da dominação subseqüente de nossas relações econômicas externas por um ou outra das grandes potências capitalistas avançadas. O não desenvolvimento de nossas sociedades e economias, por outro lado, não se explica pela ausência de integração, e sim pela ausência de estruturas internas de geração endógena de tecnologia, que por sua vez é determinada pelas insuficiências de caráter educacional e no plano das instituições públicas. Um pouco mais de integração pode ampliar as vantagens de escala de determinados ramos econômicos, sobretudo industriais, mas não permite, por si só, um upgrade notável na intensidade tecnológica ou uma reforma das estruturas educacionais e de administração pública em cada um dos países.
Assim como no caso das potências nucleares não-ocidentais, não será do Paraguai, do Uruguai ou mesmo da Argentina, do Chile e do México, que virão os capitais, tecnologia e outros recursos tangíveis e intangíveis que permitirão acelerar o ritmo de desenvolvimento econômico e social do Brasil. No máximo esses países nos proverão de oportunidades adicionais para empresas brasileiras competitivas que possam não estar em condições de enfrentar a concorrência no plano mais amplo da economia internacional, mas que podem sim deslocar congêneres da própria região. Trata-se contudo de uma relação que pode não ser julgada ideal por esses países, que estariam supostamente em busca de ganhos não recíprocos, o que lhes pode ser assegurada por uma grande economia "imperial" mas não necessariamente por uma potência "média" como o Brasil. É o que se observa, precisamente, no caso das negociações da Alca, nas quais até o Brasil está procurando uma abertura comercial não recíproca por parte dos EUA e confessa temer o poder de fogo das grandes empresas americanas em áreas como serviços e compras governamentais.
A grande potência hemisférica, de seu lado, teme a "vantagem comparativa" dos baixos salários latino-americanos em todos os ramos dotados de forte componente laboral ou em recursos naturais, dados os baixos custos desses fatores nos países do Sul. Para o Brasil, paradoxalmente, a melhor relação custo-benefício estaria numa relação de intensificação "administrada" dos laços econômicos e tecnológicos com a potência do Norte, mais até do que com os seus parceiros regionais, mas os riscos percebidos são considerados muito altos numa avaliação essencialmente política — isto é, envolvendo cálculos de "soberania" — feita pela maior parte de suas lideranças políticas. Como se vê, não existe situação ideal, fora do crescimento sustentado e da plena autonomia tecnológica, o que significa, tão simplesmente, uma situação de desenvolvimento real.
Trata-se de um dos maiores absurdos econômicos já ouvidos, só justificável politicamente pelo dito "não se dá nada de graça, sem algo em troca".
Como já poderá ter ficado claro pelos argumentos desenvolvidos anteriormente, não há um cálculo simples, ou linear, das vantagens ou desvantagens das situações e processos de abertura limitada ou ampliada da economia, pela simples razão de que os sistemas econômicos — com exceção daqueles totalmente fechados — estão sempre se adaptando aos desafios recorrentes colocados pela competição local, regional ou mundial. Isto é válido, obviamente, para as economias capitalistas, nas quais a maior parte do PIB é formada na iniciativa privada — ainda que a punção fiscal exercida pelo Estado se exerça, por vezes, sobre mais de um terço do produto bruto — e nas quais os agentes econômicos dispõem de relativa liberdade para deslocar unidades produtivas, capitais, know-how e outros bens intangíveis acima e além das fronteiras políticas, podendo portanto compensar "desvantagens" introduzidas por razões não racionais do ponto de vista micro pelas autoridades econômicas nacionais.
O argumento da abertura recíproca e das vantagens equivalentes só tem sentido no mundo não-ricardiano das reservas de mercado e do mercantilismo estatal, onde se comprazem, mesmo de maneira inconfessável, a maior parte dos políticos, obrigados a defender uma determinada clientela eleitoral que por acaso se identifica a empregados e empregadores de uma determinada indústria local. Existem, obviamente, aqueles que teimam em recusar a teoria das vantagens comparativas, alegando, não sem uma certa razão aparente, que a maior parte dos países não pratica de verdade o livre-comércio e que portanto uma teoria não implementável em seus próprios termos não pode servir de base a políticas públicas e setoriais de abertura indiscriminada de mercados. Trata-se de um problema tão velho quanto a própria teoria econômica aqui exposta, cujos benefícios são disseminados por uma ampla gama de consumidores "invisíveis" ao passo que seus custos são imediatamente determinados por um certo número de desempregados muito "visíveis". Não existe uma resposta fácil ou uma solução rápida a esse tipo de problema, a não ser apontar as evidências históricas e o registro das estatísticas econômicas de ganhos de bem-estar, que no entanto podem se exercer sobre um período mais amplo do que o mandato de um eleito local ou nacional e numa circunscrição geográfica que se estende além do "curral" de votos do decisor político em questão.
O maior problema prático de se conseguir uma reciprocidade estrita ou "perfeita", como gostariam os "planejadores do futuro", deriva do caráter extremamente mutável e também maleável das conjunturas e estruturas econômicas em sociedades caracterizadas pela liberdade de iniciativa e de decisão. Como indicou um economista inovador, as pessoas respondem a incentivos, todo o resto é comentário (Steven E. Landsburg, The Armchair Economist: Economics and Everyday Life; New York: The Free Press, 1993). O século XX foi no entanto caracterizado por um crescimento constante do espaço atribuído às responsabilidades estatais em detrimento dos puros incentivos de mercado, a ponto de a liberalização do comércio internacional ter caminhado pari-passu com o aumento do campo regulatório e das intervenções tópicas na atividade econômica. Em nenhum outro terreno como a agricultura essa situação é mais visível, onde a margem de incentivos não dirigido diminui notavelmente em relação aos diversos mecanismos de sustentação e de proteção.
Tanto as situações de fechamento como as de abertura econômica respondem a dois diferentes tipos de "incentivo" feitos aos agentes econômicos como aos simples consumidores, num caso de ganhos monopólicos e de restrição de oferta, no outro de competição "desenfreada" e de ampliação das demandas, num quadro de relativa "instabilidade" das regras operacionais. Não resta dúvida que a abertura oferece um maior número de oportunidades individuais, como também os maiores incentivos para a inovação e para ganhos de produtividade. Esses fenômenos se dão, contudo, num cenário de "anarquia" parcial do jogo econômico, o que é positivo para o sistema como um todo mas traz instabilidade no plano dos itinerários individuais dos agentes econômicos. Os políticos profissionais podem ser vistos como os agentes "públicos" encarregados de reduzir o grau de instabilidade nas situações pessoais de seus constituintes, atuando para reduzir as ameaças de desemprego, de diminuição de renda e, ao contrário, para atrair empregos e novas oportunidades para sua região.
Do ativismo político em prol do preservação do "conhecido" derivam não apenas as dificuldades dos processos de liberalização comercial como igualmente todas essas demandas para "favores especiais" em apoio a tal ou qual atividade econômica, sob a forma de isenções fiscais, empréstimos facilitados, oferta gratuita de utilidades públicas em infra-estrutura e comunicações etc. Encontram-se aí os principais focos de oposição aos acordos de livre comércio, que supostamente perturbam a tranqüilidade das situações estabelecidas, como também os fatores de demanda por compensações estritas às vantagens oferecidas aos competidores estrangeiros no acesso aos mercados locais.
Como resolver o problema da demanda por reciprocidade e por concessões ditas equivalentes é um dilema que assusta economistas e "planejadores estatais" desde a disseminação dos acordos de comércio no curso da segunda revolução industrial (quando os instrumentos bilaterais tendiam a incorporar a cláusula de nação-mais-favorecida, ainda que de forma condicional e limitada) e mesmo posteriormente, no âmbito do atual sistema multilateral de sistema. No regime do GATT esse problema era encaminhado mediante as negociações paralelas e simultâneas entre pares de parceiros negociando esquemas parciais de liberalização dos produtos de seu interesse, cujos resultados eram depois consolidados e multilateralizados para o conjuntos dos participantes do exercício negociador, isto é, as partes contratantes ao GAT-1947. No quadro da atual OMC, o processo tende a seguir uma metodologia mais linear e uniforme, mas apenas quanto à derrubada de barreiras tarifárias, uma vez que um conjunto de outros campos veio agregar-se às meras discussões em torno de bens industriais da primeira fase do GATT: se trata dos novos temas como serviços, propriedade intelectual e investimentos, ademais de uma complexa teia de normas e regulamentos tratando de subsídios, salvaguardas, barreiras técnicas ao comércio (fitossanitárias ou normas industriais, por exemplo) e o espinhoso problema do antidumping, utilizado abusivamente por grande parte das economias desenvolvidas.
O cálculo da "reciprocidade" complicou-se enormemente, portanto, pois não se trata mais de negociar commodities agrícolas contra bens industriais, como era o caso tradicionalmente, mas o acesso a mercados antes protegidos para produtos alimentares ou industriais intensivos em trabalho contra a concessão de tratamento nacional em serviços transfronteiriços nas áreas financeira, de seguros, de publicidade ou telecomunicações. Como medir eventuais ganhos de bem estar se os países avançados se comprometem com permitir um acesso limitado aos seus mercados agrícolas, mas exigem em contrapartida a concessão de tratamento nacional para telecomunicações ou serviços de saúde? Qual economista "profético" poderá predizer as conseqüências futuras de uma liberalização simétrica — isto é, nas mesmas bases de desgravação tarifária gradual — para indústrias eletro-eletrônicas de um lado e calçados e roupas de outro? Que burocrata nacional pode prever com certeza que a concessão de uma proteção extensa e reforçada aos direitos de propriedade intelectual interessando aos produtores de obras audiovisuais e das indústrias químico-farmacêuticas dos países avançados — resultando portanto no pagamento ampliado de royalties e serviços técnicos — será compensada com o afluxo oportuno e enriquecedor de novos investimentos nas indústrias de alimentos e de bens duráveis?
As estimativas sobre o comportamento futuro de todos esses setores em regime de liberalização progressiva são portanto difíceis, senão impossíveis de serem feitos. Por outro lado, uma pergunta se coloca de imediato: esse cálculo deve ser feitos pelos próprios empresários interessados em investir em tal ou qual setor de sua preferência ou deve ser deixado a algum burocrata governamental? Por que considerações de balanço de pagamentos devem necessariamente ser consideradas no planejamento microeconômico dos empreendedores privados? A eficiência econômica está melhor entregue aos grupos de interesse setorial e aos planejadores públicos ou deve ser deixada aos mecanismos alocativos dos mercados?
São dilemas que não encontram respostas fáceis ou simplistas, mas que freqüentam as reuniões governamentais e os conselhos privados praticamente desde os albores do moderno sistema capitalista. Na verdade, escolhas entre políticas econômicas alternativas e duros jogos de barganhas setoriais entre os parceiros sociais são feitas todos os dias na vida de uma sociedade, apenas que não se dá a devida atenção a eles porque se considera que isso faça parte da "administração econômica normal". Apenas nos poucos momentos de negociações econômicas externas, quando concessões comerciais e outras têm de ser feitas, é que os problemas da reciprocidade e da "igualdade de concessões" passam a ser avaliados com redobrada atenção pela sociedade e pelos responsáveis governamentais.
Na medida em que nenhum político gostaria de ser acusado, pelos seus eleitores, de ter feito concessões aos "adversários" — ou seja, os concorrentes estrangeiros — sem ter obtido "algo em troca", as negociações comerciais são levadas a se arrastar num estéril debate sobre abertura recíproca que impõe um custo tão inútil quanto irrelevante ao processo de negociações e aos próprios beneficiários dos supostos esquemas de liberalização. As medidas de derrubada de barreiras (externas) e de uniformização de normas regulatórias (internas) não são pensadas em seu mérito próprio, ou seja em sua capacidade de produzir um maior volume riqueza social a partir de novos investimentos, do aumento da concorrência e da melhor eficiência alocativa, mas apenas em tão somente em função do foi oferecido em contrapartida: "só lhe dou tal abertura e acesso aos meus mercados se você me permitir tal atividade para minhas empresas em seu território".
Ainda que possa existir uma certa "lógica de senso comum" nessa postura de apenas abrir seu próprio mercado contra algum tipo de abertura equivalente ou similar por parte do "adversário", ela não se justifica a nenhum título do ponto de vista do processo produtivo ou da organização econômica da sociedade, sendo provavelmente causadora de mais distorções do que de benfeitorias. A lógica da "reciprocidade estrita" faz parte do mesmo tipo de medidas de intervenção econômica na sociedade que resultou, ao longo do século XX, na assunção pelos governos de cada vez mais responsabilidades na administração da vida em sociedade e que, em seu extremo, manifestou-se nas mais diversas modalidades de coletivismo econômico e de planejamento estatal.
No que se refere especificamente às negociações comerciais, o conceito de reciprocidade nos remete ao universo do mercantilismo, quando os soberanos regulavam o comércio exterior com o objetivo de obter vantagens absolutas nas trocas externas, ou pelo menos manter uma balança equilibrada na balança das transações. Naqueles tempos, o objetivo maior dos conselheiros econômicos dos príncipes era o entesouramento de ouro, concebido como o equivalente de riqueza e poder. Teríamos voltado a esses tempos de dirigismo explícito da vida econômica?
Contra a corrente: treze idéias fora do lugar
(IV)
8. Os capitais voláteis são responsáveis pela desestabilização de nossas contas externas e devem ser estritamente controlados.
Pura bobagem, que não resiste à menor análise empírica. A volatilidade está implícita nas políticas econômicas dos países emergentes e medidas de controle teriam como resultado fuga de capitais e ágio cambial.
Pense na seguinte situação: você acaba de casar, mas ainda mora em apartamento alugado (melhor em todo caso do que na casa dos pais do cônjuge) porque a sua poupança não lhe permite dar entrada no financiamento de um apartamento próprio, ainda que seu salário seja suficiente para cobrir as prestações do possível imóvel. Falando com o seu gerente de banco, ele lhe oferece a possibilidade de sair da poupança, que oferece total garantia mas um rendimento muito modesto, para uma aplicação de maior risco, que lhe dará praticamente o dobro da poupança em um ano e meio, o que permitirá, finalmente, a conclusão do sonhado contrato da casa própria.
O que você acharia se, no meio da aplicação em títulos do Tesouro (esta a opção oferecida pelo sue banqueiro), o governo resolve estender o prazo compulsoriamente e, não reduzir a taxa fixada do rendimento mas, impor uma taxação adicional sobre os ganhos finais, o que de toda forma reduzirá o retorno esperado? Triste, não é mesmo, mas estas são as possibilidades derivadas de aplicações atrativas mas arriscadas, geralmente feitas em mercados emergentes, de países que precisam financiar desequilíbrios fiscais ou de balanço de pagamentos e que por isso se prontificam a pagar juros relativamente elevados aos que se dispõem a emprestar-lhes dinheiro. Aquele contrato só poderá sair seis meses ou um ano adiante e, de toda forma, você precisará continuar a comprimir as suas despesas — e portanto o seu atual nível de bem-estar — pois os ganhos finais não serão tão altos quanto as previsões do seu banqueiro.
Vai brigar com o banqueiro?: ele poderá dizer que foi o governo quem mudou as regras e que, como tinha alertado, a aplicação envolvia um certo risco, comparativamente à poupança. Por isso, como ainda advertido pelo banqueiro, muitos aplicadores preferem ganhar menos e, para minimizar o risco, fazem aplicações com prazos menores mas em volumes maiores, movimentando intensamente os capitais entre diferentes produtos.
Resumindo: essa situação se chama volatilidade e o que você acaba de praticar se chama especulação. Algo similar ocorre no plano internacional, onde trilhões de dólares circulam sem cessar todos os dias, ou praticamente todos os minutos, de um lado a outro do planeta, mudando constantemente os instrumentos de aplicação, de títulos de governo a papéis de companhias privadas, de certificados sobre compras futuras de mercadorias a moedas estrangeiras, enfim, em todas as modalidades possíveis de bens fungíveis e menos fungíveis (por vezes a aplicação de curto prazo no mercado financeiro se converte em investimento direto em alguma atividade produtiva). O capital financeiro é o ativo mais "volátil" que se conheça, uma vez que sua liquidez é quase imediata e, dependendo do grau de liberdade das fronteiras nacionais, pode ser transportado de um lado a outro praticamente sem restrições, geralmente sob forma eletrônica.
Não há novidade nesse cenário, a não ser o aumento dos volumes e a aceleração dos movimentos desses capitais. Eles geralmente pertencem a fundos de investimentos ou investidores institucionais, que "manipulam" recursos de terceiros, em muitos casos resultando da concentração dos haveres individuais de milhares de pequenos investidores que não têm, na maior parte das vezes, a mínima idéia de que suas poupanças foram parar no outro canto do planeta, em alguma bolsa asiática ou título de algum governo da América Latina. O que os atrai, obviamente, é a perspectiva de um lucro mais elevado do que a simples aplicação em títulos do Tesouro americano, provavelmente o investimento mais seguro do planeta mas aquele que, igualmente, paga os rendimentos mais baixos.
Se as aplicações nos chamados mercados emergentes se revelassem seguras, esses capitais de investidores estrangeiros seriam obviamente bem menos "voláteis" do que a experiência nos indica. Mas onde exatamente se situa essa volatilidade?: no caráter desses capitais, exclusivamente, ou no ambiente econômico dos países emergentes? Por que um país se vê levado a depender desses capitais voluntários a ponto de não poder prescindir dos influxos e de não poder aplicar uma taxa desincentivadora da entrada? A resposta se situa evidentemente no comportamento conjuntural das contas públicas desses governos e na situação de suas contas externas, geralmente em desequilíbrio ou déficit crônico. E por que isso ocorre?: geralmente porque o governo gasta mais do que arrecada, se vê obrigado a adotar medidas emergenciais ou descobrir novas fontes de receitas para cobrir suas necessidades ou porque os indicadores de produtividade e o nível do câmbio são insuficientes ou não refletem um determinado ponto de equilíbrio da economia.
O que se pode concluir é que a volatilidade preexistia e continua em paralelo aos fluxos de capitais estrangeiros, mas que ela é essencialmente interna, não importada ou introduzida ao arrepio das autoridades econômicas. Estas possuem instrumentos, se assim desejarem, para "esterilizar" uma parte do capital indesejado, geralmente pela via do imposto ou do depósito não remunerado. Medidas contra a saída de capitais, por sua vez, se dirigem mais contra os próprios residentes nacionais do que contra os estrangeiros, que em princípio disporiam do direito de repatriamento, em face de restrições aplicadas à liberdade de circulação de rendimentos obtidos no mercado interno.
O mais provável, contudo, é que medidas de controle ou de monitoramento dos fluxos de capitais, internos e externos, aumentem o grau de volatilidade da economia, e portanto da tendência aos movimentos ilegais, geralmente de residentes nacionais. Uma situação de abertura, por sua vez, tende a constituir um mercado de capitais mais amplo, com taxas de juros menores, com a possibilidade de mobilização acrescida, mesmo pelo governo, quando tal se fizer necessário. As únicas justificativas para a manutenção de medidas (que se espera temporárias) de controle são aquelas derivadas de desequilíbrios agudos de balanço de pagamentos, geralmente associadas também à inconversibilidade da moeda nacional. Mas, estes também são sinais da volatilidade implícita à economia, mais do que do caráter perverso dos capitais estrangeiros.
Quanto às "receitas-milagre" para combater a volatilidade, como a famosa proposta "Tobin Tax" — aliás recusada pelo economista que lhe deu o nome —, elas são incapazes, por si só, de reduzir a volatilidade global da economia financeira mundial, servindo apenas e tão somente para aumentar o custo dos capitais que tenham de ser mobilizados ou transferidos para mercados emergentes como o do Brasil. Além de ser totalmente inócua para diminuir nossa própria volatilidade, ela atuaria contra os nossos interesses imediatos, ao aumentar o preço das emissões ou o dos aportes voluntários.
9. Os tratados devem ser sempre recíprocos e respeitadores de nossa soberania e autonomia nacional.
Retórica vazia: soberania se defende com desenvolvimento, não com boas intenções e tratados bonitos.
Atos internacionais se distinguem pelos seus aspectos formais ou segundo o objeto de que tratam. Eles podem ser perfeitamente recíprocos, nos planos bilateral ou multilateral, prevendo em seus dispositivos substantivos igualdade absoluta de direitos e obrigações aos países participantes, ou podem contar cláusulas diferenciadas, segundo o objeto em questão ou o nível de desenvolvimento dos signatários. Os tratados "desiguais" do passado eram extraídos por potências européias de indefesos estados periféricos, geralmente com objetivos comerciais e de instalação de seus mercadores nesses países. Eles foram praticamente eliminados da face da terra, e a desigualdade implícita subsiste hoje em normas e dispositivos ambíguos que permitem aos ricos e poderosos praticarem gordos subsídios aos seus produtores nacionais ao mesmo tempo em que fecham os seus mercados aos produtos concorrentes de outros países.
Esta é uma realidade do sistema econômico internacional em relação à qual rios de tinta já foram escritos, discursos incontáveis pronunciados e resoluções ingênuas aprovadas, sem que as assimetrias práticas da economia mundial fossem transformadas de modo substantivo. Na verdade, deve-se reconhecer que os tratados internacionais, mesmo os de cooperação, são muito pouco efetivos para mudar essa situação, cujos principais vetores se situam no plano propriamente nacional, não no âmbito externo. O que pretendo dizer com isto é que nenhum tratado internacional tem a virtude de realizar mudanças estruturais suscetíveis de arrancar algum país de uma situação de "subdesenvolvimento". O processo de desenvolvimento é uma tarefa totalmente interna, para a qual a cooperação internacional é totalmente subsidiária ou marginal.
De toda forma, o discurso em torno da soberania e da autonomia nacional é, por acaso, coincidente com uma situação de fragilidade ou de dependência externa, pois esse tipo de demanda sequer se colocaria em um país seguro de sua posição e interesses no plano internacional. Nenhum tratado seria suscetível de colocar esses atributos em risco se o próprio país não estivesse em busca de algum tipo de tratamento "assimétrico" que pudesse, presumidamente, compensar algumas desvantagens de fato no plano econômico. De certa forma, a tendência a preocupar-se com um aspecto não-essencial de um instrumento internacional — pois o respeito à soberania de cada parte é implícita ou explícita nesses atos — revela um comportamento algo esquizofrênico, na medida em que ele vem acompanhado de duas possíveis conseqüências práticas: ou o tratado é perfeitamente recíproco, na presunção da total igualdade entre os parceiros, ou ele terá graus variáveis de não-reciprocidade, na medida em que as partes reconhecem que não podem assumir as mesmas obrigações ao mesmo tempo.
Os tratados de liberalização comercial — pois é isso que está em jogo, quando demandas daquele tipo são formuladas — podem comportar os dois tipos de situação e serem perfeitamente viáveis nos dois casos. O processo de integração Brasil-Argentina, por exemplo, começou e se desenvolveu em bases totalmente recíprocas, sem qualquer tipo de distinção ente os dois parceiros, mesmo numa situação de evidente desigualdade estrutural entre ambos: maior importância do mercado interno brasileiro (o que significa maior vantagem para a Argentina do para o Brasil), menor dependência do comércio exterior e do intercâmbio bilateral por parte deste último, maior competitividade de sua indústria, em face de outras superioridades "qualitativas" da Argentina (melhor situação econômico-social, melhor formação técnica da população etc.). A integração com os dois sócios menores no Mercosul, Uruguai e Paraguai, já exigiu a adoção de medidas tópicas para compensar a "desigualdade bruta" em relação aos dois maiores, mas o sentido geral da reciprocidade de direitos e obrigações foi preservada no Tratado de Assunção.
O futuro, e hipotético, tratado da Alca, deveria basear-se na igualdade presumida das partes contratantes, com exceções reconhecidas desde o início para as chamadas "economias menores", que poderiam ter medidas facilitadoras do tipo das que se previu no Mercosul para os dois membros menores. As preocupações legítimas do governo brasileiro são com o impacto setorial de uma abertura indiscriminada da economia aos concorrentes estrangeiros, essencialmente americanos, na medida em que isto poderia provocar fechamento de fábricas, deslocamento de empregos e inviabilização de ramos inteiros de nossa indústria, presumivelmente menos competitivas ou dispondo de menos facilidades ambientais para sua expansão (custo do capital, transportes, marketing, etc.).
Curiosamente, o mesmo tipo de preocupação existe no Congresso e nos meios sindicais dos EUA, em relação ao que se indica ser a "concorrência desleal" dos baixos salários, das condições "precárias" de trabalho, da menor proteção social, da inexistência de regimes previdenciários ou outros fatores de "dumping social". Como resultado, temos de um lado pressões abertas e indiretas pela "elevação dos padrões laborais" e, de outro, demandas repetidas pela conformação de medidas de apoio social capazes de compensar as desigualdades efetivas existentes na prática. Em ambos os casos, diga-se de passagem, o resultado seria uma ingerência na soberania de cada parte, aqui obrigada a introduzir mudanças em sua legislação trabalhista que podem não refletir o avanço de sua estrutura econômica, ali solicitada a prestar "assistência social" a partes contratantes menos desenvolvidas.
Será muito difícil chegar a um acordo escrito capaz de abrigar de modo racional essa diversidade de demandas contraditórias e opostas, a menos de um consenso sumário sobre regras gerais e disposições ambíguas que, como ocorre em vários tratados desse tipo, "salvam a face" dos negociadores mas deixam a situação praticamente imutável no terreno da realidade. Talvez esse também seja o destino do tratado da Alca: dispositivos "cosméticos" tratando de questões sociais e laborais e a dura realidade da concorrência econômica sendo regulada mediante prazos diferenciados de abertura, com a preservação paralela (em alguns casos "clandestina") de normas internas restritivas da abertura total.
A realidade da abertura, geralmente, se encarrega de "corrigir" gradualmente os diferenciais de produtividade, com ajustes setoriais provocando situações de maior ou menor impacto social, que cabe aos governos nacionais compensar mediante medidas tópicas de reconversão de atividades ou apoio temporário à força de trabalho deslocada. A letra dos tratados, porém, tem um poder muito limitado para mudar essa realidade, com reciprocidade ou sem ela. Melhor, assim, dedicar maiores esforços aos processos internos de mudança estrutural do sistema produtivo, no sentido de torná-lo moderno, ágil e mais adaptado às exigências da economia internacional, do que depender de instrumentos jurídicos dotados de limitada capacidade transformadora. A soberania não pode ser um mero slogan retórico, mas uma realidade embasada na solidez do sistema econômico nacional.
Publicado na Revista Virtual Espaço Acadêmico
http://www.espacoacademico.com.br
Paulo Roberto de Almeida (*)
paulo_almeida[arroba]terra.com.br
(*) Doutor em Ciências Sociais e autor de vários livros na área diplomática e das relaçoes internacionais
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