Carlos Affonso Pereira De Souza (*)
O texto a seguir é a transcrição de palestra proferida durante o seminário Tangolomango1, no painel "Software Livre: Novos Rumos para a Cultura e para a Comunicação", realizado no dia 09.11.2005.
Boa tarde. É um prazer compor a mesa com Djalma Valois, Caio Mariano e BNnegão.
É um prazer, mas, ao mesmo tempo, é também um desafio. Isso porque a palestra do Caio ofereceu um panorama dos direitos autorais no cenário cultural, o Djalma falará a todos sobre as implicações do software livre para difusão do conhecimento, e o Bnegão, por sua vez, é exemplo vivo do poder da Internet para difundir cultura.
Coube a mim tratar dos problemas, das restrições que o direito autoral pode representar para a difusão da manifestação cultural. Coube a mim abordar temas que mostram como a legislação, quando aplicada com todo o seu rigor, ao invés de incentivar a produção autoral, eventualmente termina por fazer justamente o oposto.
O objetivo dessa exposição é identificar os principais pontos da legislação autoral e como ela gera efeitos na disponibilização de obras.
Começamos com uma pergunta: Para que serve o direito autoral? Qual é o fundamento último que torna o debate sobre propriedade intelectual tão relevante para todos nós?
O direito autoral é o campo do estudo do Direito voltado para as criações intelectuais, criações do espírito humano, com o viés essencialmente estético/cultural.
E para que o Direito procurou regulamentar a criação dessas obras? O Direito tutela a criação intelectual do autor porque esse mesmo autor necessita de estímulo e proteção. Essas duas palavras andam juntas: na medida em que o autor se sente protegido com relação ao regime aplicável à sua criação, ele é estimulado, incentivado a continuar a criar. O estímulo à criação contínua é o fundamento do direito autoral. Esse estímulo surge de todo um sistema de proteção previsto na lei.
E como é que se dá essa proteção? Quando falamos em proteção, a primeira imagem que vem à tona é a idéia de remuneração, isto é, o autor recebe da lei a possibilidade de cobrar pela maior parte de utilizações que venham a ser empregadas sobre sua obra. Mas falar em proteção é algo um pouco mais abrangente do que simplesmente a possibilidade do autor receber pela execução de sua música, por exemplo.
A forma pela qual o Direito protege o autor é através da concessão de uma exclusividade sobre as formas de utilização da obra. O direito autoral é a forma pela qual o Direito encontrou para incentivar os autores a continuar a criar, e faz isso através da concessão de uma exclusividade que é dada a esse autor.
Se vivêssemos num estado de natureza, no qual qualquer pessoa pudesse reclamar a paternidade de toda e qualquer obra, qual seria o incentivo que a pessoa teria para criar? Esse é o raciocínio feito pelo sistema de proteção ao autor. Ao mesmo tempo é garantido um prazo no qual apenas o autor decide como explorar a sua obra. Ele possui exclusividade para decidir se divulga a sua obra, se a deixa na gaveta, se lê em voz alta no meio da praça, ou se leva para uma editora ou gravadora, ou mesmo se a disponibiliza gratuitamente para download na Internet.
E como é que o autor faz tudo isso? Através da exclusividade que lhe é concedida. E de onde provém essa exclusividade? Da lei de direitos autorais, Lei nº 9.610/98, mais especificamente dos arts 28 e 29.
O artigo 28 traz a definição exata dessa exclusividade sobre a qual estamos falando. Diz o artigo: "Cabe ao autor o direito exclusivo de usar, fruir e dispor da obra literária, artística e cientifica."
E o que quer dizer essa exclusividade? O que, na prática, significa essa exclusividade? O art. 29, logo a seguir, traz as respostas. Segundo o artigo 29: "Depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como: a reprodução, parcial ou integral; a edição; a adaptação, o arranjo musical e quaisquer transformações; a tradução; a inclusão em fonograma ou produção audiovisual, a distribuição; (...) além de quaisquer modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas."
Não é preciso maiores esforços para compreender que o direito autoral foi construído com base em uma concepção de proteção através da exclusão. O autor é protegido no sentido de que ninguém pode utilizar uma obra autoral sem a sua autorização prévia
(porque tem ele exclusividade sobre o uso da obra). O procedimento de obtenção da autorização é o cerne do nosso problema. Se a maior parte das utilizações de uma obra passam pela necessidade de se pedir autorização, como será que o interessado em se valer da obra obtém autorização? Para quem deve ligar? E pelo lado do autor, como será que ele deve conceder essa autorização?
A questão que é colocada em debate hoje em dia não é a supressão do sistema do direito autoral, mas o repensar sobre a existência de outras formas de incentivar autores a criar, sem que esse estímulo gere um afastamento da obra com relação às pessoas que gostariam de utilizá-la para os fins mais diversos.
Proteger através da exclusão parece ter sido a marca dos direitos de propriedade erigidos originalmente no Direito Romano, e reforçados pelas concepções individualistas da Revolução Francesa. Mas será que essa forma de proteção está adequada para os tempos do avanço tecnológico? Será que a Internet não tem um papel de transformação nessa dinâmica de exclusividade e autorização para acesso a obras culturais?
Vamos retornar à lei de direitos autorais. Nós vimos que os artigos 28 e 29 estabelecem que é necessária autorização para uma série de atividades. Mas será que não existem situações em que você pode utilizar uma obra sem pedir autorização?
A própria lei de direitos autorais cuida de criar uma zona de liberdade, na qual a utilização de obras é permitida, não pelo autor, mas diretamente pela lei. São as chamadas exceções e limitações aos direitos autorais.
Mas ainda nos artigos dedicados às limitações e exceções, a nossa lei de direitos autorais em vigor mostra uma faceta pouco permissiva. Tome-se o exemplo do art. 46, II, da lei. A sua redação é a seguinte: "Não constitui ofensa aos direitos autorais: a reprodução, em um só exemplar, de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro."
Novamente o balanceamento entre proteção autoral e acesso à obra intelectual não se mostra muito equilibrado. Mesmo quando se trata de um artigo que deveria ser permissivo. O conceito de pequenos trechos é bastante controvertido. A cópia, para se adequar à letra da lei, deve ser feita pelo próprio copista. O que isso quer dizer? Que terceiros não podem tirar uma cópia para você?
Podemos concluir então que a legislação sobre direito autoral foi criada com a intenção de proteger e incentivar o autor. Contudo, os reflexos práticos da legislação não parecem não ter surtido efeito para o atendimento de um outro interesse existente por trás de todo o debate sobre propriedade intelectual, isto é, o debate sobre o acesso à informação e à cultura.
O direito autoral, como visto, deve atender aos interesses do autor, estimulando e remunerando o autor por sua criação, mas também deve construir os meios através dos quais informações e cultura são disponibilizadas a todos.
Todavia, o debate sobre direito autoral contemporâneo parece concentrar todas as atenções para o chamado "combate à pirataria". O que é pirataria? Esse termo não foi originado de estudos jurídicos sobre a propriedade intelectual. Não existe nas enciclopédias jurídicas clássicas o termo "pirataria". Trata-se de uma construção moderna, muito utilizada em notícias e artigos de jornal, para fazer referência, de forma genérica, à infração ao direito de propriedade intelectual.
O debate sobre a pirataria parece eclipsar o debate sobre os fundamentos do direito autoral. Geralmente acompanhadas de números que mostram o quanto o Brasil perde com a escalada da pirataria, as diversas reportagens sobre o tema passam a imagem de que, atrelada ao fenômeno da informalidade, a venda de produtos "pirateados" nos grandes centros urbanos do país representa um dos maiores males à economia nacional.
Não estamos de forma alguma negando os impactos perniciosos da pirataria. O que deve ser enfocado, todavia, é o que é e o que não é pirataria. Ou melhor dizendo, a falta de esclarecimento sobre o tema tem levado os ouvintes, os telespectadores, os leitores, e todas as pessoas que tomam contato com o assunto através dessa abordagem, a privilegiar uma visão específica do direito de propriedade intelectual.
E essa visão é justamente aquela que reúne as concepções sobre proteção e infração abordadas no início da nossa exposição. Temos aqui o risco de ficarmos à mercê de dois extremos: ou a infração epidêmica, ou a proteção ultra-restritiva. Nenhum dos dois cenários permite o crescimento de um debate sobre os fundamentos do direito autoral e o alcance de finalidades como o acesso ao conhecimento e à informação.
Podemos dizer que o cenário atual, de reforço das concepções restritivas sobre o direito autoral, conforme visto na legislação em vigor, gera dois tipos de reações: reações negativas, e reações que chamaremos de criativas.
A primeira reação negativa é a própria "pirataria" em si, ou seja, na medida em que as leis são tornadas mais severas, e que as zonas de liberdade para utilização de obras autorais são diminuídas, existe o movimento de muitos agentes no sentido de simplesmente não cumprir a legislação e praticar atividades ilícitas. Essa é a reação mais nociva e mais imediata.
Existe porém uma outra reação negativa, e essa reação, por seu turno, não é desencadeada por grupos organizados de "piratas" ou pelos camelôs que vendem cds e dvds falsificados nas ruas. A segunda reação negativa é o eventual radicalismo empregado na criação, interpretação e aplicação da legislação autoral.
Essa segunda reação negativa passa pode ser ilustrada com alguns exemplos. Vamos ficar com apenas dois: (i) a patente de programas de computador; e (ii) o crescimento da responsabilização civil por infração à propriedade intelectual na Internet.
A patente de software é uma questão que nos leva à reflexão pelo seguinte motivo: no Brasil, o programa de computador é protegido pela legislação de direito autoral. Existe um movimento mundial no sentido de se proteger o software não pelas regras aplicáveis às obras literárias e artísticas, mas sim pelo regime típico das invenções, ou seja, pelo regime de patentes.
Qual é então o problema em se proteger o software através de patente? Vou procurar tratar desse assunto sem falar diretamente sobre programa de computador, para facilitar o nosso entendimento.
A proteção da propriedade intelectual pode ser dividida em dois grandes grupos: o direito autoral e a propriedade industrial. No primeiro campo estão as obras literárias, artísticas ou científicas, como livros, filmes, músicas (e softwares). No segundo campo estão as obras do espírito humano voltadas para uma finalidade prática específica (com uma utilidade própria). Nesse campo estão as invenções, as marcas, o desenho industrial e etc. Patente é forma pela qual protegemos as invenções.
E qual a diferença entre enquadrar o software como direito autoral ou como patente (leia-se propriedade industrial)?
As diferenças são basicamente duas: (i) a forma de registro; e (ii) a extensão da proteção conferida. Sobre o registro, é importante mencionar que, no regime do direito autoral, as obras tornam-se detidas pelos seus autores no momento de sua criação. Isto é, o registro é facultativo. No momento em que Fernando Pessoa viu nascer o sol, depois de passar a noite em claro escrevendo, num estirão só, o poema "A Tabacaria", aquela obra
já era dele. Na seara da propriedade industrial, por sua vez, o registro é obrigatório para que constituir o regime de propriedade. É claro que o registro, mesmo que facultativo, é sempre recomendado para obras autorais, mas esse é um assunto para outra ocasião.
A segunda diferença entre os dois regimes reside na extensão da proteção conferida. Aqui, importa descobrir se o Direito protege apenas a forma de expressão, ou se a tutela conferida abrange a idéia e a sua conseqüente aplicação prática.
No campo do direito autoral, a proteção conferida pela legislação apenas abrange a forma de expressão. Idéias não são objeto de proteção autoral, mas tão somente a sua concretização, ou seja, a sua forma de expressão.
Tome-se o exemplo dos filmes de faroeste, por exemplo. Boa parte desses filmes inclui ataque a diligências em trânsito pelas paisagens áridas do oeste norte-americano, confronto com índios e aqueles saloons típicos do velho oeste. Nós poderíamos passar o dia elencando situações, locações e figurinos que constituem o cerne de determinados tipos de filmes. O que isso quer dizer?
Isso significa que ninguém é o dono do gênero faroeste, com diligências, índios e saloons. Ninguém é o titular da idéia, mas apenas do filme realizado em si. O que se protege é cada um dos filmes que são produzidos dentro desse gênero, mas não a idéia, a concepção de um filme com diligências, índios e saloons. Se assim o fosse, a primeira pessoa que fizesse um filme que obedecesse a esses requisitos seria a proprietária do gênero.
O mesmo se dá com os livros, por exemplo. O que se protege é o livro em si, e não a idéia sobre o enredo de um livro. O que se protege, repetindo, é a forma de manifestação da imaginação criadora, e não a idéia em si.
Na proteção concedida pelo regime de patentes, por outro lado, a idéia e a sua aplicação prática são detidas pelo titular da patente. Vale mencionar que, na seara da propriedade industrial, as idéias em si também não são protegidas, mas sim a idéia e sua conseqüente aplicação prática.
Vamos passar essa situação agora para a produção de softwares. Na medida em que se protege o software pelo regime do direito autoral, o que se protege é a apenas a sua forma de expressão, ou seja, a sua programação e, eventualmente, a interface gráfica criada pela programação (look and feel). Não se protege a idéia sobre um software.
Caso o software em si fosse objeto de proteção pela propriedade industrial, teríamos a possibilidade de criar situações em que uma determina empresa, ou pessoa, deteria o monopólio sobre uma idéia e a sua programação aplicada. Imagine o efeito na criatividade alheia que seria gerado pelo fato de uma empresa deter a patente, por exemplo, do programa de editor de textos para computadores. Esse é o risco que corremos com a patente de softwares.
Através de linhas de programação distintas, pode-se chegar a resultados semelhantes. Ao se proteger o código de um programa, o que se protege é apenas a sua forma de expressão (regime de direito autoral). Na medida em que a tutela se expande para alcançar outros elementos que não apenas a expressão, estaríamos obstaculizando uma série de produções em desenvolvimento, que agora teriam que pedir autorização para o detentor da patente registrada. O risco aqui é evidente: a criação de verdadeiros monopólios de idéias, de uma privatização do conhecimento no campo da informática.
O segundo exemplo de radicalismo na elaboração, interpretação e aplicação da lei pode ser notado no crescimento da responsabilização civil por infração à propriedade intelectual na Internet. Nesse ponto é importante mencionar que o combate às infrações cometidas contra o direito de propriedade intelectual, de forma geral, deve ser estimulado, uma vez que o sancionamento de práticas ilícitas é um dos modos encontrados pelo Direito para alcançar os seus objetivos. Mas, sem dúvida, não é esse o único meio para que o ordenamento jurídico atinja os seus fins colimados.
O problema da responsabilidade civil na Internet é uma questão qualitativamente e quantitativamente distinta dos ilícitos praticados fora do ambiente da rede mundial de computadores. Qualitativamente porque a maior parte das infrações à propriedade intelectual desencadeadas através da Internet só é possível mediante a utilização de modernos softwares de compartilhamento de arquivos digitais, sejam eles músicas, filmes ou jogos. O componente de inovação tecnológica anda lado-a-lado com as condutas que se busca sancionar nessa seara.
Por outro lado, as infrações à propriedade intelectual na Internet são quantitativamente distintas por uma razão bastante clara: as condutas cuja prática se busca reprimir ocorrem aos borbotões. Para ser mais exato, estima-se que 2,5 milhões de brasileiros trocam arquivos de música e filmes de forma ilícita (ou seja, não autorizada pelos seus autores) na Internet.
Adicionalmente, vale lembrar que os infratores aqui, que as pessoas que causam danos a autores, gravadoras e produtoras em geral são pessoas que encontramos a cada dia. Não são, repito, os grupos organizados e os camelôs, mas sim os médicos, engenheiros, estudantes, advogados, administradores, economistas e mesmo artistas que praticam essas condutas sancionáveis pelo aspecto criminal (art. 184 do Código Penal) e pelo aspecto civil (arts 102 e seguintes da Lei nº 9.610/98).
Como a responsabilidade civil pode deixar de ser um instrumento de incentivo aos autores e reforço da proteção, para se tornar um meio de impedir ou dificultar o acesso ao conhecimento e à informação pode ser obtido a partir de uma análise do caso Napster, ocorrido nos Estados Unidos há cerca de quatro anos atrás.
O Napster era um programa que permitia a troca de arquivos pelos seus usuários, bastando apenas que as pessoas se cadastrassem em seu website. O servidor central do Naspter foi lacrado por ordem judicial depois de processo aberto por causa das infrações à propriedade intelectual que os seus usuários cometiam.
O professor da faculdade de Direito de Stanford, Lawrence Lessig, preparou um parecer para o caso Napster que me parece bastante oportuno para o debate que estamos tendo aqui sobre os fundamentos do direito autoral e o seu relacionamento com as novas tecnologias.
Em seu parecer, Lawrence Lessig afirma que para se verificar se uma decisão judicial que aborda o tema das novas tecnologias atende às demandas do progresso tecnológico e o seu impacto no universo jurídico, deve-se analisar três pontos:
(i) a possibilidade de uso lícito da tecnologia;
(ii) a existência de meios menos gravosos para lidar com a nova tecnologia do que simplesmente bani-la; e
(iii) a eficácia da medida pleiteada.
Trazendo cada um dos critérios acima para o caso Napster especificamente, pode-se verificar que o programa de troca de arquivos, embora fosse utilizado na maior parte das vezes para a troca de arquivos de música sem autorização de seus autores, também era utilizado para disponibilizar músicas de bandas ou artistas que voluntariamente as inseriam na grande rede de trocas criadas p4elo Napster.
O Napster demonstrou, pela primeira vez, em larga escala, o quanto a Internet poderia democratizar o acesso à cultura. Boa parte das músicas imaginadas pelos seus usuários, e cuja obtenção através de cds era muito dificultosa, ou porque o cd já estava esgotado, ou mesmo porque o cd nunca chegou a ser fabricado em seu país, estava agora disponível a um clique de distância.
Contudo, o fato de um determinado cd estar esgotado não confere ao internauta a possibilidade de baixá-lo gratuitamente, sem autorização do seu autor. As promessas de democratização do acesso à cultura estavam sendo cumpridas, no que se refere ao campo musical, mas em total desconformidade com a legislação autoral.
É nesse impasse que reside o primeiro critério de avaliação proposto por Lessig: a tecnologia em análise apenas serve como instrumento para a consecução de atos ilícitos, ou ela permite também que usos lícitos sejam feitos através de sua implementação.
Como exemplo, Lessig citou a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sobre a licitude do vídeo-cassete. Atualmente pode parecer algo inacreditável, mas foi questionado em juízo, e chegou até a Suprema Corte, uma ação judicial para declarar a tecnologia do vídeo-cassete como algo ilícito. O raciocínio era algo muito próximo ao que estamos acostumados a ver e ao ouvir hoje em dia: o vídeo-cassete, na medida em que permite ao seu usuário, gravar em fitas a programação de filmes, fará com que o mesmo deixe de ir ao cinema. Com isso, as bilheterias cairão, milhares de pessoas perderão os seus empregos, e a indústria do entretenimento audiovisual caminhará em direção da falência.
O que houve então? A Suprema Corte decidiu não banir a tecnologia do vídeo-cassete e o seu desenvolvimento gerou novos modelos de negócio. Hoje, com o dvd, estabeleceu- se uma nova forma de relacionamento com a obra audiovisual, que estréia no cinema, depois é licenciada em dvd para locação, posteriormente para venda, em seguida sendo exibida em canais por assinatura e, posteriormente, passando em canais de televisão aberta.
O Direito poderia ter desempenhado um papel importante para transformar todo o desenvolvimento tecnológico experimentado nos últimos vinte anos. E é justamente o mesmo dilema que vivemos hoje com a Internet.
O segundo critério é a existência de meios menos gravosos para lidar com a nova tecnologia do que simplesmente bani-la. Aqui, enfrentamos uma questão que no Direito Constitucional brasileiro nós tratamos através do chamado princípio da proporcionalidade. Isto é, existem meios menos gravosos, para a coletividade como um todo, para tutelar os interesses de autores, gravadoras e editoras, do que simplesmente taxar determinada tecnologia como algo ilícito?
Nesse particular, Lessig afirma que a existência de tecnologias alternativas para a proteção do conteúdo de obras musicais já colocaria em xeque a necessidade de se retirar um website como o Napster do ar. Mecanismos de gestão de direitos autorais (digital rights management, ou simplesmente "DRM") poderiam ser utilizados pelas gravadoras e a sua inserção nas obras seria menos nocivo do que a promoção de ações judiciais que visam a eliminar a própria tecnologia de troca de arquivos.
Vale mencionar que o pêndulo parece ter se movido de três anos para cá, e o avanço das tecnologias de DRM atualmente representa ameaça tão ou mais relevante para o acesso à cultura e à informação do que o ingresso com reiteradas ações judiciais. Mas esse é um assunto que não é comportado pelo nosso tempo de exposição.
O terceiro critério, por fim, analisa a eficácia da medida proposta, isto é, se o real objetivo dos autores da ação judicial foi alcançado com a decisão concedida. No caso Napster, claramente o objetivo dos autores da ação, ou seja, a eliminação de infrações à propriedade intelectual através do website Napster, foi alcançado, mas os efeitos dessa decisão em nada favoreceram aos autores. Em última análise, a eficácia da medida reverteu contrariamente às expectativas dos autores, pois a queda do Napster apenas fomentou o desenvolvimento de tecnologias cada vez mais sofisticadas para a troca de arquivos. E quando falamos em "mais sofisticadas" estamos nos referindo a tecnologias nas quais o fechamento de um servidor, como ocorrido no caso Napster, não teria mais o condão de impedir todo o fluxo de troca e compartilhamento de arquivos. Aqui estamos tratando das chamadas redes peer-to-peer, ou tão somente "p2p".
Antes mesmo de sair a decisão definitiva sobre o caso Napster, boa parte dos usuários já tinha migrado para o programa AudioGalaxy. E em seguida vieram o Gnutela, Kazaa, Kazaa Lite, Emule, Soulseek, Bit Torrent e etc. Cada programa mais sofisticado do que o seu antecessor.
Em síntese, o ingresso de ações de responsabilidade civil contra os usuários desses programas, ou mesmo contra os seus criadores, não parece ser o meio mais efetivo para se evitar as constantes infrações ao direito de propriedade intelectual. No aspecto criminal, por sua vez, quando a conduta a ser sancionada se torna tão difundida, chegamos a situações paradoxais. José de Oliveira Ascensão, grande jurista português, chega mesmo a se referir à empreitada de sancionamento dessas condutas na Internet como um "crime contra a cidade", ou seja, um crime praticado por quase todos os habitantes de uma cidade.
Poderíamos falar de outras formas de radicalismo na proteção da propriedade intelectual, sobretudo do alargamento do prazo de proteção das obras autorais ocorrido em 1998 nos Estados Unidos, principalmente para atender aos interesses de determinados conglomerados da indústria do entretenimento. A lei que tratou dessa extensão do prazo de proteção, apelidada de "Mickey Mouse Protection Act", é um assunto que também mereceria uma discussão maior do que o nosso tempo permite.
Passaremos então às boas notícias. Depois de comentar as reações negativas ao cenário atual do direito autoral, cumpre abordar as reações criativas, ou seja, as formas encontradas para contornar as restrições da legislação autoral, fazendo com que autores possam ser estimulados a criar, ao mesmo tempo em que o acesso às obras criadas é facilitado. Tudo sem representar infrações ao disposto na lei.
A primeira reação criativa ao cenário atual do direito autoral é a eclosão das formas de produção colaborativas, ou seja, a expansão de diversas iniciativas, criadas ou potencializadas pela Internet, que reúnem inúmeras pessoas em torno de uma obra, acrescentado aperfeiçoamentos e atualizações sobre a mesma.
O software livre é o primeiro exemplo que vem à mente quando pensamos em obras que envolvem o trabalho de diversas pessoas, espalhadas pelo mundo afora, em prol da criação de um programa de computador, no caso específico.
Mais recentemente, a congregação de esforços coletivos também gerou uma iniciativa talvez tão impressionante quanto o software livre: é o caso da Wikipedia, a enciclopédia disponibilizada na Internet em cujos verbetes qualquer um pode acrescentar ou suprimir informações.
A Wikipedia é atualmente um grande sucesso, superando a desconfiança generalizada que pairava sobre um projeto tão ambicioso. Imaginava-se que como qualquer pessoa poderia ingressar no website e alterar o conteúdo dos verbetes, a Wkipedia rapidamente se tornaria uma fonte pouco confiável para pesquisas e estudos. Muito ao contrário, foi justamente a possibilidade de contar com um capital humano superior ao imaginado por qualquer um que fez da Wilkipedia uma fonte bastante segura, e por vezes, muito mais informativa, do que as enciclopédias tradicionais.
Uma segunda reação criativa ao dilema posto pelo cenário atual do direito atual é a expansão das licenças disponibilizadas pelo Creative Commons.
O Creative Commons é uma organização não-governamental norte-americana que, em seu website, disponibiliza para autores de diversas espécies de obras intelectuais modelos de licenças jurídicas para a veiculação de sua obra na Internet. Para cada licença produzida pelo Creative Commons é gerado um código de computador que identifica a obra e o espectro de direitos concedidos, desde já, pelo seu autor.
Mais de trinta países já traduziram e adaptaram as licenças do Creative Commons para as suas respectivas línguas e legislações, fazendo com que o movimento hoje tenha alcance mundial. No Brasil, o Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS), da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas atua no trabalho de adaptação e difusão das licenças.
O principal problema que o Creative Commons visa a solucionar é justamente aquele impasse que comentamos no início da exposição: se a autorização do autor é necessária, em regra, para se utilizar uma obra, como é que se obtém essa autorização?
Valendo-se das facilidades trazidas pela Internet, o Creative Commons criou uma série de símbolos de imediata compreensão que identificam quais formas de utilização de obras autorais foram permitidas pelo seu autor. Na medida em que o autor disponibiliza a sua obra na Internet através de uma licença Creative Commons ele, de imediato, já informa aos seus futuros usuários, o que pode e o que não se pode fazer com a obra. Por exemplo, o autor escolhe se a obra poderá ou não ser utilizada para fins comerciais, se a obra musical poderá ou não ser objeto de sampling ou remix, e assim por diante.
Através de um sistema de fácil entendimento, o autor licencia a sua obra, dentro dos parâmetros permitidos pela legislação autoral, sem que todo o burocrático procedimento de obtenção da autorização tenha que ser trilhado por cada pessoa interessada em utilizar a obra.
Essa foi a forma encontrada pelo Creative Commons para se valer de todo o potencial da Internet não para praticar infrações ao direito de propriedade intelectual, mas para permitir uma maior aproximação entre o autor e a coletividade. No website do Creative Commons no Brasil (http://www.creativeccommons.org.br) podem ser encontradas, através de mecanismo de chave-de-busca, diversas obras já licenciadas nesse formato. De fotos do Cristo Redentor a concertos da orquestra sinfônica de Joanesburgo.
Em síntese, com essa exposição pretendemos apresentar uma brevíssima introdução ao tema do direito autoral, mais especificamente sobre o debate que hoje se trava sobre os fundamentos da proteção autoral e o acesso ao conhecimento. Todas as reações, negativas e criativas, que mencionamos são respostas ao cenário atual que atinge cada um de nós.
Notas
(*) Doutorando e Mestre em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador Adjunto do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas/RJ. Membro da Comissão de Direito Autoral e do Entretenimento da OAB/RJ.
1. O projeto Tangolomango conta com apoio da UNESCO, Fundação Ford, Rits, Secretaria das Culturas e SESC-Rio e, desde 2004, participa como projeto convidado do Programa Petrobrás Cultural. Todas as informações referentes ao histórico do projeto estão disponíveis no site: http://www.tangolomango.com.br.