Dália Maria B. Maia [**]
RESUMO
Este artigo é fruto de algumas reflexões sobre as "lutas de família" no sertão cearense. Embora se possa pensar que hoje valores como honra, coragem, valentia, não têm mais importância, estudando essa região percebe-se não só a sua concretude, mas também a sua força. Nessa economia imaginária produzida pelos "conflitos de família", esses valores são constantemente alimentados numa trama de sentimentos múltiplos: medo, ressentimento, ódio, desejo de vingança. Entendendo o conflito como algo inerente às relações sociais, produtor de formas de sociabilidades, este artigo pretende fazer algumas reflexões sobre a importância desses valores nos processos de sociabilização desses grupos familiares.
ABSTRACT
This article is fruit of some reflections about the "family struggles" in the Sertão do Ceará. Although one can think that today values as honour, courage, valiancy, they don't have importance anymore, studying that region it’s noticed not only its concrete way, but also its force nowadays. In that imaginary economy produced by "family conflicts", those values are constantly fed in a plot of multiple feelings: fear, resentment, hate, desire for vengeance. Understanding the conflict as something inherent to the social relations and producer of sociability forms, this article intends to make some reflections about the importance of those values in the processes of sociabilities of those family groups.
Meu filho, tua mãe morreu,
Não foi da morte de Deus.
Foi de briga no sertão,
meu filho Dos tiros,
que o jagunço deu.
Glauber Rocha,
A mãe1
Remi Lenoir (1996), em seu artigo Objeto sociológico e problema social, nos diz que o objeto da sociologia não é algo dado, mas construído; são as questões que o pesquisador faz que o ajudarão a construir o seu objeto de investigação. Suas palavras funcionaram para mim como um bom provocador. Assim sendo, o presente texto se propõe fazer algumas reflexões sobre os conflitos interfamiliares na região do Vale do Jaguaribe, no sertão cearense, tema que venho pesquisando e que é a base do meu projeto de dissertação de mestrado em Sociologia. E, a fim de compreender essas formas de sociabilidades particulares que associam conflito e família, gostaria de, a princípio, apresentar alguns dos aspectos teóricos que vêm norteando minhas reflexões.
A civilização a que me refiro nunca está completa, e está sempre ameaçada.
[...] Ela é ameaçada por conflitos tantos sociais quanto pessoais,
que são atributos normais da vida em comunidade.
Norbert Elias,
Os Alemães.
O conflito é algo inerente às relações sociais e contribui para o estabelecimento dessas relações mesmas. Esse era o paradigma que norteava Georg Simmel, sociólogo alemão considerado um dos mais importantes teóricos do conflito.
Para Simmel (1977), o conflito tem uma importância sociológica. Enquanto tal, o conflito é já uma forma de socialização, na medida em que cria uma unidade por meio da interação entre os oponentes. No seu desenrolar, as partes desenvolvem regras de conduta e formas de expressão de seus interesses divergentes, instituindo a socialização do conflito e a medida ou limite da violência, ou seja, o campo do próprio embate. Neste sentido, o conflito contribui para a ordenação social, para a determinação de normas e regras comuns aos partidos em disputa, a partir das idéias compartilhadas de justiça, respeito mútuo e espírito esportivo. Contudo, o autor exclui de conflito socializador as manifestações extremas de violência que não respeitam o oponente e têm por finalidade sua destruição moral, psicológica ou física.
Ao investigador social, o pensamento de Simmel dá uma grande contribuição para a compreensão da sociedade. Trabalhando com fragmentos (SIMMEL, 2002) do cotidiano, ele conseguiu captar o lado positivo da luta: seu caráter unificador. Para o autor, a luta, assim como a harmonia, é necessária para a construção da sociedade (SIMMEL, 1977:267).
Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997), em seu estudo sobre as relações sociais entre homens livres na antiga sociedade escravocrata brasileira, percebe que a violência é algo que irrompe decisivamente em todos os momentos da vida social, mesmo naqueles onde aparentemente as relações de "comunidade" a descartariam: nas relações de vizinhança, na cooperação para o trabalho (o mutirão), no lazer, no parentesco, na constituição da moralidade. Na esteira de Georg Simmel (1977), essa autora afirma que a vida comunitária está pautada não só no consenso, mas também na luta – o elemento ingente que salta das relações comunitárias. Segundo a autora, numa sociedade extremamente hierarquizada, a desigualdade era mantida pela violência explícita, impregnando todas as instâncias da vida, irrompendo em conflitos pelas causas mais comezinhas.
Trazendo a discussão simmeliana para o estudo da sociedade brasileira, é válido dizer que o conflito é inerente à sua formação. Para fazer tal afirmação, centro o meu olhar na família brasileira, elemento básico para a sua formação, pois, enquanto estrutura social dominante desde o período colonial, fundamentada nos laços de parentesco, na lealdade pessoal e na territorialidade, foi a família patriarcal que moldou os padrões da colonização e das relações sociais desde esse período; relações estas marcadas pelo conflito tanto interno como externamente.
Creio ser axiomática a afirmativa de que o grupo familiar era o centro da vida afetiva e econômica do indivíduo e lhe proporcionava segurança, sustento e proteção. A família lhe dava a base para a formação de seu caráter, de sua personalidade. E, embora tenha passado por algumas transformações a partir de fins do século XVIII – era então composta basicamente por estamentos – até o século XX – quando a riqueza tornou-se um critério de status mais importante –, a família continuou a ter um papel muito relevante na vida social, econômica e política do Brasil (KUZNESOF, 1988/89). Vários historiadores tratam dessa questão da composição da família patriarcal brasileira, tais como Raymundo Faoro (1975), Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997), Oliveira Vianna, Gilberto Freyre (1998). Este último, por exemplo, em sua obra Casa-grande & Senzala, afirma que:
"A nossa verdadeira formação social se processa de 1532 em diante, tendo a família rural ou semi-rural por unidade [...] Vivo e absorvente órgão da formação social brasileira, a família colonial reuniu, sobre a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas. Inclusive... a do mando político: o oligarquismo ou nepotismo, que aqui madrugou" (FREYRE, 1998: 22-23).
A família dominava onde o poder do Estado se fazia ausente. Dentro dessa estrutura, a lealdade era dirigida de um para outro membro, não se admitindo outra autoridade além dos chefes do clã. Herdeira do costume português, a família brasileira também tinha a figura masculina do marido e pai como o chefe da família, encarregado da administração, controle, disciplina e proteção de todos os que habitavam seu domicílio, incluindo a esposa, filhos, genros, noras, sobrinhos, netos, empregados e agregados. A esse tipo de poder/dominação, desenvolvido a partir da autoridade do senhor sobre a unidade familiar, Max Weber (2004) chamou "dominação patriarcal": poder legitimado pela tradição e pela crença permanente e inflexível, por parte daqueles que obedecem, naquilo que sempre foi de uma certa forma; uma crença na sacralização dos poderes de mando herdados do passado, que é exercido de modo pessoal e circunscrito a um território/comunidade.
Luis de Aguiar Costa Pinto (1980:3), estudioso do fenômeno da vingança privada nas lutas de famílias no Brasil, nos diz que na época colonial, "a família ou sociedade de parentes, desempenhava as funções de grupo total, satisfazendo em si mesma todas as necessidades sociais". E mais, cabia ao grupo familiar,
"(...) a prevenção e a reparação dos delitos, a segurança, a ordem e o equilíbrio sociais, que são assegurados pelas represálias exercidas pela família contra todos os que atentam contra a vida, os interesses e a honra de seus membros" (COSTA PINTO, 1980:5).
Os crimes cometidos em defesa do nome ou da honra da família, dos bens ou de algum de seus membros, tornam-se um padrão de comportamento e perpassam toda a história brasileira e, principalmente a do sertão nordestino. Assim, pode-se dizer que a família era também a grande causadora de conflitos e "desordens": insultos ou ofensas a um de seus membros por um membro de outra era motivo para uma confrontação. Afinal, como nos diz Norbert Elias (1997), perder a honra era deixar de pertencer a "boa sociedade".
De acordo com Franco (1997), a violência enquanto modelo de comportamento fazia parte do código do sertão, sistema cujos valores estão centrados na coragem pessoal, na virtude, na valentia, na noção de "honra".
Vendo, como Simmel (1977), os conflitos como algo positivo, geradores de sociabilidades, volto-me para a realidade do vale do Jaguaribe, região historicamente marcada por conflitos e violência; especialmente, pelo uso da violência em questões de famílias. Numa região onde até bem pouco tempo as instituições da justiça oficial não eram muito eficazes, a lei que imperava era a ditada pelas famílias tradicionais que resolviam suas questões entre si, sem arbitragem. Ou seja, muitas vezes através da força que sai pelo cano de um revólver. A honra ferida – que podia estar relacionada a temas políticos, econômicos e morais – fomentava o ódio no seio da família, e um braço armado era o meio para consumá-lo.
Formas de sociabilidades numa cidade do sertão cearense
Já não distingo os que se foram dos que restaram. Percebo apenas a estranha idéia de família viajando através da carne.
Drummond de Andrade,
Retrato de Família.
Quando iniciei o meu trabalho de campo em Ventura2, no Vale do Jaguaribe, pretendia entender como uma cidade tão pequena poderia ser considerada tão violenta. As freqüentes referências à violência local nos jornais do Estado, indicando o município como o berço da pistolagem no Ceará, não me permitiram antever o encontro que logo teria com as "brigas de famílias" e suas tramas.
Aqui, gostaria de apresentar o caso da luta entre os Macedo e os Rezende: Os Macedo foram certamente uma das primeiras famílias a se fixarem em terras venturenses, em fins do século XVII. Vindos da Paraíba, passando pelo Rio Grande do Norte, e de lá entrando no Ceará pela Chapada do Apodi, se instalaram numa localidade chamada Lagoa Bonita, lugar de terra fértil, que acumulava muita água no inverno, excelente para a agricultura de subsistência e para o criatório de gado de que viviam e que eram a base da economia da época.
Considerada hoje uma família de tradição na cidade de Ventura e na região jaguaribana, os Macedo se tornaram talvez a maior família do lugar depois das muitas uniões com outras famílias da região. Ao pesquisador social, contudo, ela oferece como mimo um interessante elemento para análise, uma vez que, no âmbito da antropologia local, isto é, a interpretação que o venturense faz do seu lugar e da sua gente, está a fama de ela ser uma família perigosa, sobretudo depois do conflito com a família Rezende.
Família numerosa e tradicionalmente patriarcal, a unidade e harmonia dos Macedo eram garantidas pelo chefe da família, a quem filhos, esposa e o restante da parentela devia respeito e obediência. Isto se mantém até princípios do século XX, quando então se dá a morte do velho patriarca e começam então a disputa entre os filhos pela posse da terra.
Eles começaram a brigar por causa de terra. Os pais morreram e aí começou a briga por causa de terra. Um dizia: "Isso aqui é meu!". O outro dizia: "Não, é meu!". "Eu quero ficar é aqui porque eu já tenho minha casa aqui!". Outro dizia: "Não, não pode!". Daí começou as intrigas (Sr. José, 50 anos, 19.08.2000).
Segundo o Sr. José, os Macedo "sempre foram metidos a valentes", resolvendo suas questões "na bala ou na ponta de uma faca" (Idem), seja entre seus membros ou com pessoas externas ao grupo familiar.
Os Rezende, por sua vez, eram oriundos de uma pequena cidade do Rio Grande do Norte; supostamente ainda descendentes da família Macedo, chegaram a Ventura depois desta e habitavam na localidade denominada Aldeia Encantada. Não se sabe ao certo as causas primeiras da desavença entre as duas famílias. As opiniões são diversas, mas, segundo alguns relatos orais, a disputa pela posse da terra foi, talvez, a causa inicial deste conflito que se iniciou na segunda metade do século XX.
A gente não sabe nem dizer porque era que tinha essas briga assim, por causa de terra. Mas cada qual tinha esse negócio de querer ficar com um pedaço de terra de um e de outro. O caso dessas brigas por causa de terra era assim: o cabra cerca aqui uma terra e vai aqui. Aí, uma estrada passa assim, desviando aquele seu cercado, uns 20 metros. Vamos dizer que é numa terra de outro, que pertence a outro. Aí depois você pega sua cerca aqui – que você é ambicioso – pega e vai colocar lá, no meio da estrada, pra ficar todo seu aquela lista, de lá a cá. Aí lá vai. O outro diz: "Essa terra era minha!" Começava por essas coisas. [...] Mas nesse tempo era por causa de ambição, que queria mais terra (Sr. Ricardo, 69 anos, 30.09.2002.).
(...) havia uma despeita, uma disputa de valentia entre as duas famílias.
[...] Então era o seguinte: quando os Rezende. tavam bebendo na bodega de seu Sales e do outro lado, num outro prédio, era o bar de Dondon onde os Macedo estavam. Aí, se eles tivessem bebendo lá, se os Macedo chegasse, aí era briga pelo território. Aí eles queriam ser valentes também... aí, sabe como é… (Sr. José, Idem.).
A disputa por limites de terras é uma causa clássica de conflitos no sertão. Muitas lutas ocorreram na região por este motivo, desde a época de sua povoação. Cercar uma propriedade era sempre motivo para uma possível intriga entre famílias. No entanto, o Sr. José aponta outra causa para essas brigas, que era a valentia dos homens das duas famílias, sobre a qual pretendo demorar um pouco mais o meu olhar.
A valentia é um componente sempre presente nas falas de meus narradores. Ao ser interpelado sobre a família Rezende, o Sr. Antônio (87 anos, 11.11.1999) pergunta: "Ah! Aqueles valentes?". Em seus discursos, pode-se perceber a valentia como uma característica própria dos homens da região.
Durval Muniz de Albuquerque (1999), ao tratar da construção da identidade do homem nordestino a partir dos discursos presentes na Literatura de Cordel, nos fala de uma subjetividade masculina existente nesta área do país, que vai sendo passada para o indivíduo, na infância, como modelo para a formação de seu caráter (arquétipos de homens, de machos corajosos). Esta subjetividade masculina, de que fala Muniz, nos remete a uma fala do Sr. José, quando ele fala da "filosofia" de alguns homens da família Macedo de Ventura:
A filosofia desse pessoal aí era o seguinte: quando o moleque tinha 12, 13 anos, o pai dizia assim: "Eu vou plantar uma corrente de algodão pra você." O cara ficava trabalhando dentro de casa até 21 anos e tudo o que ele fazia, o pai era quem ditava. [...] Aí, o pai botava pra plantar, era rapazinho e tal, tava se influindo pra ir pra festa e tal... "Vou plantar essa corrente de algodão pra você". O rapaz trabalhando pro velho: brocava, plantava milho, tudinho pro pai. Mas aquela corrente de algodão era dele. "O que der é pra você comprar um revólver". Eles armavam os filhos de pequenos, entendeu? E aí, por isso, a tendência pra violência. Porque os pais ensinavam os filhos e ajudavam a comprar armas, por isso ele já criava aquela idéia de arma. A cultura deles é essa (Sr. José, Idem).
Robert Merton (1970:232), em sua análise das estruturas da sociedade, aponta a família como um importante meio de transmissão e difusão de padrões culturais e de comportamento, de geração para geração. Segundo ele, a família é
"um importante mecanismo para disciplinas as crianças" que, "exposta a protótipos sociais de comportamento diariamente testemunhado e nas conversações dos pais... incorporam uniformidades culturais, mesmo quando elas permanecem implícitas e não foram reduzidas a regras".
Podemos perceber que este era um dos rituais pelo qual o menino deixava de ser adolescente e passava a ser homem. A arma era o passaporte que lhe garantia essa passagem. Quando não podia comprar uma arma de fogo, produzia sua própria peixeira, ou ganhava ela do pai, em nome da honra, do respeito e da defesa, e, logicamente, da masculinidade. "Homem sem arma é meio homem" (Idem).
Na narrativa do Sr. José, vemos que esta subjetividade é construída também no cotidiano, no dia-a-dia da família Macedo. O menino era ensinado pelo pai a "ser homem", e isto implicava andar armado, ser corajoso, valente, não levar desaforo para casa, ter domínio sobre sua vida, seu corpo, sua mulher, seus filhos, enfim, ser um homem de honra. Neste sentido, recordo Lewis Coser (s/d), um estudioso dos conflitos sociais, cuja preocupação voltava-se para a análise das funções dos conflitos, ao falar do uso da violência como forma de se atingir um êxito pessoal, e tentando explicar o machismo nas classes baixas latino-americas, afirma que,
(...) os homens tendem a pensar que a valentia demonstrada na violência interpessoal ou nos encontros sexuais agressivos, será o único meio que lhes permitirá obter uma identidade pessoal e ganhar respeito, inacessível de uma outra maneira (Coser, s/d.: 78 – tradução livre).
A maioria dos homens das duas famílias tinha o costume de andar armados. Desde cedo os meninos aprendiam que ser homem implica um dever- ser (BOURDIEU, 1995:158); os valores sociais do mundo em que vivem vão sendo passados de geração para geração, de pai para filho, como um habitus3, pois, conforme assinala Bourdieu,
(...) o mundo social constrói o corpo, ao mesmo tempo como realidade
sexuada e como depositário de categorias de percepção e de apreciação sexuantes, que se aplicam ao próprio corpo na sua realidade biológica. O mundo social trata o corpo... inscreve nele... as categorias fundamentais de uma visão de mundo (ou se se prefere, de um sistema de valores, ou de um sistema de preferências). (BOURDIEU, 1995:144).
E essa construção se dá de forma "natural", porque o habitus tem, segundo o autor, o "dom" de "naturalizar" características e ações que são, antes de mais nada, constructos sociais. Neste sentido, pode-se inferir que essa relação de dominação entre pais e filhos é perpassada pela
"... violência simbólica, que é uma dimensão de toda dominação e que constitui o essencial da dominação masculina" (BOURDIEU, 1995:143).
Riobaldo, personagem central de Guimarães Rosa em sua obra imortal Grande Sertão: Veredas, também fora educado nessa filosofia do sertão:
Meu padrinho Selorico Mendes era muito medroso. Contava que em tempos tinha sido valente, se gabava, goga. Queria que eu aprendesse a atirar bem, e manejar porrete e faca. Me deu logo um punhal, me deu uma garrucha e uma granadeira. Mais tarde, me deu até um facão enterçado, que tinha mandado forjar para próprio, quase do tamanho de espada e em formato de folha de gravatá (ROSA, 1986:95).
Embora apresentem interpretações diversas para a causa do conflito, todos os narradores que falam sobre as brigas entre os Rezende e os Macedo referem-se à "brigada da Lagoa Suja" – contenda ocorrida por ocasião de uma vaquejada na localidade de Lagoa Suja, no dia 04 de outubro de 1965, onde morreram quatro pessoas de ambas os lados e outras foram feridas –, como tendo, com certeza, agravado o ódio entre as duas famílias.
Segundo as narrativas, essa vaquejada tinha sido organizada pelos Macedo. Os Rezende não haviam sido convidados, posto que já existia a rixa entre as duas famílias e, as duas facções eram "alertadas" para não andarem no território uma da outra. Contudo, Hélio Rezende, bêbado, resolveu ir para a vaquejada, acompanhado de seu irmão caçula, Zezinho Rezende, e de Manoel Reinol, conhecido pistoleiro amigo deles. Os Macedo ficaram extremamente ofendidos com a presença dos três intrusos. Antônio Macedo, que era tido como um homem traiçoeiro, chamou Hélio Rezende de "corno". Hélio, profundamente ultrajado em sua honra, jurou que se ele repetisse a ofensa, morria. Antônio Macedo repetiu e Hélio Rezende matou-o com um tiro na boca. Fechou-se o tempo, no dizer da região. Iniciou-se o tiroteio. Os Macedo mataram o pistoleiro Manoel Reinol, Hélio Rezende e seu irmão Zezinho. Outras pessoas também saíram feridas. O ódio dos Rezende aumentou ainda mais depois dessa vaquejada, não tanto pela morte de Hélio e do pistoleiro Manoel Reinol, mas, principalmente, pelo assassinato do caçula Zezinho Rezende, que era ainda um adolescente.
Muitas mortes ocorreram depois dessa vaquejada, por vingança. Buscavam-se os alvos da vendetta, onde quer que estivessem, quer fosse no interior do município ou de municípios vizinhos, quer fosse necessário buscá-los em outro Estado, a morte era certa. Pierre Ansart (2004), professor da Universidade de Paris, em seus estudos sobre memória e ressentimentos, citando Nietzsche e Scheler, nos diz que o desejo de vingança é fruto do "ódio recalcado", ressentimento dinâmico, criador de valores, ou seja, de finalidades desejáveis pelos indivíduos, que fazem tudo para realizá-la. Nas palavras de Riobaldo: "Vinha a boa vingança, alegrias dele, se calando. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais" (ROSA, 1986:78).
Para essas famílias, a vingança é uma questão de honra. Isso nos remete ao campo da honra e a seus múltiplos significados. Julian Pitt-Rivers (1992), em seu artigo A doença da honra, nos diz que a honra, enquanto motivação de conduta, é algo puramente individual porque ela é, antes de tudo, um sentimento nascido no coração de cada indivíduo; mas a honra também pode ser coletiva e pode se fixar num grupo social, como a família, a raça, a pátria. Segundo o autor, a conduta ditada pela honra "varia de acordo com o lugar de cada um na sociedade. A honra de um homem exige dele coragem" e "para cada um existe somente uma noção de honra, a sua" (PITT-RIVERS, 1992:18). Assim, se a sede da honra é o corpo físico, a única saída para a limpeza da honra é o derramamento de sangue. Só o sangue vinga o sangue, no dizer de Costa Pinto (1980).
A defesa da honra coletiva reforça os laços da comunidade de parentes. Não vingar a ofensa é uma desonra. Para o Sr. José, essa era a filosofia dos Macedo, o que ele associa à ignorância dos membros da família. A briga entre as duas famílias só terminou quando eles fizeram um pacto de paz, como afirma o Sr. José:
Foi feito um pacto. Depois de muitas mortes. Porque os Macedo estavam perdendo. Os Macedo ganharam lá, mas por fora perderam. Porque os Rezende mataram um bocado de gente dos Macedo por vingança, num sabe... Os Macedo só tinha pra andar aqui em Ventura, era ali o Sítio Bonito, o Município. Saiu fora, o terreno era dos Rezende. (Sr. José, Idem).
Segundo Costa Pinto (1980), as lutas de famílias costumam terminar de três maneiras: ou pelo extermínio de um dos grupos em luta, ou pela assinatura de um tratado de paz entre as facções beligerantes, ou, decorrido o tempo, quando ambas as partes se convencem da inutilidade da luta e decidem não mais prosseguir com as vinganças. No Brasil, poucos foram os casos de tratados de paz assinados, como na luta entre Pires e Camargos, no século XVII, na Capitania de São Vicente (atual Estado de São Paulo). Na década de 70 do século XX, podemos citar o conflito entre os Sampaios e os Alencares, em Exu, no Estado de Pernambuco, que durou anos e anos, cujo pacto de paz foi selado pelo cantor e compositor Luís Gonzaga.
Na luta entre os Macedo e os Rezende, não foi assinado nenhum tratado paz. O Sr. José fala de um "pacto de paz", firmado apenas na palavra, mas suficiente para pôr termo ao conflito, uma vez que na região, a palavra dada tinha força de lei. Com o pacto, as duas famílias reconheceram que estavam perdendo e decidiram acabar com o derramamento de sangue de seus membros.
Pode-se pensar que hoje, em pleno século XXI, valores como honra, coragem, valentia, não são mais cultivados ou não são mais tão importantes. Recentemente, numa de minhas idas a campo, conversando com D. Rosa Macedo, ela me contava sua angústia e pavor com a possibilidade de ver seu filho morto por parentes seus distantes, por causa de uma briga que seu ex- marido travou em um bar com este seu parente, onde também se encontrava seu filho, de 15 anos, que levou um murro e foi ameaçado de morte juntamente com o pai. Temerosa, D. Rosa foi conversar com a mãe do rapaz que ameaçou seu filho, pedir pela vida deste. A senhora com quem ela foi falar (D. Idalina Macedo) lhe tranqüilizou, dizendo que nada de mal iria acontecer com seu filho, mas, nada poderia garantir com respeito a seu ex-marido, pois, quando os Macedo entram numa briga, não entram para brincar, entram para matar. Era questão de honra! E que era melhor ela não deixar seu filho andar com o pai, para não sobrar para ele. Contudo, ainda alertou, que se seu filho (de D. Idalina) aparecesse morto por seu ex-marido, eles iam matar um por um, podia ser criança, mulher, podia ser menino, podia ser velho, podia ser o que fosse, não sobraria um para contar a história.
Isto me traz a memória um trecho da obra Heróis e bandidos. Os cangaceiros do Nordeste, de Gustavo Barroso:
Ouviram-se gritos, berros horrorosos de medo louco, frenético, de desespero terrível. E em torno à casa, toda terror e apavoramentos, cabelos soltos, a mulher rodava com os olhos esbugalhados e gritos soturnos, roucos, os filhos pequenos, chorando enrodilhados às saias... e, logo, as paredes ruíram, os restos de telhado abateram... Foi esta a vingança dos Pataca.
Este episódio refere-se à vingança da família Pataca contra a família do Cel. José Leão (chefe do recrutamento da cidade de Russas), encurralada e queimada viva em sua própria residência na ribeira do Jaguaribe, no início do século XIX. Observa-se assim, a força dessa economia imaginária tecida ao longo dos séculos pelas querelas entre as famílias brasileiras. A briga entre Rezendes e Macedos, e a briga que hoje os Macedo travam com um outro ramo de sua própria família, fazem parte dessa teia. Por isso penso que, para tratar um tema como este, é quase inevitável ter de dialogar com uma perspectiva cultural, construtora de relações e redes de sociabilidades. Sobretudo quando penso no Vale do Jaguaribe, no sertão cearense, região historicamente marcadamente violenta e conflituosa, conforme já havia mencionado. Na realidade, seus habitantes têm, eles também, de estabelecer esse diálogo, de acordo com as circunstâncias que se apresentam à eles em sua vida prática. Recordo-me ainda a fala de uma informante que dizia já ter sentido vergonha da fama de sua família, pois, tendo vindo fazer compras em Fortaleza, e, ao ser inquirida por uma vendedora sobre o seu sobrenome e a cidade onde morava, ao mencioná-los, esta fez instaneamente o sinal-da-cruz, demonstrando seu temor e sua repulsa, por saber de onde vinha e à qual família ela pertencia. Embora, tenha dito algumas vezes que sentia orgulho de ser membro de uma família conhecida pela valentia (ou melhor, no seu caso, a pertença a duas famílias tidas como valentes na região – os Paula e os Macedo) desta feita, tendo de lidar com os estereótipos criados acerca de sua família, minha informante percebeu que esses mesmos estereótipos tinham o peso do estigma.
Enfim, como diria Bourdieu, a história de um indivíduo é uma variante do habitus do grupo a que pertence.
Fontes Heerográficas
JORNAIS:
[*] O presente trabalho, com algumas modificações, foi apresentado no I Encontro de Ciências Sociais do Estado do Ceará, no GT Conflito e violência: práticas e representações, em setembro de 2005.
[**] Dália Maria B. Maia, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia/ UFC.
1. Música que faz parte da trilha sonora do filme Deus e o Diabo na terra do sol (1963), de Glauber Rocha.
2. Por questões de ordem metodológica foram usados nomes fictícios para os narradores e para os nomes das famílias em análise. Assim como fictício é também o nome do município citado. Questões de famílias são assunto sempre delicado e exigente de discrição, sobretudo quando o que é discutido diz respeito à crimes de morte e insegurança, e põem em risco a integridade tanto daqueles que me deram seus depoimentos quanto daqueles que, de uma forma ou de outra, estão envolvidos nos conflitos.
3. O habitus - conceito empregado primeiramente pelos gregos, mas que ganhou importância sociológica na teoria do processo civilizatório de Norbert ELIAS e na da ação social de Pierre BOURDIEU - é identificado por este último como um estado de coisas natural, inevitável, que está presente, objetivado, no mundo social e também incorporado; é um princípio universal de visão e divisão, de percepção, de pensamento e ação. "O habitus faz com que os agentes que o possuem comportem-se de uma determinada maneira em determinadas circunstâncias. [...] as condutas geradas pelo habitus não têm a bela regularidade das condutas deduzidas de um princípio legislativo: o habitus está intimamente ligado com o fluido e com o vago." (BOURDIEU, 1990: 98).
Estas obras estão licenciadas sob uma Licença Creative Commons