A elaboração de um significado para a compreensão e a convivência com a esquizofrenia constitui uma das maneiras de os familiares lidarem com a doença e a evidencia como um fenômeno culturalmente constituído. A partir de uma abordagem antropológica, este estudo entrevistou 14 familiares de 8 pacientes com diagnóstico de esquizofrenia, buscando formular uma compreensão da esquizofrenia através dos conceitos e imagens do universo cultural e social familiar. Os dados produzidos foram analisados segundo metodologia qualitativa. Três categorias de concepção de doença são discutidas, Problema de Nervoso, Problema na Cabeça e Problema Espiritual. Argumenta-se que as concepções analisadas podem ser compreendidas como construções culturais e discute-se a importância desta abordagem para a compreensão da evolução da doença e para a elaboração de programas de intervenção culturalmente apropriados.
Descritores: Esquizofrenia; família; cultura; estudo qualitativo
Family conceptions of the nature of their relative's illness are part of the coping process and reveal the cultural construction of the illness experience. As part of a larger qualitative study conducted at the Schizophrenia Program of the Department of Psychiatry, Escola Paulista de Medicina - Unifesp, 14 relatives of 8 out-patients diagnosed with schizophrenia were interviewed and invited to talk freely about their ideas and feelings concerning their relative's problem. Qualitative analysis was conducted to elicit categories of illness representations. Three main categories are presented for discussion, Problema de Nervoso, Problema na Cabeça and Problema Espiritual (Nerves, Head and Espiritual Troubles). The authors sustain that these categories can be interpreted as culturally constituted and discuss the relevance of popular illness concepts for a broader understanding of the course and outcome of schizophrenia and for the planing of culturally meaningful intervention programs.
Keywords: Schizophrenia; family; culture; qualitative research
3.1 Relações familiares e esquizofrenia
A esquizofrenia é uma doença crônica, freqüentemente incapacitante, e aos familiares cabe cuidar ou administrar, de alguma maneira, o membro da família que sofre, fica dependente e desorganizado. À família cabe promover o contato entre o doente e os serviços de saúde existentes. Essa tarefa envolve procurar, avaliar e encaminhar o doente ao médico, hospital ou serviço de saúde disponível; conduzir as "negociações" entre o profissional que prescreve determinado tratamento e o familiar, que identificado como paciente, reluta em aceitá-lo; lidar com as situações de crise, decidindo quando é possível o manejo em casa e quando buscar ajuda emergencial.
Nem todos os familiares possuem condições estruturais, econômicas e emocionais para conduzir satisfatoriamente esses aspectos da convivência com a doença. Entretanto, de alguma forma elaboram a experiência, lidam com seu sofrimento e expectativas e podem viabilizar a convivência com a doença, buscando apoio em sua rede de conhecidos, em algum sistema de crenças e em tratamentos alternativos.
O envolvimento afetivo característico dos laços familiares de alguma forma orienta as tentativas de entendimento e as buscas de soluções para muitas questões pertinentes ao convívio com um familiar doente. Jenkins1 observa a esse respeito, que, a sustentar essas atitudes está sempre a construção de um sentido para a experiência cujo significado simbólico possui um tom mais íntimo e emocional do que a compreensão da doença em termos sociais mais amplos.
A elaboração de um significado para a compreensão e a convivência com uma doença grave é um processo que evidencia o fenômeno da doença como uma construção cultural e constitui, segundo Kleinman2, um modelo explanatório, um sistema conceitual que fundamenta a relação mediadora entre a doença, o doente e a realidade social. Nesse cenário estão incluídos todos os aspectos da busca e manutenção de um tratamento médico e, por esse motivo, a compreensão dos modelos explanatórios é importante para o desenvolvimento e a operação de uma abordagem compreensiva e eficaz de saúde mental para a esquizofrenia.
3.2 Estudos e pesquisas na área
De maneira geral, estudos conduzidos nos campos das ciências sociais, psicologia e antropologia, embora diferenciando-se em relação aos enfoques teóricos e metodológicos, têm buscado descrever e compreender como questões de estrutura e relacionamento familiar se interrelacionam com aspectos da etiologia, curso e prognóstico da esquizofrenia.
Uma revisão bibliográfica revela que grande parte dos estudos realizados a partir de um referencial psicodinâmico tem procurado de alguma forma lidar com uma relação de causalidade linear entre a doença mental e o sistema familiar.3 Esse foi um pressuposto básico de estudos conduzidos a partir do final da década de 50, que procuraram estabelecer relações de causalidade entre aspectos das relações e estruturas familiares (em especial o relacionamento mãe-filho e as relações maritais) e a manifestação da doença. Os estudos conduzidos por Lidz e col.4 ilustram essa atmosfera conceitual.
Um modelo comunicacional passou a determinar as abordagens a partir da década de 60, concomitante ao desenvolvimento de estudos dirigidos à família como um sistema. Os estudos de Wynne & Singer5, sobre os padrões comunicacionais familiares na esquizofrenia e a teoria do duplo-vínculo proposta por Bateson e col.6 são exemplos deste modelo de pesquisa. As pesquisas conduzidas pelo grupo de Palo Alto, lideradas por Bateson, representaram uma importante articulação da compreensão da esquizofrenia em termos comunicacionais no contexto das relações familiares. Entretanto, tais proposições foram freqüentemente mal interpretadas e o foco causal continuou a predominar, com concepções de esquizofrenia como um "produto", ou uma "solução", por um membro da família, para lidar com uma estrutura familiar doentia. Os efeitos desses pressupostos na prática clínica foram bastante negativos e freqüentemente se traduziram por uma atitude de julgamento social que, no mínimo, não auxiliou as famílias a lidarem melhor com a doença. E apesar de tais pressupostos teóricos não terem sido confirmados por evidências empíricas satisfatórias, muito de sua influência conceitual ainda caracteriza o relacionamento entre os profissionais de saúde e os familiares.
O modelo familiar sistêmico evoluiu com o reconhecimento das limitações do enquadre proposto inicialmente, linear e homeostático, chegando à formulação de abordagens do sistema familiar como um conjunto interacional orgânico.7 Este modelo estabeleceu-se como o enquadre teórico predominante para as abordagens profissionais atuais em terapia familiar.3 Entretanto, as principais linhas de pesquisa com famílias de pacientes com transtornos mentais não se desenvolveram a partir do modelo sistêmico, entre outras razões, pelas dificuldades de sistematização dado o seu caráter essencialmente descritivo.
As investigações recentes mais importantes nesse terreno, segundo Marsh3, têm se realizado a partir de um enfoque multidimensional, formulação teórica que pretende reunir evidências complementares das ciências biológicas, sociais e do comportamento. No estudo da esquizofrenia esse modelo procura considerar de maneira integrada aspectos do substrato biológico da doença e fatores ambientais e psicológicos, apoiados em análises das evidências de pesquisas realizadas na área. Os aspectos psicossociais mais estudados dentro do ambiente familiar são os fatores de estresse que influenciam o curso do transtorno, sendo as principais variáveis medidas os Desvios de Comunicação8 e o índice de Emoções Expressas (EE)9 na convivência familiar. As EE, particularmente, tornaram-se uma das principais variáveis pesquisadas, promovendo o encontro (e confronto) de modelos teóricos e merecendo, portanto, análise mais detalhada em seguida à descrição de estudos realizados a partir das abordagens epidemiológicas e sociais.
São considerados fundamentais para o questionamento de fatores socioculturais no curso da esquizofrenia os primeiros estudos comparativos gerados a partir de trabalhos epidemiológicos realizados após a Segunda Guerra Mundial.10 Estudos clássicos como os de Murphy e Raman11 e Murphy 12, nas Ilhas Maurício, e de Waxler13, no Sri Lanka, tiveram o reconhecido mérito de chamar atenção para a influência de fatores culturais na esquizofrenia. Murphy e Raman11 estudaram as diferenças culturais nas crenças sobre doença mental;13 analisou as crenças sobre a doença mental, os sistemas de tratamento locais e a estrutura e relacionamento familiar como fatores determinantes das variações transculturais no curso e prognóstico da esquizofrenia. Não obstante as críticas14, 15, 16, 17, 18 a possíveis falhas metodológicas de tais estudos, principalmente quanto à padronização diagnóstica, tamanho das amostras e medidas de avaliação, tais hipóteses encontram sustentação em dados obtidos no Estudo Piloto Internacional para Esquizofrenia (IPSS)19, 20 e em dados de estudos longitudinais que se seguiram e complementaram o IPSS.21, 22 Esses estudos, multicêntricos e multiculturais, obedeceram aspectos metodológicos importantes como o uso de instrumentos de diagnóstico e avaliação padronizados, amostras representativas, controle de variáveis como sexo, idade e tipo de início do surto psicótico nas análises comparativas de amostras de pacientes de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Os resultados apontam para um padrão consistente de melhor evolução dos pacientes nos países em desenvolvimento (mais pacientes assintomáticos, menor proporção de incapacitação social, melhor curso da doença, menor proporção de pacientes com duração prolongada do episódio psicótico), independente do tipo de início da doença.
A influência determinante de fatores familiares, valores sociais e sistema cultural no curso e prognóstico da esquizofrenia é atualmente um consenso. No entanto, os resultados encontrados nesses estudos transculturais indicam também a necessidade de análises qualitativas para a melhor compreensão e complementação dos dados até aqui produzidos, principalmente para viabilizar a interpretação das diferenças encontradas. .
Mari10, Mari & Streiner23 e Mc Farlane & Lukens24 estão entre os autores que realizaram revisões sobre estudos baseados nas Emoções Expressas (EE). As EE constituem um conceito desenvolvido originalmente por Brown e colaboradores na Inglaterra, há três décadas, em estudos sobre o curso das doenças mentais e consistem num índice de respostas afetivas expressas por familiares em relação a um membro da família com diagnóstico de transtorno mental, particularmente esquizofrenia. Seus componentes específicos são hostilidade, comentários críticos e superenvolvimento emocional. As EE estão entre os principais conceitos investigados nas últimas duas décadas nas pesquisas de fatores psicossociais no curso e prognóstico das doenças mentais25. Avaliações de EE têm sido aplicadas em diversas culturas como uma medida da evolução clínica da esquizofrenia e muitos estudos realizados no mundo todo sugerem uma associação de níveis altos de EE e índices de recaída. Mari10 afirma, contudo, que a comparação das diferenças observadas entre estudos de culturas diversas fica prejudicada pelas diferenças de composição das amostras e da baixa reprodutibilidade das medidas de EE, principalmente quanto ao componente de superenvolvimento emocional entre familiares.
Os estudos com EE também despertaram enorme interesse no meio clínico, que rapidamente absorveu o conceito e adaptou formas de avaliação, inicialmente dirigidas à pesquisa, para delinear programas de intervenção familiar no tratamento da esquizofrenia.3 Uma extensiva revisão sobre o assunto se encontra em Mari e Streiner 23, um estudo de metaanálise dos resultados de pesquisas desenvolvidas em intervenções familiares e recaídas na esquizofrenia.
As EE tornaram-se uma questão paradigmática, entrelaçando os domínios psicodinâmicos, sociais e transculturais das relações familiares na esquizofrenia. Entretanto, estudos comparativos multiculturais levantam a questão da fragilidade da construção do conceito de EE diante de evidências de que os componentes medidos nesse índice representam, na realidade, um conjunto de respostas culturalmente construídas. Por esse motivo tornou-se fundamental avaliar cuidadosamente a validade do construto EE, proposta por Jenkins & Karno25, através de uma análise antropológica dos fatores culturais expressos nas relações familiares, em que as interpretações culturais da doença representam um de vários fatores a serem investigados através de técnicas etnográficas.
A abordagem antropológica, ao propor formulações que sugerem a investigação da articulação cultural da doença no contexto familiar e social, alia-se aos estudos epidemiológicos e psicodinâmicos, possibilitando uma relação enriquecedora de pontos de vista complementares. A avaliação dos sistemas locais de saúde mental, com destaque para os estudos etnográficos focais, tem sido recomendada como estratégia inicial de pesquisa em saúde mental, para levantar "mapas descritivos de problemas, perspectivas, realidades sociais e recursos locais".26 Os estudos etnográficos constituem um eixo de investigação ainda pouco explorado, mas, não por isso, menos fundamental para o campo da saúde mental.14, 27
Página seguinte |
|
|