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Essa descrição da integração implica a possibilidade de desintegração, que significa a incapacidade de atingir ou preservar a auto-integração. Tal fracasso pode ocorrer em uma ou duas direções. Ou é a incapacidade de superar a centralidade limitada, estabilizada e imóvel, em cujo caso existe um centro, mas um centro que não tem processo vital cujo conteúdo é mudado e aumentado, aproximando-se da morte. Ou é a incapacidade de retornar por causa do poder dispersivo da multiplicidade, em cujo caso existe vida, mas é dispersa e fraca em centralidade, e enfrenta o perigo de perder totalmente seu centro.
Assim, ao propor uma distinção entre medo e ansiedade, Tillich evidencia que o medo é criado e localizado em um objeto específico que pode ser enfrentado ou evitado. A ansiedade, por sua vez, não tem objeto, ou melhor, seu objeto é a negação de todo objeto. O desamparo no estado de ansiedade pode ser observado da mesma forma em animais e humanos. Expressa-se pela falta de direção, reações inadequadas, falta de "intencionalidade". A razão deste comportamento é a falta de um objeto (um estado de ansiedade) no qual o sujeito possa concentrar-se. O único objeto é a própria ameaça, mas não a fonte da ameaça, porque a fonte da ameaça é o "nada". Medo e ansiedade são distintos mas não separados. "São imanentes um dentro do outro: o acicate do medo é a ansiedade, e a ansiedade se esforça na direção do medo".
Tillich descreve ainda três tipos de ansiedade: a ansiedade do destino e da morte; a ansiedade do vazio e da perda de significação; e a ansiedade de culpa e condenação. Destino e morte são os meios pelos quais nossa firmação do ser é ameaçada pelo não-ser. A ansiedade do destino e da morte é "a mais básica, mais universal e inescapável". Todas as tentativas de negá-la são fúteis pois todo mundo tem certeza da completa perda do eu que a extinção biológica implica. A ansiedade da morte é o horizonte permanente dentro do qual a ansiedade do destino trabalha. Porque a ameaça contra a auto-afirmação ôntica do homem não é só a ameaça absoluta da morte, mas também a ameaça relativa do destino. O destino não produziria ansiedade inevitável se não tivesse a morte por trás de si. E a morte está por trás do destino e suas contingências, não só no último momento, quando se é expulso da existência, mas em cada momento dentro da existência. Não-ser é onipresente e produz ansiedade mesmo onde uma ameaça imediata de morte está presente.
O não-ser ameaça o homem como um todo e, portanto, ameaça tanto sua auto-afirmação espiritual como a ôntica. Tillich utiliza o termo insignificação para a ameaça absoluta do não-ser à auto-afirmação espiritual, e o termo vacuidade para a ameaça relativa a ela. A ansiedade da vacuidade é despertada pela ameaça do não-ser ao conteúdo especial da vida espiritual. Vacuidade e perda de significação são expressões da ameaça do não ser à vida espiritual, que está implícita na finitude do homem e realizada no extravio do homem.
O não-ser ameaça de um terceiro lado: ameaça a auto-afirmação moral do homem. O ser do homem, tanto ôntico como espiritual, não só é dado a ele mas também reclamado dele. Ele é responsável por ele próprio. Ele próprio se pergunta o que fez de si próprio, colocando-se como juiz. Essa situação produz a ansiedade que, em termos relativos, é a ansiedade da culpa e em termos absolutos é a ansiedade da auto-rejeição ou condenação. O homem é essencialmente "liberdade finita", não no sentido de indeterminação, mas no sentido de ser capaz de se determinar por meio de decisões no núcleo de seu ser. O homem, como liberdade finita, é livre dentro das contingências de sua finitude. Não ser está misturado com ser em sua auto-afirmação espiritual e ôntica. A consciência desta incerteza é o sentimento de culpa.
Os três tipos de ansiedade estão de tal maneira entrelaçados que um deles dá a cor predominante mas todos participam ativamente na coloração do estado de ansiedade. Todos eles e sua unidade básica são existenciais, isto é, estão implicados na existência do homem como homem, sua finitude e seu extravio. Dessa forma, pode-se dizer que nos três tipos a ansiedade é existencial no sentido em que pertence à existência como tal, não a um estado anormal da mente como na ansiedade neurótica (e psicótica).
Por outro lado, Tillich descreve a ansiedade patológica como um estado de ansiedade existencial sob condições especiais. Aquele que não consegue tomar com coragem sua ansiedade sobre si próprio pode obter êxito em evitar o desespero (situação extremada de ansiedade) escapando para a neurose. "Neurose é o meio de evitar o não-ser evitando o ser". A Ansiedade patológica é considerada doença e deve ser tratada.
A personalidade sadia (embora potencialmente neurótica) diferencia-se da personalidade neurótica da seguinte forma: a personalidade neurótica, baseada em sua maior sensibilidade para o não-ser e, por conseqüência, em sua profunda ansiedade, estabeleceu-se numa afirmação fixada, embora limitada e irrealística. "Esta é, por assim dizer, o castelo para onde se retirou e que defende com todos os meios contra ataques, venham eles do lado da realidade ou do lado do analista." O neurótico tem consciência do perigo de uma situação na qual sua auto-afirmação irrealística é derrotada e a auto-afirmação não realística toma seu lugar. O perigo é que ele caia de novo em outra neurose (melhor protegida) ou que, com a derrocada de sua limitada auto-afirmação, caia num "ilimitado desespero". A personalidade sadia, por outro lado, mantém a pessoa afastada de situações extremas batendo-se corajosamente com objetos concretos de medo. Ela não tem consciência do não-ser e da ansiedade na profundeza de sua personalidade, porém sua auto-afirmação fragmentária não é fixada e protegida contra uma opressiva ameaça de ansiedade. Esta ajustada à realidade em muito mais direções do que o neurótico. "É superior em extensão, mas é falha na intensidade que pode fazer o neurótico criador." Sua ansiedade não a conduz à construção de mundos imaginários. O neurótico é doente e necessita de cura por causa do conflito com a realidade em que se encontra. Nesse conflito ele é ferido pela realidade que permanentemente penetra no castelo de sua defesa no mundo imaginário atrás dele. Sua auto-afirmação limitada e fixada, ao mesmo tempo, preserva-o de um intolerável impacto de ansiedade e o destrói, virando-o contra a realidade e a realidade contra ele, e produzindo outro intolerável ataque de ansiedade. A ansiedade patológica, como dissemos acima, é doença e perigo, e, a despeito de suas potencialidades criadoras, deve ser curada sendo incorporada a uma coragem de ser que é tanto extensiva quanto intensiva.
Tillich propõe o conceito de Coragem como auto-afirmação "a despeito de", a despeito daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar. Seria a chave para a interpretação do ser-em si que abre a porta do ser e encontra o ser, a negação do ser e a unidade deles. A coragem de ser, em todas as suas formas, tem por si mesma caráter revelador. Mostra a natureza do ser, mostra a que a auto-afirmação do ser é uma afirmação que supera a negação. Numa formulação metafórica, Tillich diz que ser inclui não-ser, mas o não-ser não prevalece contra ele. Não-ser pertence ao ser, não pode ser separado dele. A potência de ser é a possibilidade que um ser tem de realizar-se contra a resistência de outros seres. Se falamos de potência do ser-em-si indicamos que o ser se afirma contra o não-ser. Onde há não-ser, há finitude e ansiedade, o que equivale dizer que a finitude e a ansiedade pertencem ao ser-em-si. No ato da coragem de ser, a potência de ser é efetivada em nós, quer o reconheçamos ou não. Cada ato de coragem é uma manifestação do fundamento do ser, não importando o quanto possa ser questionável o conteúdo do ato. O conteúdo pode esconder, ou distorcer, o verdadeiro ser, a coragem nele revela o verdadeiro ser. Não são os argumentos, mas a coragem que revela a verdadeira natureza do ser-em-si. A coragem tem poder revelador, a coragem de ser é a chave do ser-em-si.
2. O CONCEITO PSICANALÍTICO DE ANSIEDADE
Paul Tillich propõe uma compreensão dos afetos do homem segundo sua consciência de ser e de não-ser. É a consciência de sua finitude que o remete para dentro de si mesmo, para a busca de uma integração e centralidade. Essa compreensão do homem pode ser corroborada por métodos de investigação e tratamento dos efeitos da ansiedade no homem, como a psicanálise.
A psicanálise é um método de investigação criado por Sigmund Freud que consiste essencialmente em evidenciar o significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias (sonhos, fantasias, delírios) de um sujeito. Baseia-se principalmente nas associações livres do sujeito, as quais são a expressão indiscriminada dos pensamentos que ocorrem a partir de um elemento dado ou de forma espontânea.
A distinção entre consciente e inconsciente na psicanálise põe em questão uma mente cujas funções não são igualmente acessíveis ao sujeito. O consciente, para a psicanálise, é apenas uma parte da mente e inclui tudo o que estamos cientes num dado momento. Dewald o define como aspectos da função mental que, no momento em que são observados, estão dentro da consciência do indivíduo, o que inclui grande variedade de pensamentos, sensações e sentimentos, mas o importante é o indivíduo ter conhecimento deles e neles focalizar parte de sua atenção.
Freud, porém estava mais interessado nas áreas da consciência menos expostas e exploradas que ele denominou pré-consciente e inconsciente. A premissa inicial de Freud é de que há conexões entre todos os fenômenos mentais e quando um pensamento ou sentimento parece não estar relacionado aos pensamentos ou sentimentos que o precedem, as conexões estão no inconsciente. "Denominamos um processo psíquico inconsciente, cuja existência somos obrigados a supor – devido a um motivo tal que inferimos a partir de seus efeitos – mas do qual nada sabemos". No inconsciente estão elementos instintivos, que nunca foram conscientes e que não são acessíveis à consciência. Além disso, há material que foi excluído da consciência, censurado e reprimido. Esse material não é esquecido ou perdido, mas não é permitido ser lembrado. O pré-consciente, por sua vez, é uma parte do inconsciente, que pode se tornar consciente com facilidade. É como uma vasta área de posse das lembranças que a consciência necessita para desempenhar suas funções.
A ansiedade, sob o ponto de vista da psicanálise, pode originar-se de várias fontes do aparelho psíquico. A expressão "aparelho psíquico" refere-se a certas características que a teoria freudiana atribui ao psiquismo: a sua capacidade de transmitir e transformar uma energia determinada e a sua diferenciação em sistemas ou instâncias. Em sua segunda formulação, Freud divide o aparelho mental em três instâncias: o id, o ego e o superego.
O id é a porção do aparelho mental cuja função é dar à mente uma representação psíquica para as forças instintivas oriundas da constituição biológica do organismo. É totalmente inconsciente e se constitui no reservatório de energia de toda personalidade e, para Freud contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento, que está presente na constituição – acima de tudo, portanto, os instintos que se originam da organização somática e que aqui (no id) encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas que nos são desconhecidas.
Enquanto pólo psicobiológico da personalidade, o id é inerente ao ser humano e a ameaça percebida proveniente da consciência do id é a ameaça à própria vida, como a ansiedade do destino e da morte descrita por Tillich, em que o não-ser ameaça a própria existência biológica do indivíduo.
O ego, por sua vez, é a instância central da personalidade e constitui o pólo psicológico por excelência. É definido como um grupo de processos mentais cuja função é perceber e reconhecer as variadas forças que influenciam o organismo, tanto internas quanto externas, sintetizando-as, integrando-as, buscando uma adaptação interna e externa. É a parte do aparelho psíquico que está em contato com a realidade externa. Desenvolve-se a partir do id na medida em que o bebê toma consciência de sua própria identidade, para atender e aplacar as constantes exigências do id. Como a casca de uma árvore, o ego protege o id mas extrai dele a energia para realizá-lo. Tem a tarefa de garantir a saúde, segurança e sanidade da personalidade. Poderíamos nesse momento remetermo-nos à ameaça que o não-ser faz ao homem como um todo, ameaça tanto a auto-afirmação espiritual como ôntica, a que Tillich denominou ansiedade de vacuidade e perda de significação.
O superego tem a função de julgar criticamente as outras funções mentais, em termos de um padrão moral de certo e errado, bom e mau, recompensa e castigo; assim como o ego, o superego é em parte consciente e em parte inconsciente. Freud descreve três funções do superego: consciência, auto-observação e formação de ideais. Tillich diria que o homem é responsável por si mesmo e é essencialmente "liberdade finita" e coloca-se a si mesmo como juiz de si próprio, atentando para o sentimento de culpa como a consciência da ameaça a auto-afirmação moral do homem.
Essa divisão em id, ego e superego permitem uma concepção sistemática das variadas forças e funções psicológicas que estão presentes, ao mesmo tempo, na mente. Desde que essas forças possam ter objetivos contraditórios ou incompatíveis, surgirão situações de conflito psicológico. Este tanto pode ser um conflito dentro do aparelho mental (conflito intrapsíquico), quanto um conflito entre o organismo e o ambiente externo. Freqüentemente há uma combinação de ambos, de maneira que o conflito existente entre o organismo e o ambiente externo está relacionado com um conflito intrapsíquico.
A mais importante função do ego é a de manter, a despeito de várias contradições e estresses, um estado de adaptação interna para o aparelho mental, bem como de adaptação entre o organismo e o meio ambiente, procurando manter esse sistema em equilíbrio. O equilíbrio estabelecido pelo ego, porém, não é fixo nem estático, havendo, dentro de certos limites, uma constante oscilação do estado dinâmico. O sistema todo deve ser mantido num estado dinâmico constante, compreendendo um grau mínimo de tensão e conflito e grau máximo de satisfação das necessidades, além de uma interação eficaz com o meio ambiente. Qualquer ameaça a este estado de equilíbrio dinâmico aciona um sinal de alerta: a ansiedade.
Assim como para Tillich a ansiedade é a consciência de conflitos insolvidos, que levam a pessoa para o confronto com sua finitude e a busca da centralidade, para Freud, a ansiedade, representa importante papel no processo de adaptação e equilíbrio do indivíduo. Ela é provocada por um aumento, esperado ou previsto da tensão ou desprazer e pode desenvolver-se em qualquer situação (real ou imaginada), quando a ameaça a alguma parte do corpo ou da psique é percebida e não pode ser ignorada, controlada ou descarregada.
Confunde-se muitas vezes medo e ansiedade. O medo para a psicanálise, tal como define Tillich, se origina de uma ameaça externa. Tillich afirma que o objeto da ansiedade é a negação de todo objeto e a psicanálise a relaciona com a experiência de um temor internalizado.
A ansiedade instintiva (id) resulta de uma expectativa de invasão do organismo por um excesso de tensões e estímulos oriundos de seus próprios impulsos e relaciona-se com as primeiras experiências infantis de acúmulo de tensão e gratificação. A ansiedade do ego resulta da percepção de uma situação perigosa incorporada, que uma vez foi sentida como externa, correspondente às várias fantasias e distorções do pensamento do processo primário na infância. A ansiedade do superego resulta da incorporação de ameaças de punição ou perda do amor, baseadas nas regras morais, atualmente experimentadas pelo indivíduo como sentimento de culpa. Nesse momento, se o indivíduo falha em viver de acordo com seu ego-ideal, surge uma ansiedade do superego, sentida como vergonha.
Se o ego é obrigado a admitir sua fraqueza, ele irrompe em ansiedade – ansiedade realística referente ao mundo externo, ansiedade moral referente ao superego e ansiedade neurótica referente à força das paixões do id.
Fadiman e Frager em seu livro Teorias da Personalidade descrevem quatro situações protótipas que causam ansiedade:
a) Perda de um objeto desejado, como por exemplo a morte de um amigo, pais, emprego, etc.;
b) Perda de amor, como por exemplo rejeição, fracasso em conquistar o amor ou a aprovação de alguém que lhe importa;
c) Perda de identidade, como por exemplo, medo de castração, perda de prestígio, de ser ridicularizado em público;
d) Perda de auto-estima, como por exemplo a desaprovação do superego por atos ou pensamentos que resultam em culpa ou ódio em reação a si mesmo.
A ameaça percebida causa ansiedade. Tillich, como vimos, define a própria vida como sendo a atualização do ser potencial e, dessa forma, o movimento de dirigir-se para fora de si mesmo ocorre de forma a não perder o centro. A centralidade é essencial nesse movimento. Permanece a auto-identidade na auto-alteração, ou seja, a auto-integração é um movimento que leva a centralidade. Um ser desenvolvido, maduro, é um ser centrado e as perdas apontadas por Fadiman e Frager se constituem em ameaça a este movimento de auto-integração.
O temor ligado a situações externas reais de perigo é percebido pelo ego e estará proporcionalmente ligado à natureza e à gravidade do perigo. Como vimos acima, a ansiedade pode se manifestar como um sinal de perigo ou ameaça externo ou interno, que mobilizará os recursos intrapsíquicos de defesa visando o restabelecimento do equilíbrio do indivíduo.
Os recursos intrapsíquicos de defesa são denominados "mecanismos de defesa" e referem-se a diferentes tipos de operações em que a defesa pode ser especificada. Os mecanismos de defesa bloqueiam a expressão direta de necessidades instintivas e podem ser encontrados em todas as pessoas e desempenham um papel central no estabelecimento e manutenção do equilíbrio dinâmico. O conflito psíquico é inevitável no ser humano e os mecanismos de defesa são funções que se estabelecem e se desenvolvem em cada indivíduo, fazendo parte de seu amadurecimento psicológico, para tratar e resolver tanto os conflitos intrapsíquicos quanto aqueles que surgem entre o organismo e o meio ambiente. Esses mecanismos, portanto, são encontrados tanto nos estados normais quanto nos patológicos. Kusnetozoff chama de angústia-sinal (angústia aqui compreendido como sinônimo de ansiedade) o alarme disparado pelo ego contra a ameaça percebida de rompimento do equilíbrio acima citado. Neste momento os mecanismos de defesa, entram em ação com a finalidade de restabelecer o equilíbrio pré-existente.
Quando, porém, os mecanismos de defesa não são suficientes em sua função, os mecanismos secundários do ego podem começar a atuar a fim de diminuir os efeitos da ansiedade sobre o indivíduo. Tais mecanismos secundários são os chamados sintomas neuróticos que representam as manifestações da tentativa do ego de estabelecer um novo equilíbrio dinâmico frente a um conflito inconsciente não resolvido. A mesma preocupação tem Tillich ao descrever a ansiedade patológica, vivenciada pela personalidade neurótica que dá lugar a uma auto-afirmação não realística como forma de evitar o desespero decorrente da percepção do não-ser.
3. A PSICANÁLISE E A CORAGEM DE SER
A coragem de ser, segundo Tillich, tem por si mesma caráter revelador. Mostra a natureza do ser, mostra a que a auto-afirmação do ser é uma afirmação que supera a negação. Coragem é uma realidade ética, mas se enraíza em toda extensão da existência humana e basicamente na estrutura do próprio ser. Coragem como um ato humano é um conceito ético. Coragem como auto-afirmação de alguém é um conceito ontológico. A coragem de ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com sua auto-afirmação essencial.
Tillich, em sua Teologia Sistemática, distingue quatro níveis de conceitos ontológicos:
a) a estrutura ontológica básica;
b) os elementos que constituem a estrutura ontológica;
c) as características do ser que são as condições da existência;
d) as categorias do ser e conhecer.
A questão ontológica pressupõe um sujeito que pergunta, e um objeto a respeito do qual a pergunta é levantada. Pressupõe a estrutura sujeito-objeto do ser, que, por sua vez pressupõe a estrutura eu-mundo como articulação básica do ser.
Todo ser participa na estrutura do ser, mas só o homem está imediatamente consciente desta estrutura. Ser um indivíduo significa estar separado de alguma maneira de tudo o mais, ter a tudo o mais como oposto a si mesmo, ser capaz de olhá-lo e agir sobre ele. Ao mesmo tempo, no entanto, este indivíduo está consciente do fato de que pertence àquilo que olha. O indivíduo está "nele".
A questão do ser é produzida pelo "choque do não-ser". Só o homem pode levantar a pergunta ontológica porque só ele é capaz de olhar para além dos limites de seu próprio ser e de todo outro ser. Considerado do ponto de vista do possível não-ser, o ser é um mistério. Numa formulação metafórica, Tillich diz que "ser inclui não-ser, mas o não-ser não prevalece contra ele". Não-ser pertence ao ser, não pode ser separado dele. O não-ser conduz o ser para fora de seu afastamento, força-o a afirmar-se dinamicamente.
Onde há não-ser, há finitude e ansiedade, o que equivale dizer que a finitude e a ansiedade pertencem ao ser-em-si. O ser, limitado pelo não-ser, é finitude. O não-ser aparece como o "ainda-não" do ser e como o "não mais" do ser. A finitude é experimentada a nível humano; o não-ser é experimentado como a ameaça ao ser. O fim é antecipado. Finitude com consciência é ansiedade. Como a finitude, a ansiedade é uma qualidade ontológica. Não pode ser derivada; só pode ser vista e descrita. Segundo Tillich, a ansiedade é independente de qualquer objeto especial que a possa provocar e é dependente apenas da ameaça do não-ser, da finitude.
A potência de ser é a possibilidade que um ser tem de realizar-se contra a resistência de outros seres. Se falamos de potência do ser-em-si indicamos que o ser se afirma contra o não-ser. No ato da coragem de ser, a potência de ser é efetivada em nós, quer o reconheçamos ou não. Cada ato de coragem é uma manifestação do fundamento do ser, não importando o quanto possa ser questionável o conteúdo do ato. O conteúdo pode esconder, ou distorcer, o verdadeiro ser, a coragem nele revela o verdadeiro ser. Não são os argumentos, mas a coragem que revela a verdadeira natureza do ser-em-si. A coragem tem poder revelador, a coragem de ser é a chave do ser-em-si.
Para a psicanálise, é a ansiedade que mobiliza os recursos internos do indivíduo para a solução de seu impasse existencial, seus conflitos. Reconhecer-se finito, não-onipotente, não-perfeito, passível de morte e desagregação põe por terra a crença narcísica do indivíduo. O narcisismo designa um estado precoce em que a criança investe toda a sua libido em si mesma. Laplanche sintetiza a teoria de Freud sobre o narcisismo como sustentada em três proposições:
o narcisismo é um investimento libidinal de si, um amor de si mesmo – tese que parece não Ter nada de surpreendente -; mas esse investimento libidinal de si mesmo passa necessariamente no homem pelo investimento libidinal do ego; e terceira tese, o investimento libidinal do ego é inseparável da própria constituição do ego humano.
Libido é um termo empregado pelos psicanalistas originalmente em seu sentido de desejo sexual e posteriormente no seu sentido mais geral de impulso ou energia vital. A crença narcísica de que falamos acima diz respeito, portanto, ao auto-investimento libidinal que está diretamente ligado a auto-estima. Para que uma pessoa possa olhar para si mesma como possuidora de valor, deve sentir que é amada por outras pessoas, que tem força e aptidões e que é, ela própria, uma boa pessoa. A criança toma a si mesma como objeto de amor antes de eleger objetos exteriores. Ao deparar-se com a realidade e a necessidade de aprovação das outras pessoas, porém, deve aceitar que não é perfeita, imortal, intocável, onipotente como acreditava em seu pensamento mágico infantil. É um ser finito, falho, dependente do afeto dos outros para manter elevada sua auto-estima. Necessita aceitar sua finitude e imperfeição, o "ainda-não" e o "não-mais" do ser e, somente com a aceitação de sua finitude, é que o indivíduo encontra saídas sublimatórias para seus conflitos.
A sublimação é considerada por alguns autores, como Fenichel, como um mecanismo de defesa bem sucedido. Considera-se a sublimação como adaptação lógica e ativa das pulsões do id, que harmonizadas com o superego, se satisfazem tanto em proveito do aparelho psíquico quanto das normas que regem o contexto social. O processo de sublimação implica um grau de abandono do objetivo original da pulsão e, portanto, abandonam-se às relações estreitas que a pulsão tinha com a sexualidade. A pulsão, por um processo complicado de transformações, escolhe uma nova finalidade, conciliando, sob o comando do Princípio da Realidade, as exigências do superego com as do id.
Um dos dois princípios que, segundo Freud, regem o funcionamento mental é o Princípio de Prazer que é um princípio econômico na medida em que tem por objetivo evitar o desprazer e proporcionar o prazer, controlando assim a quantidade de excitação. É o caminho escolhido pelo processo primário de pensamento, característico da infância, que está investido narcisicamente e busca a satisfação imediata dos impulsos para evitar o desprazer e a angústia. Os mecanismos de defesa estão diretamente ligados com esse objetivo. Buscam o alívio e, dessa forma, possibilitam o resgate do equilíbrio tão necessário.
A noção de Princípio de Prazer intervém principalmente na teoria psicanalítica de pare com a noção de Princípio de Realidade. De início, as pulsões só procurariam descarregar-se, satisfazer-se pelos caminhos mais curtos. Progressivamente fariam o aprendizado da realidade, a única que lhes permite atingir, através de desvios e adiamentos a satisfação procurada. O Princípio de Realidade, segundo verbete do Vocabulário de Psicanálise, "Forma par com o princípio de prazer, e modifica-o; na medida em que consegue impor-se como princípio regulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos mais curtos, mas faz desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior". O princípio de realidade, portanto, é a condição necessária para que o indivíduo possa amadurecer, aceitar sua condição finita, elaborando e buscando a cada momento uma adaptação mais eficiente à realidade.
É a percepção do não-ser levando o indivíduo para o crescimento e elaboração de conflitos referentes ao ser, para a busca da auto-integração, para o amadurecimento permanente.
Tillich propõe a coragem de ser como superação possível para a ansiedade provocada pela percepção do não-ser. A vida é uma constante afirmação do ser a despeito do não-ser, uma busca corajosa de crescimento, auto-afirmação e cada ato de coragem é uma manifestação do fundamento do ser, não importa quão questionável possa ser o conteúdo do ato. A percepção do não-ser é uma ruptura na crença narcísica infantil e provoca o indivíduo para buscar uma solução para seu conflito intrapsíquico. Seria a coragem uma saída sublimatória? Se o indivíduo percebe-se em sua finitude, incapaz de obter satisfação e tranqüilidade em si mesmo, o ego deve se ocupar de restabelecer seu equilíbrio. Para isso estão disponíveis diversos mecanismos de defesa mas somente se eles estiverem de acordo com o princípio de realidade poderão facilitar a resolução de conflitos. Caso isso não ocorra, a saída é a formação de sintomas neuróticos, como vimos acima. Tillich afirma que a neurose é o meio de evitar o não-ser evitando o ser. Através da neurose, os conflitos intrapsíquicos não encontram resolução, apenas uma "linguagem" diferente para se expressar. É verdade que não se pode mudar a realidade de sermos finitos, de que nosso ser implica em não-ser. Também é verdade que conflitos são inerentes ao ser humano e somente a aceitação de nossas limitações pode oferecer possibilidade de superação, de revelação de nosso poder criador.
Ao nos depararmos com o tema proposto, observamos que as questões existenciais e intrapsíquicas estão intrinsecamente ligadas, de tal forma que não podemos abordá-las de modo dissociado. Também é verdade que outros fatores influenciam, porém nossa reflexão se restringiu aos dois aspectos supra citados. Tanto Paul Tillich quanto a psicanálise conceituam ansiedade e diferenciam da palavra medo na medida em que o medo pode ser associado a um objeto específico o qual pode ser enfrentado ou evitado. O objeto da ansiedade, por outro lado, é a negação de todo objeto e relaciona-se com a percepção de um temor internalizado.
Paul Tillich define a vida como sendo a atualização do ser potencial e em todo processo vital ocorre essa atualização. Distingue três elementos neste processo: auto-identidade, auto-alteração, e volta para si mesmo. A centralidade ocorre em toda forma de vida e o movimento no qual a centralidade se atualiza é chamado de auto-integração da vida. Isso implica na possibilidade de desintegração, o que pode significar a impossibilidade de alcançar e manter a auto-integração. A Coragem é definida como auto-afirmação "a despeito de", a despeito daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar. Oferece a possibilidade para a interpretação do ser-em si que abre a porta do ser e encontra o ser, a negação do ser e a unidade deles. Os três tipos de ansiedade descritos por Tillich, quais sejam a ansiedade do destino e da morte; a ansiedade do vazio e da perda de significação; e a ansiedade de culpa e condenação denotam que a ansiedade é existencial. A ansiedade pertence à existência como tal. É evidente a compreensão da ansiedade no homem segundo sua consciência de ser e de não-ser. É a consciência de sua finitude que o remete para dentro de si mesmo, para a busca de uma integração e uma centralidade.
A psicanálise pode contribuir enquanto método de investigação e tratamento dos efeitos da ansiedade no homem na medida em que esta representa papel essencial no processo de adaptação e equilíbrio do indivíduo. A divisão do aparelho mental desenvolvida por Freud em id, ego e superego permite uma compreensão de diferentes forças e funções psicológicas presentes na psiqué. Tais forças podem ter objetivos incompatíveis, dando origem a um conflito psicológico que tanto pode ser intrapsíquico quanto um conflito entre o organismo e o ambiente externo. O ego deve manter sempre um estado de adaptação interna para o aparelho mental, bem como de adaptação entre o organismo e o meio ambiente, procurando o equilíbrio. A ansiedade é acionada como um sinal de alerta contra qualquer ameaça a este estado de equilíbrio dinâmico.
Tillich afirma que a Coragem é uma realidade ética, que se enraíza em toda extensão da existência humana e basicamente na estrutura do próprio ser. Enquanto um ato humano é um conceito ético e enquanto auto-afirmação de alguém é um conceito ontológico. Onde há não-ser, há finitude e ansiedade, o que equivale dizer que a finitude e a ansiedade são inerentes ao ser-em-si. O ser, limitado pelo não-ser, é finitude que é experimentada a nível humano. O não-ser é experimentado como a ameaça ao ser. A ansiedade existe independente de qualquer objeto especial que a possa provocar e somente a ameaça do não-ser, da finitude pode ocasioná-la. Ao mesmo tempo, propõe a possibilidade que um ser tem de realizar-se contra a resistência de outros seres. No ato da coragem de ser, a potência de ser é efetivada.
É a mesma ansiedade que, segundo a psicanálise, aciona os recursos internos do indivíduo para a resolução de seus conflitos. Perceber-se finito, passível de morte e desagregação destrói a crença infantil que o indivíduo tem a respeito de si mesmo como um ser perfeito. Tillich oferece a coragem de ser como uma possível superação para a ansiedade provocada pela percepção do não-ser. A vida precisa ser uma constante afirmação do ser a despeito do não-ser, uma busca de crescimento, auto-afirmação. Levantamos a questão sobre a coragem enquanto uma saída sublimatória. Se o indivíduo se vê em sua finitude, incapaz de obter satisfação e tranqüilidade em si mesmo, o ego procurará restabelecer seu equilíbrio. Para isso poderá utilizar-se de diversos mecanismos de defesa. Não se pode mudar a realidade de nossa finitude, de que nosso ser implica em não-ser. É por isso que os conflitos são inerentes ao ser humano e necessitamos aceitar nossas limitações para assim seguirmos rumo a uma integração cada vez maior.
Publicado em 01/11/2005 17:02:00
Fonte: Psicopedagogia On Line
Cladismari Zambon de Moraes
cladismari[arroba]hotmail.com
http://geocities.yahoo.com.br/czambon2
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