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As ciências sociais brasileiras no século 20 (página 2)

Simon Schwartzman

 

Principais autores nas ciências sociais do Século XX

Total

Economistas

Sociólogos

C. políticos

Antropólogos

Influência

Mérito

Influência

Mérito

Influência

Mérito

Influência

Mérito

Influência

Mérito

Gilberto Freyre

44,9%

44,9%

28,6%

28,6%

50,0%

50,0%

46.2%

53,9%

66,7%

50,0%

Celso Furtado

42,9%

44,9%

92,9%

85,7%

0,0%

0,0%

53,9%

61,5%

0,0%

0,0%

Raymundo Faoro

34,7%

34,7%

28,6%

35,7%

20,0%

10,0%

38,5%

38,5%

50,0%

50,0%

Sérgio Buarque de Hollanda

34,7%

28,6%

35,7%

35,7%

20,0%

20,0%

53,9%

15,4%

33,3%

50,0%

Victor Nunes Leal

20,4%

24,5%

7,1%

0,0%

20,0%

20,0%

38,5%

46,2%

33,3%

50,0%

Florestan Fernandes

10,2%

20,4%

14,3%

14,3%

20,0%

20,0%

7,7%

23,1%

16,7%

33,3%

Caio Prado Júnior

18,4%

20,4%

28,6%

28,6%

10,0%

10,0%

23,1%

30,8%

0,0%

0,0%

Oliveira Viana

16,3%

16,3%

0,0%

0,0%

10,0%

10,0%

46,2%

23,1%

6,7%

33,3%

Euclides da Cunha

14,3%

14,3%

7,1%

7,1%

0,0%

0,0%

15,4%

15,4%

33,3%

33,3%

Fonte: enquete entre 49 cientistas sociais brasileiros. cad qual indicou até cinco obras mais importantes e cinco mais influentes. Quando não foi feita a distinção, a obra foi considerada importante e influente.

'Brasil real' versus Brasil formal

Os resultados podem parecer óbvios e triviais, mas começam a ficar mais interessantes quando passamos a pensar em como seriam as listas resultantes de pesquisas semelhantes feitas em outros países. É possível que, em outras partes, os autores e livros considerados clássicos fossem os de pretensão conceitual e teórica abrangente, ou que se dedicassem a temas e estudos monográficos específicos. Em outros países, talvez, sobressaíssem biografias, ou textos que tratassem da epopéia ou do destino de comunidades ou grupos sociais, ou da criação de determinadas instituições, como o Estado democrático, as universidades ou as grandes religiões.

Vale mencionar de passagem pesquisa semelhante feita pela International Sociological Association, que apontou como obra sociológica mais importante do século Economia e Sociedade, de Max Weber, um grande painel histórico e conceitual das origens e características das sociedades modernas. Todos os demais autores do topo da lista dessa pesquisa (C. W. Mills, Robert K. Merton, Luckman e Berger, Pierre Bourdieu, Norbert Elias, Jurgen Habermas, Talcott Parsons, E. Goffman) escreveram trabalhos de natureza teórica e conceitual.

Na lista brasileira, o que chama a atenção em quase todos os autores e livros é que eles têm o Brasil como tema - as únicas exceções são os trabalhos mais antigos de Fernandes, de natureza monográfica, e o texto de Cardoso e Falleto, escrito no Chile, tendo a América Latina por oposição ao Brasil.

Os resultados da enquete feita aqui apontam para livros históricos, muitos deles notáveis pelas descrições detalhadas das circunstâncias e dos meios de vida da população em determinadas regiões e períodos, uma fenomenologia cujo valor transcende as eventuais interpretações dos próprios autores, propondo uma nova visão a respeito do 'Brasil real', por oposição ao Brasil formal das leis ou dos preconceitos e das visões importados da Europa pelas elites. Mas, talvez, por isso mesmo, são livros que mostram uma sociedade sem atores, sem iniciativas, no máximo com instituições precárias, e populações vivendo as conseqüências e o peso de seus determinismos. Falta o Brasil utópico, o Brasil em projeto e em construção.

Chama a atenção, também, o fato de que os livros sobrevivem, mas a maior parte das teorias propostas por seus autores são relíquias do passado. Hoje, ninguém fala mais do luso-tropicalismo, do homem cordial ou dos determinismos geográficos e raciais de nossa organização social e política. Não se pensa mais que o Brasil evoluiu de uma sociedade agrária feudal para uma economia capitalista burguesa como a Europa, ou que tenha tido uma 'revolução burguesa'. Não se acredita que a industrialização tenha sido um efeito benéfico da crise de 1929 e ninguém pensa que o sertanejo seja, 'acima de tudo, um forte'.

Ficaram, no entanto, as grandes questões do passado, e alguns encaminhamentos de resposta: a idéia de que a história, a cultura e as instituições são importantes; que não se pode entender o país, simplesmente, pela letra das leis ou pela lógica do interesses em conflito; e a noção de que alguns padrões específicos presentes na formação do país -- os processos de colonização, o inter-relacionamento e os conflitos entre raças e culturas, os padrões e valores associados a nossa antiga 'nobreza' urbana e agrária, os padrões de dependência e subordinação do povo em relação aos poderosos - tiveram conseqüências duradouras que ainda persistem na maneira pela qual o país se organiza e busca se entender.

Consensos e surpresas

A comparação entre as respostas de sociólogos, economistas e cientistas políticos mostra alguns consensos inesperados, bem como algumas diferenças também surpreendentes. Os economistas são unânimes em colocar Celso Furtado em primeiro lugar, mas não incluem nenhum outro nome ou obra de economistas além de Furtado e Prado entre os cinco primeiros em sua lista de preferências -- mas isso pode ser um efeito da amostra peculiar dos profissionais que responderam à enquete, provavelmente mais próximos das outras ciências sociais do que a maioria.

Os economistas ainda preferiram dar relevo a vários nomes da tradição sociológica, começando por Faoro, Buarque de Holanda e Freyre, mas desconhecem alguns dos autores considerados mais importantes para o entendimento da formação do sistema político brasileiro, como Oliveira Viana e Nunes Leal.

Já os sociólogos colocam Freyre em primeiro lugar, mas não encontram lugar para Furtado em suas preferências. Os antropólogos, de forma semelhante, também desconhecem os economistas e concentram suas preferências em Freyre. Os cientistas políticos são os únicos que colocam nomes de outras disciplinas em primeiro lugar (Furtado e Freyre) e mostram um âmbito de interesse mais eclético e multidisciplinar.

A concentração das preferências em autores mais antigos pode ter sido uma conseqüência da restrição que foi feita ao número de autores e obras a serem indicados ou até mesmo a um efeito da idade mais madura de muitos dos respondentes. Vale ressaltar que o que foi pedido era a indicação de obras e não de autores; algumas pessoas, mesmo assim, preferiram ficar em nomes. Na análise dos dados, acabamos também por tratar de autores, fazendo ressaltar assim as contribuições intelectuais que não apareceriam - ou apareceriam menos - se as referências ficassem dispersas entre obras variadas.

Uma outra possível explicação para esse tipo de escolha é que as ciências sociais se expandiram muito nas últimas décadas, e as referências a autores mais recentes ficaram muito dispersas, em função da crescente diversidade de metodologias, perspectivas e orientações. Não há maiores diferenças em função de se as pessoas tiveram sua formação mais alta nos Estados Unidos, na Europa ou no Brasil.

Para que servem os clássicos?

Será que esses livros e autores, de alguma forma, definem o 'cânone' dos cientistas sociais brasileiros, que todos os estudantes deveriam ler para entender em profundidade nossa realidade, para se tornarem herdeiros condignos de nossas melhores tradições? Feita de forma impensada, essa proposta, ao lado dos benefícios óbvios, correria o risco de perpetuar as limitações e insuficiências que caracterizam nossas ciências sociais: a pobreza dos estudos comparados; a pouca reflexão teórica e conceitual; a ênfase talvez excessiva nos aspectos atávicos e peculiares do país, em detrimento dos projetos, dos logros e das conquistas; e a grande dificuldade em entabular diálogos criativos e enriquecedores com outras tradições de trabalho e outros países.

Será então, afinal, que os clássicos servem para alguma coisa? Pela presteza com que a enquete foi respondida, e a pouca dificuldade que tiveram as pessoas em atender ao pedido de no máximo cinco referências em cada categoria, acredito que esses autores continuam bem presentes na mente de nossos cientistas sociais, definindo suas questões e apontando caminhos e descaminhos para a busca de respostas.

Ao contrário do que dizia Robert K. Merton, em seu livro Social Theory and Social Structure (The Free Press, 1949.), citando uma frase famosa de Alfred Whitehead, as ciências que temem esquecer seus fundadores não estão perdidas, mas, ao contrário, podem sempre buscar no passado os temas de diálogo e de renovação.

Outras citações:

Abaixo, está a lista de autores e obras citados duas vezes ou mais vezes como de maior mérito ou influência. A referência, sempre que possível, é da primeira edição.

AZEVEDO, FERNANDO DE. A Cultura Brasileira, Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1943.

CARDOSO, FERNANDO e FALETTO, ENZO. Dependencia y Desarrollo en América Latina, ensayo de interpretación sociológica, México, Siglo Veinteuno editores, 1969.

CARVALHO, JOSÉ MURILO DE. A Construção da Ordem, Rio de Janeiro, Campus, 1980.

CASTRO, EDUARDO VIVEIROS. Araweté, os deuses canibais, Rio de Janeiro, Zahar, 1986.

CUNHA, EUCLIDES. Os Sertões, Rio de Janeiro, Laemmert, 1902.

DAMATTA, ROBERTO. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.

FAORO, RAYMUNDO. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Porto Alegre, Globo, 1958.

FERNANDES, FLORESTAN. A Organização dos Tupinambá, São Paulo, Departamento de Cultura, 1949; A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, São Paulo, Museu Paulista, 1952; A Integração do Negro à Sociedade de Classes, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 1964; A Universidade Brasileira: reforma ou revolução, São Paulo, Alfa-Omega, 1975.

FREYRE, GILBERTO. Casa Grande e Senzala, formação da família brasileira sob o regime de economia patriarca, Rio de Janeiro, Maia e Schimidt, 1933; Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural no Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1936.

FURTADO, CELSO. Formação Econômica do Brasil, São Paulo, Ed. Nacional, 11a ed., 1972; Formação Econômica da América Latina, Rio de Janeiro, Lia, 1969.

HOLANDA, SÉRGIO BUARQUE. Raízes do Brasil, Rio de Janeiro, José Olympio, 1936.

LEAL, VICTOR NUNES. Coronelismo, Enxada e Voto - o município e o regime representativo no Brasil, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1948.

PRADO JÚNIOR, CAIO. Evolução Política do Brasil, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1933; Formação do Brasil Contemporâneo - Colônia, São Paulo, Livraria Martins, 1942; História Econômica do Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1945.

RANGEL, IGNÁCIO. A Inflação Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1978, 3a edição.

SANTOS, WANDERLEY GUILHERME DOS. Cidadania e Justiça, a política social na ordem brasileira, Rio de Janeiro, Campus, 1979.

SCHWARTZMAN, SIMON. São Paulo e o Estado Nacional, São Paulo, Difel, 1975. Bases do Autoritarismo Brasileiro, Rio de Janeiro, Campus, 1981.

SIMONSEN, MÁRIO HENRIQUE. Gradualismo x Tratamento de Choque, Rio de Janeiro, APEC, 1970.

SIMONSEN, ROBERTO. História Econômica do Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1937.

SOUZA, ANTÔNIO CÂNDIDO DE MELLO. Os Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre a crise nos meios de subsistência do caipira paulista. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1954.

TAVARES, MARIA DA CONCEIÇÃO. Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro, Rio de Janeiro, Zahar, 1973.

VIANA, OLIVEIRA. Populações Meridionais do Brasil: história, organização, psicologia. São Paulo, Monteiro Lobato, 1920; Instituições Políticas Brasileiras: os problemas brasileiros da ciência política, Rio de Janeiro, José Olympio, 1949.

Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon



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