Ciência, Universidade e Ideologia: a Política do Conhecimento. Capítulo 5: A crise da universidade

Enviado por Simon Schwartzman


Os ideais da universidade

Vinte anos atrás, a Universidade brasileira tinha problemas, mas os ideais da Universidade pareciam claros: bastava olhar para os países ricos e desenvolvidos, ver como suas universidades acolhiam massas cada vez maiores de estudantes, formavam profissionais competentes para todas as áreas de conhecimento, eram centros de pesquisa e de cultura, e foros de debates e novas idéias. O ensino universitário universal parecia ser a meta óbvia a ser atingida, ainda que dela estivéssemos tão distantes.

Os problemas de nosso sistema de ensino superior, em contraste com esse ideal, pareciam igualmente óbvios e fáceis de diagnosticar, se não de resolver. Havia poucos recursos; professores catedráticos que não se renovavam impediam a melhoria da qualidade do ensino; exames vestibulares seletivos controlavam a entrada dos cursos, elitizando as escolas; alunos e jovens professores tinham pouca ou nenhuma voz ativa nos assuntos universitários; as universidades dividiam-se em escolas isoladas, departamentos estanques que não permitiam o aproveitamento racional de seus recursos; o ensino, em muitas áreas, era dogmático, repetitivo, desligado da realidade, pouco prático. A Universidade precisava urgentemente ser aberta, ampliada, flexibilizada, enriquecida, valorizada, democratizada precisava, enfim, de uma Reforma.

Não importa que muitos desses objetivos fossem contraditórios entre si, ou dificilmente realizáveis na prática, a prazo previsível; o significativo, do ponto de vista dos ideais da Universidade, é que parecia haver consenso a respeito dos grandes objetivos a alcançar.

Um dos principais objetivos, que sempre acompanhou a expansão de educação em todo o mundo, é a função democratizadora da Universidade. Na época moderna, a conquista do direito à educação passou a ser considerada como parte da ampliação do próprio conceito de cidadania, junto com o direito ao voto e a condições mínimas de assistência social, salário e condições adequadas de trabalho. No início, vinculada somente à educação básica ou primária, essa noção foi gradativamente se estendendo a níveis educacionais cada vez mais altos, até atingir a educação superior. De acordo com essa concepção, o sistema educacional, e o sistema universitário em particular, teria a grande função de dar a todos uma oportunidade igual de participação da sociedade, ao mesmo tempo em que seleciona ria os mais qualificados para o exercício das diversas funções profissionais. Esta última função é bem expressa por Darcy Ribeiro, quando diz que "apenas o sistema educacional e, especialmente, a Universidade, cuja função é adestrar quadros poderá conferir legitimidade ao exercício do poder nas sociedades futuras, cujos gestores serão obrigatoriamente diplomados em cursos universitários".(1)

Sempre se soube, naturalmente, que o ensino superior no Brasil era extremamente seletivo, disponível quase exclusivamente para os filhos de famílias ricas que pudessem pagar uma boa educação secundária e tivessem o ócio suficiente para o estudo e a aprendizagem de qualidade. No entanto, essa seletividade era sempre vista como uma deformação possível de ser corrigida. Na medida em que o ensino primário e secundário se expandisse como ensino universal, a Universidade também estaria aberta para todos, estabelecendo um sistema de igualdade de oportunidades onde as únicas diferenças a vigorar seriam aquelas do mérito pessoal.

Além dos ideais de democratização e seleção dos mais aptos, a Universidade cumpriria uma terceira função, a de racionalização da sociedade. A educação universitária universal permitiria eliminar as diferenças entre o culto e o inculto, entre o saber científico e o saber pré-científico. Ela proporcionaria, enfim, a chegada do terceiro estado de evolução positivista da sociedade, o da ciência. Ainda no dizer de Darcy Ribeiro: "A promessa de superar a dicotomia entre a cultura erudita e a cultura vulgar, substituindo-a por uma cultura de base científica", que teria de ser difundida, necessariamente, por "um novo sistema formal de educação".(2)

A Universidade deveria ainda realizar uma série de outros objetivos igualmente nobres. Como centro de cultura e ciência, ela deveria proporcionar, na área das ciências humanas, um pensamento crítico que pudesse dar direção e sentido ao desenvolvimento da sociedade através do tempo; e, na área das ciências naturais, proporcionar os conhecimentos técnicos que permitissem participar com plenitude do mundo tecnologizado que nos espera no futuro próximo. Além disso, a Universidade deveria proporcionar a cada um uma profissão bem remunerada, socialmente prestigiada, e que pudesse utilizar com plenitude o potencial de todos. Na versão moderna dos economistas, a Universidade seria a instituição que dotaria cada um de um capital humano que produziria cada vez mais riquezas, e iria, gradativamente, acabando com as desigualdades e aumentando o desenvolvimento do país.

Na última década, o número de matrículas nas universidades e escolas superiores no Brasil quase decuplicou, a cátedra foi abolida, institutos e departamentos acabaram com as escolas isoladas nas universidades, um amplo sistema de pós-gradua ação foi implantado. Nem por isso parece que a Universidade tenha menos problemas, O número de candidatos que não conseguem entrar nas escolas superiores é maior, proporcionalmente, do que antes; a qualidade média dos alunos caiu assustadoramente; houve uma grande proliferação de cursos de má qualidade, diplomando profissionais de formação cada vez mais tênue para um mercado de trabalho cada vez mais saturado: a pôs-graduação é cara, restritiva, e muitas vezes de qualidade duvidosa; a criação de sistemas de vestibular unificado não igualou efetivamente as oportunidades, ao permitir que os alunos melhor formados oriundos de famílias mais ricas, e educados nas melhores escolas secundárias privadas -escolham as carreiras de maior prestigio das universidades públicas, deixando as escolas pagas, de má qualidade e nas áreas profissionais menos valorizadas para os alunos de origem social mais humilde. E não está claro que as ciências sociais e naturais geradas pelos novos institutos de pesquisa tenham a qualidade e a pertinência que seriam necessários.

Cada um desses problemas, tomado de forma isolada, é passível de um certo grau de correção e melhoria, desde que exista uma aplicação adequada de recursos, vontade política, inteligência e imaginação. Quando vistos em conjunto, no entanto, eles levantam uma questão bem mais profunda: Não estaria havendo algo de fundamentalmente errado em tudo isso? Será que todos esses problemas podem realmente ser enfrentados de forma razoável em um país como o Brasil? Não seria o caso de tentar examinar o sistema de educação universitária como um todo e, quem sabe, rever seus próprios objetivos mais gerais?

Na realidade, esse reexame já vem sendo feito por estudantes, professores, pesquisadores, especialistas em educação, pela sociedade como um todo. Esse reexame não produziu, até hoje, uma visão alternativa para os antigos ideais. Mas tem sido suficiente para enfraquecê-los, a ponto de tornar todo o sistema universitário uma espécie de criatura sem objetivo e conseqüentemente, sem alma. Essa falta de alma, objetivos, motivação, impede, por sua vez, que surja a vontade política que possa enfrentar os problemas crescentes da Universidade. E nesse sentido que a crise é, hoje, muito mais profunda do que 20 anos atrás.

A crise

As explosões estudantis de 1968 nos países ocidentais mais desenvolvidos parecem ter posto a nu, pela primeira vez, a crise do ideal da Universidade. Em Paris, Berkeley, Berlim, Boston, os estudantes saem ás ruas, exigem reformas em suas universidades, fazem demandas políticas, opinam sobre contratação ou demissão de professores, demandam certos tipos de curso e se recusam a seguir outros. A politização dos estudantes, tão conhecida na América Latina, choca professores, pais, educadores e autoridades governamentais, acostumados a ver em suas escolas superiores os lugares tranqüilos e privilegiados onde, sem alarido, se processavam os rituais de formação e seleção meritocrática das futuras elites. Mais chocante, no entanto, e difícil de absorver foi a própria recusa dos estudantes em aceitar, daí por diante em números crescentes, os princípios reguladores da meritocracia universitária. Se a politização, em si, poderia ser vista como um avanço na consciência e responsabilidade social dos estudantes - acentuada, nos Estados Unidos, pela guerra do Vietnã -, a recusa à própria lógica de funcionamento do sistema universitário parecia colocar em questão toda a estrutura em que ele se assentava.

O grande princípio a ser colocado em dúvida foi o da autoridade do professor em relação ao aluno. Em um sistema de mérito, o professor tem a autoridade que lhe dá seus anos de estudo, e os processos de competição e seleção por que passou até o privilégio de ensinar. E essa autoridade que lhe permite escolher e avaliar seus pares, selecionar, aprovar ou reprovar estudantes, e decidir o que estes devem estudar. Ao julgar professores por critérios ideológicos, exigir acesso à Universidade por critérios étnicos, culturais ou econômicos, ao se recusar a aceitar a relação de deferência e respeito que as diferenças de idade e experiência pareciam implicar, todo o edifício da Universidade meritocrática é ameaçado de ruir.

Em sua análise da crise francesa, Michel Crozier acredita que essa contestação do sistema de autoridade e hierarquia não se limitou à Universidade meritocrática, mas foi muito mais geral. "Em todos os setores, em todas as formas de atividade e em todos os tipos de grupo, as relações humanas habituais são postas em questão, Certamente, as atividades de ordem intelectual são as mais atingidas. Mas nenhuma forma de atividade humana, desde as salas de aula até os escritórios administrativos, passando pelas oficinas, cooperativas e conventos, foi poupada por essa grande vaga coletiva de expressão. Barreiras e restrições cederam, na realidade buscou-se, com determinação sistemática, eliminar todas as barreiras e todas as restrições à comunicação." "No mesmo movimento, toda a autoridade se viu automaticamente contestada, e as relações face a face surgiam naturalmente dessa contestação, como se da própria ruptura decorresse necessariamente a dessacralização da autoridade e o engajamento no mundo da palavra."(3)

As explicações para esses eventos tão extraordinários foram muitas, e muitas vezes contraditórias. Vistos na perspectiva de dez anos, os movimentos estudantis de 1968 não parecem ter sido nem o limiar de uma nova revolução, como muitos acreditaram, nem a simples explosão de uma insatisfação passageira, detonada pelas frustrações da guerra nos Estados Unidos, e espalhada depois por efeito de limitação para a Europa.

Essencialmente, a crise de 1968 colocou em tela a contradição crescente entre as características internas dos sistemas universitários, e dos ideais que aparentemente os inspiravam, e a realidade social e econômica mais abrangente. Em um nível psicológico muito básico, as exigências de estudo, dedicação e subordinação pessoal e intelectual entravam em contradição clara com os desejos de participação social imediata e irrestrita de uma juventude criada no conforto e na segurança do pós-guerra. Na França, onde os quadros dirigentes não passavam pela universidade, e sim pelas Grandes Écoles, tornava-se cada vez mais óbvio que a dedicação e o sacrifício que se exigiam dos estudantes não teriam necessariamente compensação na forma de papéis sociais a serem desempenhados mais tarde, e onde os conhecimentos e os modelos de comportamento aprendidos nesse processo pudessem ser efetivamente utilizados (As Grandes Écoles são estabelecimentos de ensino de elite, onde são recrutados os quadros dirigentes da França - a École Politechnique, École Normale, École Nationale d'Administration e outras. Essas escolas não pertencem ao sistema universitário francês, que proporciona uma educação de qualidade geralmente inferior para uma população muito maior).(4) Isso era ainda mais agudo na área das ciências sociais, onde as promessas de um conhecimento científico da sociedade atraíam grandes massas de jovens motivados a uma estrutura de ensino hierarquizada e rígida, liderada por intelectuais cujo prestígio tendia a ser proporcional ao esoterismo de sua produção acadêmica. A mesma contradição ocorria na Alemanha, onde a tradição de um sistema universitário de padrões extremamente rígidos e exigentes era ainda mantida, mas já não proporcionava aos que passavam pelos seus bancos uma posição social e econômica correspondente.(5) Na Europa, como nos Estados Unidos, o trabalho operário qualificado alcançava pouco a pouco a remuneração dos bacharéis e doutores, e havia outras formas mais imediatas e diretas de obter reconhecimento e liderança social na política, nos esportes, por qualquer meio que atraísse a atenção dos meios de comunicação de massas sem a necessidade de passar pelos longos rituais e procedimentos da vida universitária,

A crise de 1968 coincide, finalmente, com a passagem do baby boom pelo sistema universitário. São as crianças nascidas logo no pós-guerra que chegam à idade adulta, e trazem consigo toda uma ampliação dos sistemas de ensino e uma abertura de oportunidade de trabalho que seus irmãos mais jovens já não encontrariam, após 1968, os empregos se tornam mais difíceis, os salários mais baixos, a competição por lugares de trabalho nas universidades mais acirrada. Ao contrário do que se presumia até então, começa a ficar claro para muitos que a educação universitária pode ser pouco rendosa, intelectualmente frustrante, pessoalmente extenuante. Na Universidade norte-americana surge a figura até então desconhecida dos drop-outs, enquanto o número de inscritos anualmente nas universidades começa a decair. Era o fim de uma era de otimismo, expansão continua das oportunidades educacionais, e crenças no futuro inevitável da meritocracia.

O Brasil também teve sua crise estudantil em 1968, mas, ao contrário da Europa e Estados Unidos, ela não surpreendeu ninguém. As universidades e escolas superiores na América Latina nunca chegaram a se constituir em sistemas meritocráticos tão bem caracterizados quanto os dos países mais adiantados, e têm uma longa tradição de politização estudantil. Existe um traço comum entre a experiência universitária latino-americana e a dos países desenvolvidos, que é a da crescente falta de correspondência entre o que é ensinado e exigido dentro da Universidade e as realidades da vida do trabalho. Mas há uma vantagem de renda e prestígio social que a Universidade proporciona. O estudante latino-americano pode não estudar, mas a figura do drop-out não ocorre. Como veremos adiante, o prestígio e a renda proporcionados pelo nível universitário na América Latina têm menos a ver com o conteúdo específico dos ensinamentos obtidos nas universidades do que com a força que os diversos grupos profissionais, principalmente nas carreiras mais clássicas, têm em manter seus níveis de renda e assegurar monopólios de trabalho para as suas respectivas corporações de médicos, engenheiros, advogados, odontólogos etc. Essa força, por sua vez, é mantida graças ao número relativamente pequeno de profissionais nas diversas áreas, e à posição socialmente privilegiada de suas famílias de origem, que lhes dão o amparo econômico e político necessários.

São essas vantagens econômicas e sociais que fazem da carreira universitária um objetivo tão universalmente desejado. É sabido que a grande maioria dos estudantes brasileiros em nível primário e secundário aspiram á Universidade, e isso independentemente de suas possibilidades reais de ingresso através dos exames vestibulares, ou de seus recursos para financiar uma vida de estudos.(6) A miragem dos cursos universitários faz fracassarem os cursos secundários de tipo profissionalizante (ainda que existam, certamente, outras causas), e lança milhares de estudantes em uma maratona de estudos onde todo o conteúdo substantivo da educação é abandonado em função das exigências ritualizadas dos vestibulares.

Tradicionalmente, a vida política nas universidades latino-americanas tem sido uma forma de antecipação e preparação para lideranças políticas nos respectivos países. É nas escolas de direito que se exercitam os tribunos que mais tarde formarão as lideranças dos partidos, são nas associações estudantís e nas diversas formas de co-gobierno que, desde a Reforma Universitária de Córdoba de 1916, os estudantes se preparam para o exercício do poder.(7) A diferença entre essa experiência tradicional de participação política e as mais recentes, que começam no Brasil no final da década de 1950 e culminam nas grandes manifestações de 1968, é que o número de estudantes agora é maior, a origem social é muito mais diversificada, e as posições de liderança estão, em grande parte, ocupadas. É por isso que a politização estudantil assume um tom revolucionário e intransigente que até então não era tão presente. Além disso, existe um sentido de urgência: a vida estudantil dura só uns, poucos anos, e as promessas para depois de formado, que atraíram os estudantes para as universidades, parecem miragens cada vez mais inatingíveis para a grande maioria. Ao contrário de muitos estudantes europeus e norte-americanos, que descobriram que a carreira universitária era, para eles, um falso privilégio, o estudante Latino americano reage porque os direitos derivados de seu privilégio, que lhes parecem óbvios, não são reconhecidos e correspondidos.

É essa posição privilegiada dos universitários latino-americanos que faz com que os problemas do sistema de ensino superior sejam percebidos em nossos países como meramente técnicos, administrativos, financeiros ou mesmo políticos, mas raramente como problemas relativos à própria concepção e objetivos da educação e da universidade. No entanto, a experiência hoje vivida pelos países mais desenvolvidos nos faz temer que estejamos buscando um objetivo inatingível, que todo o esforço de aperfeiçoamento do sistema universitário nos esteja conduzindo, na melhor das hipóteses, aos problemas das universidades nos países mais maduros. Uma atitude possível em relação a isso é considerar que esses problemas são um luxo que ainda não temos condições de enfrentar uma postura semelhante a quem declarara, em outro contexto, que "a poluição é nossa". A outra é tratar de prever os rumos que as coisas poderão tomar, e tratar de rever os objetivos e alternativas para o futuro, utilizando-se, para isso, da experiência de quem já enfrenta, hoje, estes problemas. Isso é tão mais importante porque, com toda a probabilidade, o desenvolvimento do sistema universitário em um país como o Brasil não será similar ao já ocorrido nos países desenvolvidos; assim como nas demais áreas, os países subdesenvolvidos de hoje não são como os países desenvolvidos de ontem, mas uma realidade própria, que funde várias épocas históricas e etapas distintas de desenvolvimento em uma realidade inédita.

Vale a pena, assim, aprofundarmo-nos no diagnóstico da crise.

 


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