O Xamanismo como Consciência Histórica
Os Capitães principais não somente evitavam falar comigo sobre o xamanismo mas também o censuravam e ridicularizavam na presença de outros Waimiri-Atroari. O motivo desta censura faz mais sentido ao se levar em consideração o papel fundamental dos ritos xamanísticos para veicular acusações de feitiçaria na sociedade Waimiri-Atroari. As sessões xamanísticas foram, inclusive, o palco principal da interpretação indígena das epidemias como feitiçaria branca.
Além de se referirem a espíritos individualizados pela palavra 'akaha [53], os Waimiri-Atroari referiam-se aos espíritos, de forma coletiva, como ka'raiwa [54], usando esses termos para abranger as almas tanto de mortos quanto de vivos, espíritos sobrenaturais de forma humana que habitam a floresta e seres que apareciam em sonhos.
Presenciei numa aldeia no vale do rio Camanaú e nos aldeamentos Maré e Xerí várias sessões xamanísticas em que os xamãs evocavam ka'raiwa.
O xamã entrava na margem da floresta com arco e flechas na mão somente em noites sem lua quando era impossível enxergar os espíritos. Durante o rito, permanecia no escuro da floresta onde ninguém mais penetrava à noite, enquanto as pessoas que participavam como assistentes, dirigindo perguntas aos ka'raiwa, ficavam afastadas, à beira da roça. Salientavam o perigo de avançar até perto do local de onde o xamã falava, dizendo que os ka'raiwa eram muito bravos e poderiam matar com flechas. Em algumas ocasiões o xamã encenava brigas entre os ka'raiwa, que gritavam e gemiam após serem flechados.
O xamã mudava de posição durante o rito, de maneira que as vozes soavam de locais diversos, primeiro de um lado, depois de outro; uma vez de longe, outra de perto, outra de longe novamente. Ouvia-se a voz do xamã, de quando em quando, dirigindo perguntas aos ka'raiwa. Às vezes, ele mediava a fala entre os assistentes e os ka'raiwa. As vozes dos ka'raiwa que respondiam vinham e voltavam, identificando-se como velhos, jovens e crianças de ambos os sexos, substituindo-se abruptamente, os mesmos reaparecendo freqüentemente.
A assistência identificava os ka'raiwa, referindo-se a eles por apelidos e chamandoos por termos de parentesco. Pedia-lhes conselhos e conversava com eles, induzindo-os a tratar de assuntos do interesse atual da comunidade e a tomar atitudes com relação a eles.
Os assistentes e os ka'raiwa participavam, assim, de um diálogo que mediava as posturas diversas dos participantes quanto a situações discutidas, sobretudo as que encaravam como crises. Quando os ka'raiwa manifestavam ira, os assistentes às vezes pediam que voltassem para o lugar de onde vieram.
O ambiente era geralmente descontraído. Brincavam com os ka'raiwa, rindo e provocando-os e apontando-lhes um papel para desempenhar. As vozes dos ka'raiwa seguiam as alusões e insinuações dos assistentes, freqüentemente, quebrando o discurso com cantos e focalizando os assuntos de múltiplas maneiras como, por exemplo, expressões de raiva e brincadeiras. Às vezes, as vozes dos ka'raiwa transferiam o diálogo entre eles e os assistentes para um diálogo entre os ka'raiwa, para modelá-lo e depois devolvê-lo aos assistentes, sempre sondando as opiniões destes com perspicácia.
Em diversas ocasiões, Waimiri-Atroari que assistiam comentavam-me a respeito do espírito que estava falando: às vezes as vozes eram de espíritos de velhos (taha'kome 'jakaha), inclusive líderes antigos falecidos nas epidemias; às vezes, eram vozes de espíritos de Waimiri-Atroari que habitavam outros aldeamentos da FAWA, identificados por apelidos; outras vezes eram de espíritos de Waimiri-Atroari que moravam em aldeias distantes [55], acrescentando que no escuro da noite havia muitos [56]. Certa vez, os assistentes informaram-me que era até o espírito da minha irmã que estava falando e indicavam o que eu devia responder. Os ka'raiwa pediam comida ou mingau e, quando os assistentes o traziam, o xamã aproximava-se deles para apanhar a panela e levá-la para o escuro, devolvendo-a vazia e comunicando os comentários dos ka'raiwa quanto ao alimento consumido.
Tanto Dalmo como Dario censuravam veementemente estes ritos xamanísticos de consulta aos ka'raiwa. As únicas ocasiões em que presenciei um xamã que residia no aldeamento Xerí praticar os ritos foram quando o Capitão Dario não estava presente.
Considerando que estes ritos eram o veículo principal para a expressão de rivalidade intergrupal, não é surpreendente a censura dos jovens Capitães. Uma das suas incumbências era de proibir a manifestação de conflitos entre os Waimiri-Atroari e propagar entre eles uma visão indigenista na qual deviam ser "índios unidos", obedientes cumpridores de ordens no programa de trabalho dirigido da FUNAI e que não deviam afastar-se do aldeamento sem autorização.
Nos primeiros anos em que os Waimiri-Atroari estavam morando nos aldeamentos, contendas entre facções resultavam na cisão e afastamento de grupos. Repetidas vezes, os Chefes de Posto enviavam os Capitães ou outros Waimiri-Atroari delegados por estes com a missão de trazer de volta os grupos que se afastavam, a fim de participar do programa de trabalho da FAWA. A nível de relações entre os Waimiri-Atroari e servidores, a FUNAI conseguia, assim, através do poder outorgado aos Capitães, impor este modelo de "índio" genérico, deculturado e tutelado. Contudo, o surgimento constante de desavenças em todos os aldeamentos e o afastamento de facções levou os Coordenadores a adotar outra estratégia: deixar que as cisões acontecessem para logo instalar um novo Posto Indígena com funcionários junto ao aldeamento novo, subordinando-o à FAWA através de ordens transmitidas pelo Capitão principal.
Segundo os Waimiri-Atroari, no passado havia muitos xamãs que evocavam ka'raiwa, mas a maioria faleceu nas epidemias. Os sobreviventes de muitas aldeias perderam os xamãs que atuavam entre seus grupos locais e não davam crédito aos que eram de facções rivais. Os jovens Waimiri-Atroari que seguiam o estilo de vida dos funcionários da FAWA parodiavam as sessões xamanísticas e afirmavam que só os velhos sabiam. Ao falar comigo, Dalmo referia-se a elas em português como "brincando", "brincadeiras" e "besteira de velho", expressões que os servidores da FAWA usavam para desprezar os ritos Waimiri-Atroari. Porém, apesar de censurarem as sessões xamanísticas, Dalmo e Dario certa vez mostraram muito interesse em ouvir a gravação de uma sessão no aldeamento do Posto Indígena Maré, pedindo-a emprestada para ouvir à noite sem a minha presença.
O surgimento de vozes de espíritos de brancos nas sessões xamanísticas, associado à experiência das epidemias e dos conflitos com a sociedade nacional, precipitou uma forma de consciência histórica. Na sua luta para sobreviver aos massacres e à contaminação que acompanhava o contato interétnico, os xamãs interpretavam as mortes por epidemias como agressões de espíritos brancos que os "flechavam" com veneno (maxi ou maxki). Nos diálogos em sessões xamanísticas entre espíritos de brancos e velhos líderes Waimiri- Atroari vivos e recém-falecidos, os conflitos interétnicos eram traduzidos na forma de agressões verbais por parte desses espíritos. Ao declarar sua responsabilidade por haverem "flechado" os Waimiri-Atroari com veneno, os espíritos de brancos legitimavam a crença indígena em ataques sobrenaturais dos "civilizados", e levavam-nos a responder com incursões aos Postos Indígenas da FAWA.
Isso ficou-me mais claro na única ocasião em que ouvi um desafio enraivecido dirigido a um Chefe de Posto da FUNAI, atitude abertamente contrária ao sistema de sujeição generalizada imposto pela FAWA. Foi numa sessão xamanística. A voz furiosa de um homem idoso soou do escuro, acompanhada pelo estampido de mãos batendo no peito ao exprimir ira e o ruído de flechas chocando-se contra arco, gritando invectivas dirigidas contra o então Chefe de Posto, Ricardo, e exigindo a sua eliminação [57].
Um menino que estava assistindo murmurou para mim: "Bravo! O velho está bravo!" [58]. Alguns dos jovens, inclusive o Capitão nomeado por Ricardo, interromperam a voz, defendendo o funcionário da FUNAI veementemente contra o desabafo de cólera:
A forte censura que os Capitães nomeados pela FAWA exprimiam contra o xamanismo revela o papel-chave deste meio de expressão nas tentativas dos Waimiri- Atroari de encontrar sentido na tragédia que os acometeu em conseqüência da invasão e ocupação do seu território pelos brancos. Foi assim, nas sessões xamanísticas que se desenvolveu uma linguagem de resistência aos ataques dos espíritos brancos e foi nelas que se fundamentaram os ataques contra os Postos Indígenas em 1973-74. Naquela época, os líderes ainda vivos e as vozes dos espíritos dos recém-falecidos veiculadas pelo xamã canalizaram a perplexidade, o terror e a indignação dos Waimiri-Atroari ao ver sua sociedade desabar com uma nova irrupção dos brancos.
As sessões xamânicas adquiriram, assim, um novo papel frente à invasão branca que assumiu magnitude sem precedentes, a partir da construção da BR-174 e das ondas de epidemias que ela trouxe a seu território. Foi através dessas sessões que os Waimiri-Atroari chegaram a um consenso quanto à ação a ser tomada nessa situação de crise; nelas os poucos sobreviventes das epidemias da "pacificação" decidiram recorrer à guerra na ânsia de expulsar os responsáveis por sua dizimação.
* O impacto da "pacificação", no contexto da invasão violenta e maciça que brutalmente transtornou as suas vidas, foi compreendido pelos Waimiri-Atroari através de formas culturais ininteligíveis aos servidores da FAWA, empenhados que estavam em impingir o seu modelo oficial da história do contato em termos de um imaginário colonial habitado por "índios bravos".
Nessa incomunicabilidade de interpretações, a história traumática da "pacificação" surge como "evento fundador" (vide Ricoeur) da conjuntura interétnica atual para cada protagonista, revelando o caráter estratégico da construção da história na situação de contato. Para os Waimiri-Atroari, essa construção representa o fundamento de sua continuidade cultural; para a FAWA é mais um instrumento de sujeição e deculturação.
1] Este trabalho foi aceito para publicação na coletânea "Imagens do Branco na História Indígena: Simbólica do Contato e Resistência Cultural no Norte Amazônico", organizada por Bruce Albert e Alcida Rita Ramos.
Entregue em 06.10.88, versão revisada e atualizada entregue em abril de 1991.
2] Neste trabalho uso a transcrição que os Waimiri-Atroari estão usando, atualmente, sob a orientação do Progama Waimiri-Atroari (FUNAI/ELETRONORTE), com pequenas modificações. O símbolo ' marca o acento.
y = vocóide central, alto fechado, não-arredondado, sonoro.
j = semivocóide, palatal, sonoro.
x = contóide, fricativo, côncavo, alveopalatal, surdo.
? = contóide, oclusivo, glotal, surdo.
tx = africado, alveopalatal, surdo.
3] A história de massacres é documentada a partir de meados do século passado (Barbosa Rodrigues, 1885; Payer, 1906; Hübner & Koch-Grünberg, 1907; Bandeira, 1926; nos Relatórios da Província do Amazonas, e nos relatórios do S.P.I. e da FUNAI). Um massacre nas aldeias do rio Jauaperí em 1856, realizado pelo major Manoel Pereira de Vasconcellos e 50 guardas nacionais, marcou o início de 30 anos de luta e expedições militares. Barbosa Rodrigues estabeleceu contatos não bélicos e fundou um aldeamento em 1885. Conflitos posteriores incluem o envio de 50 soldados de polícia em 1905, que mataram 283 indígenas, levando 18 presos.
4] Estimativas da população Waimiri-Atroari no passado variam muito. Seu território era muito mais extenso, abrangendo as bacias dos rios Jauaperí e Uatumã, em que desembocam, respectivamente, o rio Alalaú e o Igarapé Santo Antônio do Abonari. Na segunda metade do século passado, Barbosa Rodrigues (1885:149; 241) estimou a população indígena do vale do rio Jauaperí, atualmente despovoado de índios, em 2.000 pessoas. Discuto abaixo (pág. 24) as estimativas da população Waimiri-Atroari.
5] A partir de 1979, empresas mineradoras subsidiárias do Grupo Paranapanema invadiram a Reserva Indígena. Em 1981, a Reserva foi desfeita através de um Decreto Presidencial e redefinida como "área temporariamente interditada", desmembrando cerca de um terço da Reserva original. A parte desmembrada foi aquela invadida pela Paranapanema (Baines, 1990; 1988:143-151).
6] Em 1981, uma área de aproximadamente 10.344,90 km2, encravada na área indígena, foi decretada de utilidade pública para a formação do reservatório da Usina Hidrelétrica de Balbina (Baines, 1988:158).
7] O Sertanista da FUNAI, Gilberto Pinto Figueiredo Costa, chefiou a "Frente de Atração Waimiri-Atroari" (FAWA) de 1970 até sua morte no ataque contra o Posto Indígena Abonari, em dezembro de 1974. Um plano de "atração" fora implementado em 1968, chefiado pelo padre Calleri, com sua equipe da Prelazia de Roraima, visando afastar os Waimiri-Atroari da trajetória da estrada BR-174 e aldeá-los nas cabeceiras do rio Alalaú.
Após a eliminação daquela equipe por um ataque indígena no final de 1968, o Delegado Regional da FUNAI, numa "Proposta de Convênio" ao DNER (29-04-70), manifesta seu plano de persistir a "... atrair e, sendo possível, deslocar esses índios ainda bravios da região cortada pela mencionada estrada". Em 1970, o Sertanista Gilberto Costa retomou os trabalhos de "atração", com a recuperação do Posto Indígena Camanaú e a criação de outros Postos: no rio Alalaú em 1971, o Sub-Posto Alalaú (destruído duas vezes pelos Waimiri- Atroari, posteriormente) e o de Abonari em 1972. O Sertanista especificou que a FAWA "tem como principal objetivo realizar a atração dos grupos indígenas Waimiri-Atroari (...) acelerando seu processo de integração na sociedade nacional, assim como realizar trabalhos de apoio aos serviços da estrada (...) BR-174" (Relatório da FAWA, de 27-10-73).
8] Por "aldeamentos", refiro-me aos conjuntos de moradias Waimiri-Atroari e Postos Indígenas da FUNAI construídos sob a direção de funcionários da FUNAI, em distinção a "aldeias" construídas pelos Waimiri- Atroari sem a direção dos servidores.
9] Decreto No.94.606 de 14-07-87. Conforme informações divulgadas pelo Programa Waimiri-Atroari (Convênio FUNAI-ELETRONORTE), a área demarcada é de 2.585.911 hectares, homologada através do Decreto No.97.837, de 16-06-89.
10] A homologação da área em si não garante as terras indígenas, considerando que empresas mineradoras do Grupo Paranapanema estão aliciando alguns Waimiri-Atroari a assinar Termos de Compromisso que permitem o avanço da empresa mineradora sobre o território indígena em troca de royalties, com a conivência de alguns funcionários da FUNAI. Começando com um "Termo de Compromisso" assinado em 26.08.86, seguem, entre outros documentos, uma "Declaração" de 15.05.87, e o "Termo de Compromisso Nº.001/89" de terço da população total.
11] Relatório da Frente de Atração Waimiri-Atroari, de 27-10-73, apresentado pelo Sertanista Gilberto Pinto Figueiredo Costa, Chefe da FAWA, p.XVIII.
12] Na época em que iniciei minha pesquisa de campo, este cargo já era institucionalizado na FAWA. Os "Capitães" eram, sobretudo, jovens recrutados pelos servidores a fim de servir como transmissores de ordens da equipe da FUNAI para os demais Waimiri-Atroari em troca de privilégios como acesso desigual a bens manufaturados, controle sobre a distribuição de alimentos nos aldeamentos e dos bens obtidos em troca da produção comercial dos aldeamentos, e prestígio concedido pelos funcionários que os colocavam como subdominadores entre a equipe da FUNAI e os outros Waimiri-Atroari. Os funcionários tratavam os Capitães como superiores aos outros Waimiri-Atroari, instigando-os a assumir esta postura.
13] Ver, por exemplo, "Mistérios de um Século envolvem massacres dos Waimiri-Atroari", Informativo FUNAI, Nºs. 15/16 - III e IV trimestre de 1975, fev./76.
14] Os "funcionários índios" da FAWA eram recrutados pela FUNAI de outros grupos étnicos, sobretudo do Alto Rio Negro e Baixo Amazonas, sendo incorporados na hierarquia burocrática da FAWA, principalmente, como servidores auxiliares (braçais). Conforme um relatório do coordenador da FAWA, Giuseppe Cravero, índios que "não sabem", tinham que ser "ensinados". Além de coagir os Waimiri-Atroari a se conformar aos seus padrões de "índios civilizados", os funcionários índios se encarregavam de "lhes ensinar" tudo a respeito da sua nova identidade, através de uma revisão da oposição "índio"/"branco" de sua classificação interétnica.
15] Neste trabalho uso pseudônimos para os Waimiri-Atroari, funcionários braçais e Chefes de Postos Indígenas, para conservação de seu anonimato. No caso de Coordenadores e funcionários de nível maior, uso seus nomes, tendo em vista que tenho que citar documentos assinados por eles.
16] A expressão "arma mesmo", usada por Dalmo ao se referir à espingarda, era muito usada na FAWA pelos jovens Waimiri-Atroari para depreciar o uso do arco e flecha.
17] (59 em julho de 1983, ano em que a população Waimiri-Atroari era aproximadamente 332).
Documentos da FUNAI revelam que a FAWA seguia uma política consistente de manter uma alta densidade de servidores, sobretudo após os conflitos de 1973 e 1974 durante a construção da estrada BR-174. Um relatório do Coordenador da FAWA, datado de 07-08-77, revela que houve até 110 funcionários na área.
Além disso, nesta época, o Exército desempenhou um papel decisivo na política indigenista (Baines, 1988:98- 105).
18] O relatório "Análise de Servidores Lotados no NAWA (Núcleo de Apoio Waimiri-Atroari) em 08-07- 79", do Coordenador Giuseppe Cravero, 09-07-79, FUNAI, revela que 68% dos servidores eram provenientes de "várias áreas indígenas `aculturadas'". Segundo este Coordenador, dos funcionários "índios", havia 29 do Rio Negro, 29 do Baixo Amazonas, 3 do Rio Purus e 7 de outras áreas.
19] No relatório citado (de 09.07.79), este Coordenador propôs "Eliminar aos poucos os servidores civilizados preenchendo as vagas com servidores do (Posto Indígena) Laranjal (Baixo Amazonas) e Rio Negro ... Os servidores civilizados deverão simplesmente serem aproveitados para cargos de chefia e funções técnicas especializadas". Alguns destes servidores revelaram que tinham sido lotados na FAWA pelo Delegado Regional da FUNAI como punição.
20] Radiograma No.840, de 09-04-85, do Delegado Regional da FUNAI.
21] O recrutamento de "índios" para impor os interesses da sociedade hegemônica já é evidente nas expedições punitivas de Pedro Favella. Segundo Sousa (1873:181), no ano de 1664, no rio Urubu, adjacente à região atualmente habitada pelos Waimiri-Atroari, Favella massacrou setecentos indígenas, levou quatrocentos prisioneiros e incendiou trezentas aldeias com uma força que saiu de Belém de "quinhentos índios sob as ordens de seus superiores e de quatro companhias de tropas regulares...", ainda recrutando "muitos indígenas domesticados" (Sousa, 1873:182) na viagem. Barbosa Rodrigues (1885:40), no século passado, recrutou "tapuyas" (ao contrário do uso mais comum deste termo para designar "índios primitivos", Barbosa Rodrigues o usa aqui como equivalente a "índio civilizado" ou "caboclo") na sua equipe de pacificação - os regionais das vizinhanças da vila de Moura, inclusive o "índio Pedro", Makuxi - apesar de criticá-los severamente por ser a população que vivia numa situação de conflito interétnico violento com os indígenas do rio Jauaperí. Os situação atual é que, com o surgimento do movimento indígena, evocado por Ramos, os "funcionários índios" da FAWA apelavam para a retórica indigenista gerada por esse movimento a fim de ocultar sua manipulação de identidades étnicas e sua dominação dos Waimiri-Atroari, apresentando-se para os brancos como as pessoas mais adequadas para trabalhar junto aos índios Waimiri-Atroari por serem "índios também".
22] Relatório da Frente de Atração Waimiri-Atroari, de 27-10-73, FUNAI, v., vi.
23] Aqui, Djacir inseriu a palavra Waimiri-Atroari, maxki. Os Waimiri-Atroari traduziam maxki ou maxi como "veneno, (feitiço)", provocando a morte rápida de muitas pessoas simultaneamente, como aquela provocada por maxi, um veneno vegetal que mata peixes.
24] Ka?amin'ja aita'kahapa. Maxki. Ka?amin'ja jintxi'kwahapa, maxki.
25] Djacir se referia aqui aos conflitos nas aldeias, entre os Waimiri-Atroari que sobreviveram as primeiras epidemias grandes, agravados ainda mais pela falta de mulheres.
26] "Maru'agata, ky'tahapa. Ki?in'ja 'wapy. Ka?amin'ja ja 'jakaha. Tu'nerkia. A'baba jeb'myhyba".
A palavra Waimiri-Atroari 'akaha (precedida por "j" após os vogais) tem uma conotação parecida com "espírito" ou "alma", embora não necessariamente de pessoas falecidas. Ela inclui o sentido de representação mental de pessoas vivas ou mortas. Inclui também conceitos como "sombra", "imagem", "fotografia", "desenho", "duplo", "coisa idêntica", "representação", "elemento espiritual da pessoa".
27] "Tu'wamata ka?amin'ja 'jakaha. Ka?amin'ja ba'kahapa. 'Jetyba, maxki, 'kamtxa. Ka?amin'ja 'wapy muru'agata. Taha'kome ba'kahapa, ka?amin'ja ja ja'kahapa. Taha'kome ba'kahapa. Ka?amin'ja 'jyhypa. A'baba ja'tyhypa. Jeb'myhypa. Kir'kwahapa. Pa'naty bija'tyhypa 'wapy. Tu'wamata ka?amin'ja 'wapy maru'agata".
Traduzo a palavra Waimiri-Atroari, 'kamtxa como "dores no corpo". Foi usada com referência às dores no corpo associadas ao maxki ou maxi ("veneno"), lançado pelos espíritos dos civilizados.
28] "Mauro 'baba ma'ny jeb'myhyba. Mauro 'pyty 'mimi jeb'myhyba. Ka?amin'ja aita'kahapa. Pa'naty ki?inja 'wapy. 'Mydy 'wapy i?ba'tyhypa. Kamtxai'ja. Naha'txahapa ... Ki?in'ja ji?ba'tyhypa pa'naty, tu'wamata".
29] "Tawija'ta wa'ny. Tu'wamata 'wapy. 'Sakana ka?amin'ja. Ki?in'ja ba'ken. Tu'wamata 'nobija ka?amin'ja".
30] "Ki?in'ja bata'hukaba, ka?amin'ja jar'mahapa ma'nata." 31] "'Kamtxa ja'brimy. Ka?amin'ja 'kamtxa ja'brimy".
32] "Awo ty'nerkijaba. 'Sakana ka?amin'ja. Tu'wamata ka?amin'ja 'nobija ta'kejaba. Ka?amin'ja kyb'kwejaba, jakta'kejaba maxki, kam'txaki, maxki".
33] Ver a descrição da distribuição de aldeias Tiriyó por Rivière (1969, 1970) e, para a sociedade Akawaio, por Butt Colson (1966), outros grupos indígenas da família lingüística Carib, bastante semelhante à distribuição de aldeias Waimiri-Atroari. Ver também a descrição de Albert (1988) para os Yanomam, igualmente da região do maciço güianense.
34] 'aska com prefixo possessivo para a 1ª. pessoa.
35] Os Waimiri-Atroari não fazem uma distinção rígida entre laços de parentesco cognáticos e laços de coresidência, para definir a inclusão na categoria a'jaska, como observa Rivière também no caso dos Tiriyó (1969:65).
36] baixi'ra com prefixo possessivo para a 1ª. pessoa.
37] Ofício do Encarregado do Posto Indígena do Jauapery, Luís José da Silva, datado de 31-12-1928, dirigido ao Inspetor do S.P.I. no Amazonas e Território da Acre, Dr. Bentos Pereira de Lemos.
38] "'Jetyba. Ka?amin'ja txi'kwahapa".
39] Segundo depoimentos de funcionários da FUNAI, após passar um período no Posto Terraplenagem, Dalmo se recusou a voltar à aldeia quando outros Waimiri-Atroari vieram buscá-lo. Dalmo afirmou que, depois da morte da mãe, havia uma desavença na aldeia onde morava entre ele e dois homens Waimiri- Atroari, relacionada ao fato que ele casara com a mulher de outro homem.
40] Revista de Atualidade Indígena, Ano II, no. 11, jul/ago 1978, p.15.
41] Relatório: "Depoimento do Mateiro Álvaro Paulo da Silva" do Sertanista João Américo Peret para o Presidente da FUNAI, 14-01-1969.
42] Os dois Capitães principais preferiam falar em português a usar sua própria língua. Freqüentemente usavam português para transmitir as ordens de trabalho dos servidores para os outros Waimiri-Atroari, às vezes repetindo-as na sua própria língua para os Waimiri-Atroari que não entendiam português.
43] Os funcionários da FAWA que conheceram este "Comprido" (o apelido foi dado também a outro Waimiri-Atroari que mora num aldeamento do vale do rio Camanaú), apesar de censurá-lo fortemente ao "culpá-lo" pelos ataques contra os funcionários em 1973 e 1974, reconheciam que tinha autoridade. A importância que os Waimiri-Atroari davam a Comprido sugere que ele era um líder local que havia atingido uma proeminência política intercomunitária quando muitos líderes mais idosos faleceram, e numa situação anormal de hostilidades em que, segundo Rivière (1977:40), seria característica de sociedades Carib os grupos locais se submeterem a uma autoridade temporária mais abrangente.
44] O local no rio Alalaú onde um dos principais caminhos dos Waimiri-Atroari cruzava o curso deste rio.
45] Segundo depoimentos de servidores antigos da FAWA, após os ataques aos Postos Indígenas da FUNAI, as equipes que vieram resgatar os corpos soltaram bombas de gás lacrimogêneo no Posto Alalaú II, em 1973. No resgate dos corpos da Expedição Calleri, em 1968, também houve uso de foguetes. Em 1974, o Generalde- Brigada Gentil Nogueira Paes, Comandante do 2º. Grupamento de Engenharia de Construção (Of. no. 042- E2-CONF, de 21-11-74, a respeito do trabalho de construção da BR-174, dirigido ao Comandante do 6º. BEC), recomenda o uso de foguetes e bombas de tipo "junino", além de demonstrações de força.
46] O Capitão Adriano do aldeamento Waimiri-Atroari Taquari comentou: "Peruano (sinônimo pejorativo para "civilizado" na linguagem dos servidores da FAWA) muito bravo ('sakana 'wapy). Avião pa! pa! aqui. Peruano brigou, lá em outra aldeia (ky'nahapa, 'amba mydyta'ka). Depois matar peruano". Eu não soube como interpretar sua fala: se era relato de um bombardeio aéreo, ou se ele estava me devolvendo, por eu ser designado "branco", a fala de alguns servidores "índios", que, para reforçar o conceito pejorativo de "branco" em oposição a "índio", apresentavam aos Waimiri-Atroari um discurso de "índio" para "índio" contra "branco", acusando os "brancos" de terem bombardeado aldeias.
47] Os Waimiri-Atroari referem-se, por este termo geral, a seus rituais coletivos em que dançam e cantam e em que participam habitantes de várias aldeias. Dalmo não entrou em detalhes sobre quais rituais estavam acontecendo naquela ocasião.
48] Através de feitiços.
49] O primeiro Posto Alalaú II foi instalado em 1972, na margem direita do rio Alalaú, a jusante da atual ponte da estrada BR-174. Foi atacado e destruído em janeiro de 1973 por Waimiri-Atroari. Outro Posto foi instalado para substitui-lo na margem esquerda, a montante da atual ponte, e destruído em outubro de 1974 por Waimiri-Atroari. Conforme o Relatório do Sertanista Gilberto Costa, de 01.11.74, "o Capitão Comprido e o seu grupo é o que mais freqüenta o Alalaú II e o acampamento da empresa LASA (de topografia na construção da estrada BR-174)" (pág. XIII).
50] Zauger (1980:81, 82) descreve uma situação semelhante, quando o território dos Winnebago, nos Estados Unidos, estava sendo invadido e ocupado por garimpeiros. Os invasores culparam o líder "Red Bird" pela resistência indígena. Focalizaram seu ressentimento nele, porque o conheciam, e lhe atribuíram um papel de liderança que estava além do que desempenhava, culpando-o como "instigador" da "revolta".
51] Diversos funcionários da FAWA contaram-me que Dalmo e Dario mataram Comprido, amarrando-o com cipó quando ele estava muito doente, o que era costume Waimiri-Atroari para dispor de pessoas consideradas moribundas. Contudo, os Waimiri-Atroari nunca mencionaram esta versão da morte de Comprido. Os Capitães adotavam a postura dos servidores, que exigia a eliminação de Comprido, aprovando, senão instigando-os a matá-lo. Viam-no como empecilho aos seus objetivos de sedentarizar os Waimiri-Atroari e viam sua morte como um ato grato que os liberara da possibilidade de mais mortes entre os funcionários da FUNAI. Simultaneamente, os Capitães assumiram a postura dos servidores que fortemente os censurava por tirar a vida de uma pessoa.
52] Em 1985, o falecido líder Comprido, visto no passado pelos funcionários da FAWA como uma ameaça às suas vidas que tinha que ser eliminado, foi reconstruído, verbalmente, como herói por certos servidores que apelavam para um discurso indigenista. Representavam-no como um dos últimos líderes que resistiram à invasão das terras dos "índios" pelos "brancos" que "não prestam". Nessa época, ouvi Dalmo dizer que foi Comprido que havia mandado os Waimiri-Atroari, dizimados por epidemias, não se matarem em atritos entre aldeias, mas matar os "brancos". Dalmo começou a veicular também esta nova imagem de Comprido como herói "índio" que assumiu uma postura indigenista contra os "brancos", a partir do discurso indigenista dos servidores sobreposto ao seu discurso anterior, responsabilizando Comprido pelos ataques contra os Postos Indígenas.
53] Por exemplo: taha'kome 'jakaha "os espíritos de velhos", ki?in'ja 'jakaha "os nossos espíritos", ka?amin'ja 'jakaha "os espíritos de civilizados", 'xany 'jakaha "o espírito da sua mãe", 'akaha "o seu espírito [de uma pessoa específica]".
54] Por exemplo, ka'raiwa jak'bany "evocar os espíritos", ka'raiwa jabrimy "mediar/apresentar os espíritos" (em sessão xamanística); Janu'ma ka'raiwa "Os espíritos que (o xamã) Janu'ma evocava". Ka'raiwa é derivação da palavra Tupi "cariúa" (branco), usada pelos Waimiri-Atroari com referência a entidades Waimiri-Atroari e a entidades brancas, evocadas pelo xamã, e invisíveis para os outros Waimiri-Atroari. Butt Colson (1977:49) menciona a mediação de espíritos brancos nas sessões xamanísticas dos Akawaio.
55] Ou de Waimiri-Atroari falecidos de aldeias extintas, ou de personagens Waimiri-Atroari criados pelos xamãs.
56] "Ty'wama ki?in'ja 'wapy".
57] Freqüentemente apareciam expressões de ira nas sessões xamanísticas que tive oportunidade de assistir, entretanto, não eram dirigidas diretamente aos servidores da FAWA.
58] "'Sakana! Txamy'ry 'sakana!" "Ricardo é nosso amigo!" [59], repetiam com consternação. Logo, vários destes assistentes jovens, que passavam os dias trabalhando com Ricardo no Posto, gritaram que era mentira e a voz da entidade rebelde mediada pelo xamã afastou-se e foi substituída por outra. A voz do xamã tornou a falar de caititu, queixada e anta e a referir-se a doenças, focalizando dificuldades que os Waimiri-Atroari enfrentavam no aldeamento. Uma criança, filha deste xamã, havia falecido poucas semanas antes.
59] "Ricardo to'waka! Ricardo to'waka!" AGRADECIMENTOS Este trabalho foi muito beneficiado pela leitura crítica e pelos comentários de Bruce Albert e Alcida Ramos.
Stephen G. Baines
stephen[arroba]unb.br