O primeiro momento: o Grajaú faz oitenta anos?
Em 1993, um dos grupos do Grajaú resolveu comemorar o aniversário do bairro. Constituiu uma comissão integrada pelos dirigentes da Associação Comercial e Industrial do Grajaú e da AMGRA, por diretores de escolas, presidentes de clubes e pessoas de prestígio para definir a data de sua fundação. Na ocasião, o então presidente da Associação Comercial e Industrial do Grajaú solicitou a um professor de literatura, morador no bairro há aproximadamente trinta anos, que pesquisasse a sua origem. É o professor que nos conta:
O Grajaú não tinha data de fundação. Aí o presidente da Associação Comercial me pediu para pesquisar. Depois, em 1994, ele fez várias reuniões com as lideranças do bairro, lá no clube da Light, para decidir que data fixar.
O professor era também poeta e, declarando-se um apaixonado pelo Grajaú, cultivava a sua memória, reunindo e divulgando poesias, textos e reportagens sobre o mesmo em diversas publicações que organizou. O que parece ter motivado a atribuição da tarefa, foi ter publicado, em 1992, o livreto "Capela de N.S. de Imaculada Conceição", em que já enunciava os elementos básicos de sua versão sobre a história do bairro, ao mesmo tempo em que reconhecia a existência de uma polêmica sobre a mesma. Segundo o professor, o Grajaú nasceu com a inauguração da primeira casa na esquina das atuais ruas Grajaú e Barão de Bom Retiro. A casa foi construída por um dos arquitetos do loteamento da Companhia Brasileira de Imóveis e Construções, Francisco Tricárico. Quatro anos depois, Tricárico construiu em seu quintal uma capela consagrada a N. Sra. da Imaculada Conceição, onde se realizavam os serviços e festividades religiosas da região, até ser construída, em 1931, a Igreja Matriz de N. Sra. do Perpétuo Socorro, na Praça Edmundo Rego. O nome do bairro seria uma generalização do que originalmente era a denominação da rua da casa e da capela.
O nome grajaú é indígena, quer dizer um cesto que os índios usavam pra carregar frutas, caça. O Grajaú tem o formato de um cesto, é um vale cercado de montanhas. o rapaz que deu o nome ao Grajaú se lembrou disso. ... foi um engenheiro que veio trabalhar na Companhia com o Engenheiro Richard e o Tricárico ... tinha uma vereda muito antiga ... que era a Borda do Mato, era a vereda mais antiga, mas pertencia a uma outra companhia, era outro loteamento ... então esse engenheiro que ... nasceu na cidade de Grajaú no Maranhão ... pegou um pedaço de tábua bem grande e escreveu "Grajaú" e enfiou ali na entrada de uma passagem que tinha. O povo começou a dizer - "vamos passar pela vereda Grajaú", depois transformou-se em Rua Grajaú e a rua deu o nome ao bairro.
A versão do professor é, portanto, que o bairro nasceu na rua Grajaú, a partir da casa de Tricárico, sobretudo em torno da capela.
É a rua mais importante do bairro, nesse livrinho ... faço até um soneto, Soneto da Rua Grajaú, posso ler? "A Rua Grajaú tem sua história/ contada com carinho e muito amor/ deu nome ao bairro conquistando glória/ tem os seus dias de paz e de esplendor/ em torno da capela tão mimosa/ nasceu o Grajaú bairro-jardim/ casas e ruas largas bem formosas/ enfeitadas de flores e jasmins/ gosto de contemplar-te sempre bela/ onde as aves felizes nos seus ninhos/ cantam em festa/ meigas e singelas/ ó Rua Grajaú/ foste o embrião/ de um bairro nobre/ e feito com carinho/ um recanto que alegra o coração". Depois eu fiz um soneto dedicado à capelinha porque o Tricárico era italiano, quando veio para o Brasil fez uma promessa: se tivesse sucesso construiria uma capelinha e, em 1914, ele construiu a casa dele, na rua Grajaú no 1 e, no quintal, 4 anos depois ele inaugurou a capelinha.... O Grajaú foi inaugurado com a primeira casa, no dia 15 de agosto de 1914, e fez agora 85 anos...
A versão concorrente foi sustentada, nas reuniões da Comissão e também através dos jornais locais, pelo presidente do Grajaú Tênis Clube/GTC e, à época, também presidente da AMGRA. Este personagem nos conta, em entrevista, que o bairro surgiu a partir de um clube de futebol (Grajaú Futebol Clube), que depois se transformou no GTC, de onde viria o nome da rua onde estava situado e também o nome do bairro. E argúi que a data de fundação do bairro deveria ser a da fundação do clube, 5 de setembro de 1925.
Meu avô comprou um terreno na rua Borda do Mato, em 1924, e construiu a casa da família. Desde então moramos no Grajaú. Meu pai gostava de futebol, mas o esporte da época era tênis, coisa de almofadinha ... Esporte de homem mesmo era futebol. Então eles fizeram um local de encontro no bairro - o barracão de futebol, que em 1925 virou o Grajaú Tênis Clube. As plantas da compahia que loteou o bairro e as escrituras públicas só falam em Andaraí Grande e Andarai pequeno. Grajaú era o nome do clube.
Mesmo admitindo que a fundação de um bairro é um processo dinâmico e complexo, o professor propôs como marco simbólico a data da inauguração da casa de Tricário, suscitando um forte debate nas reuniões com as lideranças do bairro, mas obtendo apoio da maioria delas :
Tem um cidadão do Grajaú, que foi presidente do Grajaú Tênis Clube muitos anos, e ele quer que o aniversário do bairro seja o aniversário do clube. Então eu argumentei com ele: -" como é que existia um clube, se não existia ninguém morando por perto?" Então vamos parar... (professor). ... quando chegaram os novos grajauenses, começaram a discutir a data da fundação. Queriam ter uma data cabalítistica para a fundação do bairro. O mesmo grupo que já tinha violentado a história de Vila Isabel ... Levei 7 argumentos para a identidade entre o GTC e o bairro, que o GTC era o centro cultural e desportivo de tudo que acontecia no bairro. Eles só levaram a foto da casa do Tricário. Mas como eles tinham mais força política fizeram a festa dos 80 anos e ficou a casa do Tricário como símbolo do Grajaú. Mas ela era na periferia, na rua Barão de Bom Retiro ... acharam que era guerra minha com o administrador regional. Chegaram a botar esta estória na internet (presidente do GTC).
Nós encontramos uma data, eu e um professor do Pedro II fizemos um histórico, mandamos para a Prefeitura e a Prefeitura aceitou a data (professor).
A polêmica envolveu as lideranças locais, as entidades representativas do bairro, a 9ª Região Administrativa, os jornais da área e muitos moradores. Por fim, a versão do professor foi aceita e oficializada pela 9ª RA e pela Prefeitura; a primeira, através da divulgação da pesquisa dos dois professores e ambas, através da promoção de um programa de comemorações dos 80 anos do Grajaú, no período de 11 a 15 de agosto de 1994.
Fixando imagens do passado, disputando o presente
Os episódios examinados (pesquisa, produção de versões, debates, concursos de redações e poesias sobre o bairro, divulgação das versões em publicações, jornais da região e em um site sobre o Grajaú e, por fim, uma semana de festividades) revelam o interesse e o esforço em produzir uma versão consagrada da história do bairro, recriando a memória coletiva, no sentido apontado por Bosi:
"Quando um grupo trabalha intensamente em conjunto, há uma tendência de criar esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros 'universos de discurso', 'universos de significado', que dão ao material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada dos acontecimentos, o ponto de vista do grupo constrói e procura fixar a sua imagem para a história." (1994: 66-67, grifo da autora).
Ana Daou, em sua pesquisa sobre a sociedade amazonense na virada do século XIX, demonstra como a permanente referência à Manaus antiga por seus entrevistados era "parte de um exercício de fixação de uma determinada construção social, atrelada ao prestígio e ao status de um segmento social e aos interesses de consagração de uma época" (1999: 74). Tratar-se-ia, nos termos de Pollak, de um "trabalho de solidificação da memória" que, criando "elementos irredutíveis", buscava dificultar a "ocorrência de mudanças" (1992: 201).
De modo similar, podemos entender a definição da data de fundação do Grajaú como um "ponto de referência" que estruturava a memória coletiva, permitindo recompor a história do bairro através de um processo intersubjetivo de construção de sua memória. Assim, reconstruía-se no presente o Grajaú como um bairro nobre, de elite, demarcando as distâncias sociais que o separariam de seu entorno operário. Mas, ao fazê-lo, construía-se ---por referência a este outro que era excluído de um passado e um presente comuns --- também a identidade individual e coletiva de seus personagens como grajauenses. Considerando esta relação entre construção da memória comum e de identidades coletivas, Pollak sublinha:
"A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra ... em tentativas mais ou menos conscientes de definir e reforçar sentimentos de pertencimento e fornteiras sociais entre coletividades ... A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituicções que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. ... Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum ... eis as duas funções da memória comum" (1989: 9).
Entretanto, é ainda Pollak que destaca que uma versão majoritária da memória coletiva não é necessariamente hegemônica, ou melhor, nem sempre está "suficientemente constituída e instituída", podendo conviver com versões "subterrâneas", minoritárias, dominadas, mas capazes de serem ativadas em determinadas circunstâncias ou no interior de grupos específicos. A memória pode, assim, "entrar em disputa" (1989: 4). Desta perspectiva, podemos compreender o processo de recriação da memória coletiva do/no Grajaú como uma "trabaho de fixação" de imagens do passado valorizadas como positivas, em que estas estão de fato em disputa por requalificarem o presente, como veremos a seguir.
As versões concorrentes sobre a história do bairro destacam aspectos de seu passado referidos basicamente ao que seria seu perfil de elite ou de classe média e seu surgimento em torno de um clube ou de uma igreja. Ao fazê-lo, articulam-nos às biografias de alguns dos principais atores do bairro (suas lideranças). Constróem, assim, entrelaçamentos diversos entre memória/história do bairro e trajetórias particulares, que se associam à postulação de quem pode legitimamente nele, para e por ele falar.
A história agora oficial do bairro, ao representar o Grajaú como um bairro que nasceu em torno de uma capela, está construindo o mesmo como uma comunidade católica e, dessa forma, considerando este pertencimento religioso como atributo fundamental para sua representação. Reconhece outras redes sociais no bairro, mas sob a hegemonia da rede católica.
O bairro começou a crescer e a ter vida sócio-religiosa, em torno da Capelinha, onde havia Missa aos domingos, batizados, novenas no mês de maio, na festa de N. Sra. da Imaculada Conceição, Primeiras Comunhões. Ali se encontravam as pessoas residentes no bairro e na vizinhança (professor). "[A capela foi] a primeira referência cívico-religiosa da comunidade nascente... ... a juventude que se criou na Rua Grajaú, se relacionando nas festividades cívico-religiosas ... [é] que vai dar início ao ... Grajaú Tênis Clube"
Já a versão do surgimento do bairro em torno do clube valoriza o grajauense de raiz, isto é, nascido e criado no bairro, mais precisamente na área do 1o loteamento, que seria recoberta pela rede social do GTC e das ruas adjacentes. A referência aos novos grajauenses evoca o sentido original de bairro de elite e qualifica como seu possível representante o morador antigo, condição da qual exclui, no passado, Tricárico, já que sua casa seria na periferia e, no presente, os moradores novos. Com isso, reforça o pertencimento social como condição para a representação, operando com a representação do morador antigo como aquele que ama o bairro, conhece seus problemas e é capaz de propor soluções que contem com o apoio e a adesão dos moradores. Já os novos operariam através de uma espécie de "golpe", demonstrado no caso por uma associação a um grupo externo para violentar a história.
Nesta construção discursiva, o presidente do Clube enuncia a disputa pela representação no/do Grajaú, que se processava nos planos comunitário e político. Ao afirmar a supremacia da rede social dos moradores antigos sobre a rede católica, está se qualificando como seu representante na AMGRA, na Câmara de Vereadores e na Assembléia Legislativa, isto é, para falar para o bairro e pelo bairro, e diminuindo o efeito negativo de seu afastamento da Igreja Católica. O que indica que identifica claramente seus opositores: o administrador regional e o professor. O primeiro, morador de Vila Isabel, que estava entrando no bairro através da frequentação social das famílias grajauenses, da inserção na rede católica e de uma articulação na política comunitária, se elegeu vereador, em 1996, com uma campanha em que, localmente, enfatizava sua condição de representante de Vila Isabel e do Grajaú. O segundo seria o presidente da AMGRA na gestão imediatamente posterior (1995/97).
De outro ângulo e independentemente da intencionalidade de suas ações no momento da disputa, o professor através delas também se qualifica para falar no/para o bairro. E o faz, de um lado, atacando a identidade do adversário com a elite do bairro, ao afirmar que a rua Borda do Mato, onde o mesmo reside, originalmente era de outro loteamento, o Vila América. Por outro lado, neutraliza a tentativa de exclusão, credenciando-se como portador da memória do bairro na condição de seu historiador e divulgador e superando a exigência de ser de raiz através da permanente declaração de seu amor ao Grajaú em crônicas e poemas. E, ainda, valoriza seu pertencimento religioso (é inclusive ministro da eucaristia), ligando-o diretamente à tradição do bairro:
Toda segunda-feira, às quatro horas, a família com as velhinhas amigas rezam o terço; uma vez por ano, no dia 8 de dezembro, é celebrada a missa de Nossa Senhora da Conceição. Eu há 30 anos ajudo a missa nesse dia.
Gostaria de destacar aqui a estratégia de inclusão no bairro desenvolvida pelo professor, tal como por outros moradores, e que se relaciona à reelaboração da categoria bairro de elite examinada anteriormente. Ser grajauense passa a significar, então, compartilhar de sua história, se não no passado, por sua reconstrução e celebração no presente; se não pelo pertencimento social e espacial em sua elite, através de uma sociabilidade que valoriza a sua tradição e se assenta na família e na comunidade católica.
O segundo momento: novos atores em cena e as mediações com o Andaraí
A produção de uma versão consagrada sobre a história do Grajaú, não foi, no entanto, capaz de suprimir totalmente a contravérsia sobre a mesma. Cinco anos depois, em meu trabalho de campo, os moradores me ofereciam espontaneamente em seus depoimentos uma versão da história do bairro. Embora, com maior freqüência reproduzissem a história oficial, havia espaço também para a reconstrução da memória coletiva pela tematização da região proletarizada do bairro e das favelas.
Um jornalista, que à época da polêmica original divulgara ambas as versões, fomentando o debate, lançou uma nova interpretação da história do Grajaú, valorizando suas conexões com o Andaraí.
Pelo jornal, numa pesquisa minha, eu lanço outra tese ... é a partir do momento que você urbaniza um determinado espaço [que] começa a dar vida àquele espaço ... ele já começa a surgir ali. O [professor] ... parte do surgimento da igreja, mas antes ... já existia a rua Borda do Mato. Há muito mais tempo, há cem anos atrás. Então, o bairro, a região pra mim, foi fundada aí, no período em que foi fundada a rua Borda do Mato... que é muito mais antiga do que a rua Grajaú, a igreja do Tricárico e o Grajaú Tênis Clube. Então, nenhum dos dois tem fundamento, não têm razão sobre o aniversário do bairro.
A reatualização do debate implica uma nova postulação de falar pelo bairro, redefinindo seu território e reconstruindo a identidade coletiva de seus moradores. O jornalista é pré-candidato a vereador pelo Partido Socialista Brasileiro e avalia que, de dentro do bairro: virão muitos candidatos, não vai ser fácil. Retomar o debate significa, de um lado, um confronto com um vereador da região, ex-administrador regional e forte candidato à reeleição, como pode ser interpretado a partir de seus comentários diante dos primeiros preparativos para a realização da festa de aniversário do bairro no ano seguinte:
Como agosto-setembro é véspera de eleição, acredito que seja iniciativa desse cidadão ... para evidenciar uma participação direta no bairro (...) e trazer a mídia a seu favor, às vésperas da eleição.
De outro lado, envolve construir a própria candidatura. Sustentar que o bairro surge a partir da rua Borda do Mato (rua de "fronteira" entre os dois loteamentos), cem anos atrás, é vincular o surgimento do Grajaú ao Andaraí. Se o vereador está identificado com a elite social e católica do Grajaú, o jornalista fala como possível representante de um bairro que não é mais o bairro nobre, mas que teria também um passado proletarizado cuja dignidade propõe resgatar. Trata-se, portanto, de contar a história do Grajaú a partir do Andaraí, das fazendas dos jesuítas às suas fábricas e vilas operárias e, só então, seus loteamentos. Ele está querendo realizar essa festa, só que, de repente, pode ser formado um grupo que possa vir fazer com mais fundamento ..., alguma festa mais adequada... assim, buscando raízes e mais razão... Muitas coisas vão acontecer, porque esse ano é um ano crítico.
A tese do Grajaú como um desdobramento do Andaraí Grande não lhe é exclusiva, ao contrário vem sendo defendida com vigor pela Associação de Moradores e Amigos do Andaraí/AMARAÍ e por grupos de moradores que procuram manter viva a tradição do bairro, entre os quais se destacam alguns vinculados a partidos da esquerda que denunciam sua descaracterização histórica e a espoliação de sua memória. Apresentam a identificação do Vila América como parte do Grajaú como produto de estratégias tanto individuais como do capital imobiliário para valorizar a área como um bairro de status, aumentar os valores dos imóveis e o prestígio de seus moradores, desvinculando-o das origens operárias. Em 1999, esse grupo divulga o projeto "Andaraí quase 500 anos", que pretende mobilizar os moradores "para resgatar e divulgar a história do bairro e melhorar sua qualidade de vida." No caso do jornalista, seu entendimento parece ser que, através do decidido apoio a esta tese, de seu trabalho de divulgação da região através do jornal e de sua atividade comunitária (projetos culturais e desportivos naqueles dois bairros), qualifica-se à representação postulada.
Esta versão da história do Grajaú, valorizando positivamente a herança operária, reconstrói o passado redefinindo suas fronteiras espaciais e sociais. Ao fazê-lo, desvenda, no presente, a porosidade das fronteiras e abre "passagens" para a inclusão no bairro dos moradores mais pauperizados e de suas favelas. Ou melhor, torna possível uma outra construção social do bairro. Vindas do Grajaú, outras vozes se somam a essas, em uma nova recriação coletiva do bairro.
Mediações com as favelas e reconstrução do bairro
Paulo, por exemplo, contando como veio morar no bairro, resgata uma face proletária do Grajaú como constitutiva do bairro nobre, destacando a existência de um conjunto habitacional dentro desta parte do bairro. Mas, em seu relato, não se prende ao bairro como um espaço em si. Antes o entende, em sua lógica espacial e social, como um produto das desigualdades sociais que relacionam presente e passado, bairro, cidade e país. Assim, reconstrói, no presente, uma unidade bairro-favelas pelas relações de classe na sociedade capitalista, criticando a exclusão das últimas do primeiro como apartação social.
Quando eu me mudei para o Grajaú, fui morar num conjunto do IAPC [Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários]. Nós éramos altamente discriminados pela burguesia do Grajaú, porque ali era um conjunto residencial. "Isso aí não pode acontecer dentro do Grajaú, nós temos que afastar, isso, é um absurdo". Esse mesmo absurdo que eles falam das favelas. Esse mesmo absurdo que eles fabricam. Favela é o produto mais autêntico do capitalismo
Apesar de ter sido candidato a deputado estadual, em 1990, Paulo não postula falar pelo bairro e sim pela esquerda, pelos trabalhadores. Reconstruindo a história e a memória do bairro, não disputa uma representação política e sim uma visão de mundo. É deste lugar que fala para o Grajaú.
O Grajaú sempre teve no seu bojo ... uma elite .... um defeito nosso. Mas aqui havia um pessoal esclarecido ... nós tínhamos condições de formar uma opinião. [...] Eu saio de casa ... pra' comprar um pão e volto duas horas depois, porque eu paro para responder às pessoas. "Paulo, o que você acha disso? Eu acho isso e isso, minha posição é essa." ... Eu tenho um respeito muito grande por isso.
Sem qualquer compromisso com a tradição do bairro, Paulo fala do ponto de vista de uma corrente política, esta sim configurando para ele uma tradição, para transformar o bairro. Defendendo a inclusão das favelas e dos segmentos pauperizados no Grajaú, pretende fazer avançar a cabeça das pessoas e, deste modo, também a política no Rio de Janeiro.
Com a mesma perspectiva, ainda que através de partidos e estratégias diferentes, Fernando e Zélia reconstroem a história do Grajaú. Zélia, moradora nova e residente na periferia do bairro, associa a história do Grajaú à do Andaraí e de Vila Isabel, integrando asfalto e favela. Com esta perspectiva, inicia, na escola pública onde trabalha, um projeto com alunos e professores para recuperar a memória da região. Pensa em recolher as estórias de seus moradores e recontar o processo de desmatamento e ocupação das encostas como paralelo e integrado ao desenvolvimento do asfalto. Com isso, pretende estar reforçando a mediação que ela própria exerce na região a partir desta escola e de sua participação na Agenda Social Rio. Mas, sobretudo, quer valorizar o papel da escola ora como espaço neutro, ora como lugar de integração de diferentes favelas e "comandos", de estudantes pauperizados e de classe média.
A escola foi considerada por eles uma área neutra, então tem tanto a comunidade do Macacos quanto a do Andaraí, que são inimigos, se dizem inimigos ... Mas eles sabem que, no momento que estão da porta prá dentro, eles pertencem a uma outra comunidade, que é a comunidade da escola ... não tem uma característica própria ... de favela ou ... de asfalto. [...] Aconteceu uma parceria entre eu e eles [os líderes comunitários], qualquer coisa eu aviso as comunidades e qualquer coisa eles me avisam ...
Já Fernando, morador antigo, nascido no bairro, recupera do passado as imagens que permitam reconstruir o bairro do Grajaú como uma comunidade que inclua, no presente, asfalto e favelas.
No final da rua Comendador Martinelli - não existia ainda a Reserva Florestal - era um morro, onde ... o Seu Adail tinha uma criação de cavalos ... No pé da Pedra, existiam umas vinte, vinte e cinco famílias. ... aqueles meninos eram os mesmos que freqüentavam a [escola] Duque de Caxias comigo. Meu pai era médico; chegava ao final da noite e as famílias desciam e esperavam no portão da minha casa ... atendimento ... amostra grátis ...As pessoas lá de cima ajudavam aqui em baixo com jardinagem ... zelador. ... A relação entre o pobre e a classe média era muito pacífica, tranqüila, sem qualquer problema. Hoje, esses mesmos meninos, parte dessas famílias foram para Paciência, em Santa Cruz, e parte conseguiu ficar na própria Grajaú-Jacarepaguá [no Morro do Encontro] ... Os que não foram continuam trabalhando no bairro. Não existia problema de favelização com a conotação que tem hoje ... a questão da segurança. Essa história que estou falando, provavelmente deve ter se repetido no final da [rua] Borda do Mato [atualmente, acesso à favela Vila Rica ou Borda do Mato], na escadaria da [rua] Bambuí [acesso à Nova Divinéia], lá onde o Seu Manoel tinha o Horto no final da Campinas [acesso à JK e à João Paulo II]. Essas histórias se repetem em todos esses lugares e as comunidades que lá estavam eram bem recebidas pelo bairro naturalmente como tem que ser: ... dentro do princípio da normalidade de convivência.
Contra a imagem recorrente no Rio de Janeiro como uma "cidade partida", Fernando enfatiza as relações entre o pobre e a classe média: relações de trabalho sobretudo, mas também as de ajuda mútua, de assistência desinteressada aos desvalidos, a convivência das crianças na escola e nas brincadeiras de rua. Em seu relato, o Grajaú aparece como uma comunidade que integrava favela e asfalto por sobre as diferenças de classe e a partir das relações que se desenvolviam no quotidiano do bairro. O entrincheiramento do tráfico de drogas nas favelas teria rompido essa vivência de comunidade no Grajaú.
Com a entrada do narcotráfico de forma agressiva nesses morros e a ausência do Estado, o narcotráfico passa a assumir o comando desses morros e essas pessoas ficam como refëns dessa situação. Daí começamos a discutir não mais condições de emprego, saúde e educação e a discutir segurança pública, baseado em quê? "Estamos precisando de mais armamento, de mais guarda!" Agora veja bem, o Grajaú não é bairro de passagem, pelo contrário, é fim de ponto, então com essa história você há de convir que tem alguma coisa errada aí. A gente não conseguir fazer com que essas comunidades possam sair dessa posição de refém ...
A solução para o bairro seria romper com o presente de violência, reconstruindo seu passado "comunitário". Descartando a hipótese de fazê-lo pela exclusão social, como restauração do bairro nobre ou de elite, a alternativa que propõe é recriar a comunidade pela política. Para Fernando, ao tentar reconstruir o Grajaú como um bairro nobre, muitos de seus moradores idealizam o passado, tentando reviver o "bairro de antigamente" por vias transversas ou ineficazes.
... principalmente as [pessoas] na faixa de quarenta e poucos anos, que soltaram muita pipa, balão, pelada de rua, uma rua contra a outra... Essa foi a infância que eu tive e que meu filho não tem. [Mas] o que as pessoas querem no fundo é que o bairro volte a ter aquelas características que um dia teve ... Por isso, o "Acorda Grajaú" nasceu com força, porque chegamos à conclusão de que para ter as mesmas características era preciso que as ruas tivessem uma condição adequada, a escola pública funcionasse devidamente, a saúde também, etc.
O caminho para "restabelecer a comunidade" é, para Fernando, o da política. Mas Fernando defende uma política que se associe à religião para resgatar a sociabilidade perdida através da ação comunitária. A força da idéia de comunidade em sua fala provém da hipótese de reatualização da comunidade católica, inspirada no modelo das comunidades eclesiais de base, e de requalificação do tipo de solidariedade e participação hoje desenvolvidas no âmbito das pastorais católicas. É do movimento social de base da Igreja, com a voz da igreja dos pobres que Fernando fala para o bairro, propondo ... restabelecer aquilo que nós tínhamos, que é o que somos na realidade. Nós não somos pobres e ricos, morro e asfalto, nós somos uma comunidade só. O bairro tem todas as condições de resolver quase todos os seus problemas. Meninos de rua? O bairro tem condições de resolver! É complexo o problema, mas a certeza que a gente tem é de que é possível a sociedade atropelar esse processo com mobilização social, resgatando através desse passado, dizer: "Vamos juntos tentar resolver o problema". Eu estou lá em cima na [Nova] Divinéia juntando jovens de quinze, dezesseis e dezesete anos, porque, se eu não fizer ou quem esteja lá em cima, esses jovens vão ser recrutados pelo tráfico, não é isso? Então o trabalho da Igreja é importante porque segura, você sabe que segura.
Esta perspectiva anima sua idéia de reconstrução da comunidade do bairro como uma comunidade católica e cidadã. Neste sentido, compartilha do projeto de "integração e pacificação" do Rio de Janeiro, que se desenvolveu ao longo da década de 90 na cidade, combinando a religiosidade difusa existente na cidade às diversas igrejas, no exercício da fraternidade e na promoção da cidadania e que, no caso da Igreja Católica, parece estar associado a uma reorganização e revitalização das pastorais, ainda que sob novas bases.
Tematizando as favelas e interpelando o bairro
Esse projeto de "pacificação e integração" do Rio de Janeiro responde ao crescimento da violência e dos sentimentos de medo e insegurança, que se expressam na imagem de uma "cidade partida", com a proposta de integração das favelas à cidade. Envolve associações de moradores de bairro e de favela, ONGs, instituições estatais, igrejas, escolas e entidades diversas, muitas vezes articuladas em fóruns, redes e conselhos diversos, e desenvolve várias iniciativas de promoção da cidadania, da solidariedade e da participação por parte da sociedade civil, que se combinam a alguns programas pontuais do governo estadual, como por exemplo o Vida Nova, e ao Favela-Bairro, programa de urbanização das favelas desenvolvido pelo governo municipal.
Quero com isso destacar que a construção social do bairro do Grajaú não concerne exclusivamente a seus moradores, realizando-se no interior de um contexto mais amplo de reconstrução da cidade do Rio de Janeiro, que se configura como um campo de disputas de projetos sociais e políticos, que não me cabe aqui examinar. Gostaria apenas de enfatizar que a recriação e disputa da memória e da identidade do bairro, que analisamos, é informada, num plano mais geral, tanto pela perspectiva de integração das favelas à cidade, quanto pela de sua exclusão. Há, porém, no Grajaú uma influência específica do "projeto de pacificação e integração", particularmente através da interpelação de suas lideranças de bairro e de favelas pelo fórum constituído pela Agenda Social Rio, mas também no âmbito da Conselho Comunitário de Segurança da Grande Tijuca , dos conselhos Escola-Comunidade e do Conselho de Saúde da AP-22.
Instadas a promoverem a integração entre asfalto e favelas, as novas lideranças do Grajaú, "ao falarem para o bairro e pelo bairro", refazem seu território, redefinido fronteiras e abrindo passagens : (Quando fizemos a chapa para a AMGRA) tinha uma divisão alto Grajaú e baixo Grajaú, mas não é nada disso, isso é fofocada da galera. Então pegamos gente daqui de cimo, gente lá da Praça Nobel, do (Largo do) Verdun, o pessoal mais embaixo da (rua) Mendes Tavares (presidente da AMGRA). Fui até lá e a mulher do presidente da [favela] Caçapava me disse "foi a primeira vez que o presidente da AMGRA lá de baixo sobe aqui." Mas não é assim que tem que ser? [...] já criou esse constrangimento (a exclusão) porque o PEU só vai até uma determinada área (idem).
Interpeladas pelos mesmos fóruns e diante da fluidez das fronteiras entre bairro e favelas nas diversas reconstruções do passado e do presente que examinamos, as lideranças de favelas também refazem o Grajaú. Embora não possa, no âmbito deste texto, analisar como o fazem, gostaria, ao menos, de indicar algumas de suas estratégias de inclusão e de exclusão no bairro e as circunstâncias em que são acionadas, examinando brevemente dois casos.
O primeiro é o da favela do Morro do Encontro, como vimos situada na Serra do Engenho Novo, uma das "fronteiras" do Grajaú, e considerada pela Prefeitura como integrando o bairro do Engenho Novo. O programa Favela-Bairro, porém, entre suas iniciativas de urbanização abriu uma rua de acesso ao Encontro na rua Visconde de Santa Isabel, bairro do Grajaú. Diante disso, o presidente da Associação de Moradores e Amigos do Encontro reivindica a inclusão da favela no bairro do Grajaú.
Nasci no Encontro e pedi muito pão aí pelo Grajaú a fora, carreguei muita bacia, trouxa de roupa... fazia carreto na feira [...] me criei na comunidade. [...] pelos dados do IBGE, consta que nós somos do Engenho Novo. [...] nós somos parte do Grajaú, mas como aí não consta, não é uma área formal, nós vivemos como se fosse no Engenho Novo, mas isso não é justo [...] se o Grajaú não aceita (o Encontro) como parte do território dele, a Reserva Florestal também não pode ser do Grajaú ... está no mesmo morro e o 6º Batalhão (da PM, responsável pela área da Grande Tijuca) não vai poder policiar a nossa área.
Ao fazê-lo, não só opera com uma lógica mais instrumental (sua inclusão nos projetos de "integração e pacificação" em curso na Grande Tijuca), como também busca restaurar uma vivência comum entre bairro e favela, marcada por relações de vizinhança e pela solidariedade e, assim, descaracterizar o Morro do Encontro como principal foco de violência e criminalidade no bairro.
A tentativa de romper com esse estigma, que hoje marca todas as favelas do bairro, parece ser uma preocupação comum de suas lideranças e orienta suas principais estratégias de inclusão no bairro, como veremos com o segundo caso, o de uma das favelas do Grajaú em sua relação com os moradores do bairro e a AMGRA. Benedito, um dos dirigentes de uma associação de moradores em favela, me conta que reorganizou o espaço de sua comunidade, suprimindo o nome das velhas ruas e designando-as por uma combinação do nome da rua formal que dá acesso à favela e um número (rua X, no 350, casas 1, 2,...; rua X no 352, casas 1, 2, ...). Enviou um ofício à CEDAE, solicitando o reconhecimento desta reorganização espacial, que foi aprovada pelos moradores por não evidenciar sua condição de favelados para as pessoas que têm preconceito. Assim, nomeando o acesso ao morro como uma continuidade da via pública, transforma a fronteira em passagem.
Contudo, o principal operador desta transformação seria a política comunitária. Reconhecendo a importância da mediação efetuada tanto por lideranças do bairro, quanto por lideranças das favelas para um projeto de integração capaz de romper com o estigma e promover oportunidades de emprego e renda para os favelados, estes se ressentem da falta do que nomeiam como um compromisso mais efetivo por parte das lideranças do bairro.
A AMGRA fez o (evento) Natal Sem Fome (mas o presidente) nunca mais veio aqui em cima. Não sei o que está acontecendo. Ele é um presidente maior do que a gente, porque ele representa o Grajaú, é nosso presidente, mas não convida a gente pra' nenhuma reunião. Não convida pra fazer integração nenhuma. Inclusive a gente tem a Associação Comercial e eu disse pro' (presidente da AMGRA) ... "a gente faz uma integração ‘comunidade de cima – comunidade de baixo’ em termos de divulgação, negócio de comércio, ver emprego. Mas, eu estou vendo que a Associação dos Moradores do Grajaú infelizmente não está saindo do papel, não está funcionando (Benedito).
Na qualidade de lideranças comunitárias, Benedito e Sebastião falam, sobretudo, para e por suas favelas. Porém, nas circunstâncias em que se deparam com o preconceito e o estigma, falam também pelo bairro numa estratégia de dissolver fronteiras e trabalhar pela "integração", valorizando sua condição de mediadores. Assim, Sebastião declina sua condição de párticipe da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, enquanto Benedito evoca sua iniciativa em promover, junto com outras lideranças da região, um evento para arrecadar alimentos para os pobres, o Natal sem Fome. Com isso, ambos reconstróem a tensa equação favela-asfalto, como pobres-classe média/ricos do bairro, qualificando-se como mediadores nesta relação.
Ultrapassando a mediação que lhes foi atribuída pelos poderes públicos, nos anos 60 (e que Benedito expressa como tomar conta da comunidade: No momento que você passa a tomar conta da associação, você tem que tomar conta da comunidade também ...), nos anos 90, a tarefa dos mediadores seria integrar bairro e favelas. É nesta qualidade que falam também para o bairro, interpelando suas lideranças:
[...] associação do bairro ... é fazer a integração de cima e em baixo... Porque a maioria das coisas que embaixo sofrem, vêm de cima. Até ... desentendimento de porta de colégio ... acho que a AMGRA devia opinar sobre isso também. ... Fazer reunião com liderança comunitária, convidar a população, fazer competições entre equipes de baixo e equipes de cima, fazer uma misturada ... Fazer uma integração falando que o Grajaú é um bairro só. O sentido do Natal Sem Fome era esse. Era unir a comunidade de cima com a comunidade de baixo para o pessoal ver a gente também como Grajaú. Não excluir a gente. [...] A intenção era eles (os moradores dos prédios no asfalto) descer e ver que no morro também tem gente boa. [...] Pra eles terem paz embaixo, a gente precisa ter paz em cima, está entendendo o ponto de vista?
Os fios da memória tecendo novos laços de identidade
Analisando diferentes versões da história do Grajaú como criações coletivas da memória do bairro, examinei como resgatavam suas origens proletárias ou de classe média e valorizavam sua integração em uma área industrial ou seu caráter de bairro residencial isolado dos bairros operários em torno. Procurei demonstrar como essas versões se articulavam à percepção das fronteiras do bairro, ora concebidas como mais largas ora como mais estreitas do que as definições oficiais, ora incorporando ora excluindo as áreas proletarizadas e as favelas da região.
Para concluir, gostaria apenas de enfatizar que a disputa pela memória e história do Grajaú desvendou as fronteiras fluidas do bairro, abrindo a possibilidade de ampliá-las para além dos limites formais definidos nas plantas urbanísticas da Prefeitura e/ou dos desejados por alguns de seus principais personagens. Nesse sentido, abriu, internamente ao Grajaú, espaço para um movimento pela incorporação das favelas e dos segmentos proletarizados ao bairro. Movimento que foi efetuado tanto por moradores do asfalto, quanto por favelados, especialmente por suas lideranças e por que aqueles que operam com a perspectiva de integração entre asfalto e favelas.
Deste campo, surgem novas versões da história do bairro, que passa a ser também contada através do valorização de uma memória comum entre favelas e asfalto. Essas versões resgatam situações e personagens, o trânsito costumeiro entre os dois territórios, a identidade entre passado e presente. Com isso, trazem para o presente a idéia dos dois espaços como uma única comunidade ou como comunidades em relação, valorizando as relações de trabalho e de vizinhança que tradicionalmente as uniram. Assim, desvinculam as favelas do campo da marginalidade e do crime, ao qual vêm sendo com freqüência referidas no Rio de Janeiro da última década, facilitando as passagens entre o bairro e suas favelas.
A recuperação das imagens de comunidade e o estabelecimento de um certo continuum entre passado e presente nelas baseado permite que essas novas versões da história do Grajaú vislumbrem também o bairro e suas favelas como partes de uma mesma realidade. Para o bem ou para o mal, para a guerra ou a paz, partilhariam um destino comum. A construção da alternativa da paz parece-lhes depender da valorização do lugar de mediação das lideranças de bairro e de favela, aqueles que podem falar no bairro e para o bairro pela reconstrução do Grajaú como uma comunidade.
Para situar meus informantes, sem no entanto lhes desvendar a identidade, estou registrando idade e tempo de moradia no bairro de forma aproximada, além de operar com categorias amplas no que se refere à ocupação (por exemplo, "funcionário público" recobre qualquer atividade desenvolvida em órgão federal, estadual e municipal). Da mesma forma, atuação comunitária envolve participação em associação de moradores (integrando a diretoria, participando de suas atividades e/ou de articulações de oposição) e em outros movimentos locais (Acorda Grajaú, Movipaz, movimentos ecológicos, articulação interfavelas, Comitê da Ação da Cidadania, etc.). Ja atuação partidária refere-se à militância em núcleos e/ou diretórios partidários e à participação em eleições municipais e estaduais (da postulação de legendas partidárias a candidaturas propriamente ditas). A lista abaixo também inclui os que se envolveram na polêmica pública sobre a data de fundação do Grajaú e aqueles cujo relato foi analisado em função da representação exercida e que, somente em relação a esses aspectos, foram identificados no corpo do texto como "professor", "presidente de clube", "jornalista" e "presidente de associação de moradores".
1. Benedito - 25 anos, solteiro, trabalhador comunitário, católico não praticante, atuação comunitária, mora no bairro há 15 anos, residindo em favela;
2. Fernando - 45 anos, casado, com filhos, pequeno empresário, católico, atuação comunitária e partidária, nasceu no bairro, mora na área do 1º loteamento;
3. Guilherme - 70 anos, casado, com filhos, funcionário público, católico, atuação comunitária, natural de outro estado, mora no bairro há 35 anos, residindo na área tida como periferia;
4. João - 45 anos, separado com filhos, gestor da água, candomblecista, atuação comunitária, nasceu no bairro, residindo em favela;
5. Luís - 45 anos, casado, com filhos, profissional liberal, sem religião, atuação comunitária e partidária, mora no bairro há 20 anos, residindo na área do "Vila América";
6. Norma - 55 anos, casada, com filhos, funcionária pública, católica, atuação comunitária, natural de outro estado, mora no bairro há 25 anos, residindo na área do "Vila América";
7. Odete - 75 anos, casada, com filhos, funcionária pública, católica, nasceu no bairro, mora na área do 1º loteamento;
8. Paulo - 60 anos, casado, com filhos, profissional liberal, sem religião, atuação comunitária e partidária, mora no bairro há 50 anos, residindo na área do 1º loteamento;
9. Quito - 60 anos, casado, com filhos, funcionário público, católico, freqüenta uma igreja evangélica, atuação comunitária e partidária, nasceu no bairro, mora na área do 1º loteamento;
10. Santos - 75 anos, casado, com filhos, funcionário público, católico, atuação comunitária, mora no bairro há 50 anos, residindo na área do 1º loteamento;
11. Sebastião - 55 anos, casado com filhos, trabalhador autônomo, católico não praticante/candomblecista, atuação comunitária, natural de outro estado, mora no bairro há 18 anos, residindo em favela;
12. Tavares - 60 anos, casado, com filhos, executivo, católico, atuação comunitária, nasceu no bairro, residindo na área do 1º loteamento;
13. Teixeira - 40 anos, casado, com filhos, pequeno empresário, católico não praticante, atuação comunitária e partidária, nasceu no bairro, mora na área do 1º loteamento;
14. Zélia - 45 anos, casada, com filhos, funcionária pública, espírita, atuação comunitária e partidária, mora no bairro há 20 anos, residindo na área tida como periferia.
(*) Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagen. Márcia Pereira Leite. En publicacion: Grajaú, memória e história: fronteiras fluidas e passagens.
Este texto se encuentra bajo licencia Creative Commons
Pereira Leite, Márcia
marciaspleite[arroba]uerj.br