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O tema da pobreza está hoje em primeiro plano na agenda de instituições internacionais como o Banco Mundial e as Nações Unidas, têm grande visibilidade na imprensa internacional, e repercutem no Brasil sobretudo de fora para dentro, abalando uma história secular de aceitação da pobreza como condição natural e inevitável da maioria da população. É falso, felizmente, que as condições de vida da população brasileira estejam piorando; mas a melhora tem sido lenta, e a natureza dos problemas tem se alterado de forma significativa.
Em essência, as situações extremas de pobreza no Brasil sempre estiveram, e em grande parte ainda estão associadas às populações rurais, desprovidas de educação, em condições extremamente precárias de trabalho, e com altas taxas de fecundidade. Ora, o que presenciamos no Brasil nas últimas décadas foi a intensificação do processo de imigração do campo para as cidades, e a queda brusca e dramática das taxas de fecundidade. Estas duas condições, associadas à cobertura cada vez mais ampla de alguns serviços básicos, sobretudo no acesso à água tratada e à eletricidade, tiveram e ainda estão tendo impactos muito importantes em uma série de indicadores sociais:
- queda das taxas de mortalidade infantil, e consequente aumento da esperança de vida da população. A principal explicação é a redução do efeito devastador das infecções gastro-entestinais, controladas pela água clorada e pela disseminação do soro caseiro.
- queda das taxas de analfabetismo, com acesso praticamente universal das crianças às escolas das áreas urbanas. O analfabetismo é hoje sobretudo um fenômeno de populações mais velhas das zonas rurais. Aumento progressivo, também, dos anos de escolaridade.
- melhoria em uma série de indicadores relativos às condições de habitação, incluindo acesso a eletricidade, água encanada e coleta de lixo
- aumento da cobertura da população pelos sistemas de previdência social (pela sua extensão à área rural) e de saúde pública.
O reverso da medalha destas melhorias é o surgimento de uma nova agenda de problemas sociais, que que podem se agravar nos próximos anos:
- aumento da pobreza urbana e problemas associados à de sorganização social. incluindo a violência urbana, a criminalidade e o recrudescimento de algumas doenças contagiosas, inclusive AIDS;
- problemas de atendimento médico e cobertura social para populações envelhecidas.
- problemas de degradação ambiental das concentrações urbanas.
Enquanto que a pobreza tradicional, no campo, é usualmente ignorada, a não ser quando dramatizada por situações extremas de fome, que felizmente não têm ocorrido no Brasil, as formas mais modernas de pobreza urbana, ou as situações de conflito resultantes dos deslocamentos provocados pelas transformações no campo, têm grande visibilidade, e produzem a imagem, que não é correta, que a situação brasileira, do ponto de vista da pobreza, está se deteriorando.
Sempre prevaleceu, no Brasil, a idéia de que os problemas da pobreza seriam resolvidos como resultante do processo de modernização e crescimento econômico do país, que iria, gradativamente, se estendendo aos setores sociais marginalizados (a teoria do "bolo"). Nas últimas décadas surgiram movimentos sociais, encabeçados sobretudo pelos setores progressistas da Igreja Católica, que colocaram a agenda da pobreza no centro de suas atenções, e nos anos mais recentes estes setores se viram engrossados por movimentos em defesa de grupos ou setores específicos, como as populações indígenas, a população negra e os camponeses sem terra. A mobilização destes movimentos encontra eco na imprensa nacional e sobretudo internacional, mas não chegou a se articular como uma proposta política integrada que aparentasse viabilidade no contexto brasileiro.
Podemos dizer, de maneira simplificada, que a agenda da social-democracia é a agenda dos benefícios e da proteção social da população em um contexto de desenvolvimento econômico e industrialização. É uma agenda de origem sobretudo européia, e está associada a questões como seguro-desemprego, educação e serviços médicos gratuitos, aposentadoria, financiamento à habitação, e assim por diante. Faz parte desta agenda o desenvolvimento e fortalecimento das corporações profissionais e o crescimento da administração pública, ela mesma profissionalizada e protegida. Existem duas interpretações, uma negativa, outra positiva a respeito desta agenda e a crise em que ela se debate hoje, mesmo entre os países desenvolvidos. A interpretação negativa é que a agenda social-democrática só foi possível graças aos grandes excedentes econômicos produzidos pela expansão capitalista nos países centrais, que teve condição, assim, de redistribuir parte de seus lucros para os trabalhadores e suas famílias. A interpretação positiva é que os aumentos do bem estar social, da educação e das condições de trabalho tiveram como conseqüência o aumento da produtividade, que permitiu então a ampliação dos benefícios proporcionados pela agenda social democrática. Independentemente do ocorrido no passado, a situação atual é que os países que mais implementaram a agenda social se encontram hoje acuados, por um lado, pelas dificuldades de seu financiamento, provocado pelo envelhecimento da população e pelos custos crescentes da saúde, da educação e da cobertura ao desemprego, e, por outro, pela competição dos países que deram ênfase à agenda da competitividade internacional, o Japão em primeiro lugar, depois os "tigres asiáticos" e hoje, cada vez mais, os próprios Estados Unidos.
No Brasil, a agenda da social-democracia começou a ganhar forma com a legislação social dos anos 30, e se intensificou a partir da Segunda Guerra. Sua principal característica, desde o início, era que ela excluía a população rural e da periferia das grandes cidades. Financiada no início pelos excedentes das atividades de exportação, mais tarde pelo aumento da capacidade impositiva do Estado, e fnalmente pela inflação, a agenda social-democrática sempre teve, no Brasil, um viés extremamente elitista, não só por excluir os mais pobres, mas inclusive pela distribuição perversa dos benefícios que proporcionava: gratuidade do ensino superior, combinado com educação primária pauperizada; aposentadorias generosas para funcionários públicos, e aposentadorias mínimas para os demais; gastos médicos concentrados nas grandes áreas metropolitanas dos Estados mais ricos, em detrimento das populações rurais e dos Estados mais pobres; e distribuição de privilégios profissionais e corporativos muito mais amplos do que os encontrados nos países mais desenvolvidos.
Existe uma clara associação entre a existência de um sistema político aberto e a agenda social democrática. Apesar de ter se iniciado nos anos 30, a agenda social democrática só se consolidou com o regime democrático pós 1945, e voltou a recrudescer com o fim do governo militar, culminando com a Constituição de 1988. Em duas ações, pelo menos, os governos militares tentaram introduzir algum equilíbrio entre a agenda da pobreza e a agenda social-democrática, com a unificação do sistema previdenciário e sua extensão ao campo, e com o Estatuto da Terra, que abriu a possibilidade de alterações mais significativas no sistema de propriedade da terra. Também datam deste período algumas iniciativas na área do saneamento e da saúde pública, com impacto significativo na situação de pobreza rural.
A crise da agenda social-democrática brasileira é semelhante à européia, no sentido em que está associada a custos crescentes e não financiáveis. Ela é agravada, no entanto, por dois fatores: os benefícios excessivamente generosos para determinadas categorias (as aposentadorias dos funcionários públicos, a ausência de limite de idade, a falta de limites claros para os dispêndios de atendimento médico, a educação superior gratuita, etc) e a persistência dos problemas relativos à agenda da pobreza, sobretudo da pobreza urbana.
A agenda do desenvolvimento nacional
Esta foi a agenda de praticamente todos os governos brasileiros do pós-guerra, civis e militares, até o esgotamento do chamado "modelo de substituição de importações", ao final dos anos 80. As características principais desta agenda foram a participação do Estado como promotor e agente direto de atividades econômicas e a proteção da indústria nacional em relação à competitividade externa. Esta agenda presidiu um longo período de grande expansão econômica do país, acentuado sobretudo nos governos de Kubitscheck e Médici, e permitiu a constituição da agenda social-democrata que se consolidou ao longo desses anos. O crescimento contínuo da economia parecia justificar a crença na teoria do "bolo", ou seja, de que os benefícios do desenvolvimento eventualmente atingiriam a sociedade como um todo, apesar de que o que se constatou foi um aumento acentuado da desigualdade. A persistência desta agenda nos anos 80, quando suas condições de viabilidade haviam se esgotado, foi mantida graças, primeiro, ao financiamento externo, e, depois, ao financiamento inflacionário, situações que se tornaram insustentáveis nos anos 90.
A agenda da competitividade internacional
Esta agenda tem como ponto de referência a experiência do Japão e dos chamados "tigres asiáticos", que seguiram um caminho muito distinto do Brasileiro, e, visto a posteriori, mais bem sucedido. O ponto principal, de nossa perspectiva, é a combinação que estes países conseguiram fazer entre a agenda de superação da pobreza e a agenda da modernização e do desenvolvimento econômico, sem passar, de forma mais significativa, pela agenda social-democrata. Estes países têm sistemas de amparo social notoriamente precários (em que pese as normas de estabilidade utilizadas pelas grandes corporações japonesas), mas conseguiram desconcentrar a propriedade rural e homogeneizar o acesso à educação para toda a população, gerando um capital humano muito significativo, utilizado com sucesso na modernização da economia. Uma outra característica destes países é a presença forte do Estado na atividade econômica, não como no modelo brasileiro, de proteção à indústria, mas de financiamento e de viabilização de uma estratégia de inserção altamente competitiva na economia internacional.
Uma série de ingredientes do modelo da competitividade internacional tem sido introduzida recentemente no Brasil, incluindo a abertura às importações, o esforço em voltar o sistema de ciencia e tecnologia para o setor produtivo, e a tentativa de reduzir os gastos associados ao modelo social-democrata antigo, que beneficia a pequenos grupos de privilegiados (e que são uma parte importante do chamado "custo Brasil", que baixa a competitividade internacional dos produtos brasileiros). A suposição geral é que, se a economia se tornar mais competitiva, isto aumentará o nível de renda e de emprego da população, atendendo desta forma às demandas da agenda da pobreza e também da social-democracia, despojada dos privilégios excessivos hoje existentes. Esta suposição, no entanto, tomada de forma isolada, acaba reproduzindo uma nova versão da "teoria do bolo". A experiência dos países asiáticos foi de que as transformações sociais, sobretudo na área da univesalização da educação básica e secundária, antecedeu o salto econômico experimentado por estes países; e esta situação não é muito distinta, deste ponto de vista, do que ocorreu em vários países europeus, e sobretudo nos estados germânicos, cuja preeminência econômica parece ter sido uma conseqüência, e não uma causa, dos investimentos em educação e capacitação técnica e científica.
Se isto é assim, isto significa que a agenda da competitividade não será capaz, por ela mesma, de dar conta das necessidades da agenda da pobreza. É possível um cenário em que o país recupere seu dinamismo econômico, em um novo marco de competitividade internacional, mantendo seus altos níveis de desigualdade, agravados pelos problemas gerados pelas transições demográficas e urbanas. A agenda da pobreza precisa ser implementada de forma independente e imediata, sem esperar os resultados da agenda da competitividade, e apesar das restrições orçamentárias que persistem, e que não podem ser reduzidas sob o risco de romper o equilíbrio macro-econômico e o controle inflacionário.
A nova racionalidade da ação pública e os populismos
A questão que se coloca hoje é, então, como implementar a agenda social no marco das limitações orçamentárias existentes, sem abandonar o já conquistado pela agenda social-democrata, em dentro de um regime político democrático. Parece claro que existe espaço bastante para ação, através de:
- uso mais eficiente dos recursos disponíveis. É sabido que o país gasta mal, sobretudo por falta de parâmetros adequados de avaliação e controle de qualidade de resultados. A introdução de sistemas de avaliação de resultados na área educacional, em todos os níveis, assinala o caminho que deve ser seguido. A eliminação de privilégios de grupos especiais é uma outra forma de fazer com que os recursos rendam mais.
- diferenciação. Grupos, regiões e situações diferentes devem ser tratadas de forma diferente. O princípio aparentemente democrático de assegurar a todos o mesmo tratamento acaba gerando desigualdades ainda mais profundas. Isto ocorre no mercado de trabalho, com a existência de regras homogêneas de contratação, da Votorantim ao botequim da esquina; nas normas relativas ao sistema educacional; no acesso supostamente universal (mas, na realidade, altamente seletivo) aos serviços médicos do setor público; e assim por diante.
- eficiência gerencial dos órgãos públicos. Isto requer uma reforma administrativa profunda do serviço público, introduzindo critérios de "accountability" e agilidade empresariais.
- descentralização. A transferência de responsabilidades executivas para os Estados e municípios permite, em princípio, trazer mais recursos para a ação governamental, e melhorar sua execução, dada a impossibilidade de controlar a ação na área social desde um centro nacional, em Brasília. Esta estratégia está sendo tentada em várias áreas, sobretudo na saúde, mas ainda não existem resultados claros sobre seus efeitos. O que parece claro é que a simples transferência de responsabilidades não é suficiente, porque os recursos descentralizados podem ser capturados por interesses políticos locais, e desviados de suas funções. A descentralização requer, como condição, o envolvimento da comunidade local no acompanhamento e gestão dos recursos, e, por outro, a implementação de parâmetros de avaliação e mecanismos de acompanhamento a nível nacional ou regional.
- envolvimento do setor privado, da comunidade e de organizações não-governamentais. O setor não governamental, em seus diferentes aspectos, detém um grande potencial de recursos e energia que pode ser colocado a serviço das políticas sociais e de desenvolvimento comunitário. As formas variam muito, desde a privatização de alguns serviços públicos, que passam a contar com a expertise e o capital de grupos privados nacionais e estrangeiros, até a expansão e o fortalecimento das associações de pais e mestres nas escolas, ou associações de moradores nos bairros.
A introdução destas novas modalidades de ação pública poderia, potencialmente, criar uma nova dinâmica na sociedade no enfrentamento dos problemas da pobreza. Ela tem sido dificultada, no entanto, pela resistência natural dos que até aqui se beneficiaram de situações especiais de proteção do sistema social-democrático do passado, pelos diversos populismos que ainda tratam de se apropriar dos recursos públicos em benefício de interesses privados, seja no formato mais antigo, em que uma "classe política" se mantinha em situações de poder através da troca de benefícios a seus eleitores, até nas formas mais modernas de apropriação da máquina do Estado por grupos de interesse privados, e mesmo criminosos.
Estas formas de populismo são inerentes aos sistemas políticos democráticos, mas a experiência brasileira de vinte anos de governo militar mostra que elas não desaparecem com regimes políticos autoritários. A modernização do Estado brasileiro, a mobilização da população para as questões da agenda social, a redução progressiva das formas mais danosas de populismo e gangsterismo político e eleitoral, tudo isto parece frutificar melhor sob os holofotes da imprensa e da opinião pública, nacional e internacional. Não há nenhuma garantia, naturalmente, de que este caminho que parece delineado seja palmilhado sem interrupção, e de qualquer forma o caminho será longo e espinhoso. Mas há uma direção a ser seguida, e isto já é dizer muito, nos dias de hoje.
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
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