Educação e avaliação sempre andaram de mãos dadas. O trabalho do educador é transformar o estudante naquilo que não era, desenvolvendo competências e habilidades, inculcando valores e ampliando seus conhecimentos. O educador precisa saber sempre se o estudante está aprendendo e se desenvolvendo, e os estudantes se miram no espelho de seus mestres para saber se estão de fato progredindo, formando assim sua autoimagem. Esta avaliação permanente ocorre em muitas atividades humanas, que estão sendo sempre sopesadas, de forma implícita ou explícita, em termos de sua qualidade, benefícios, custos, beleza ou prazer. O que é peculiar à educação – mas, novamente, não só a ela – é o desenvolvimento de sistemas complexos e sistematizados de avaliação, e o uso regular de seus resultados para diversos fins. A forma que estes sistemas assumem, e o papel que eles desempenham, dependem de muitos fatores, que variam de uma época a outra, e de uma a outra sociedade: suas tradições culturais e intelectuais, seu regime político-institucional, e os diferentes papéis que a sociedade atribui e espera da educação, em seus diversos níveis.
As funções tradicionais da educação: cimento e filtro social
A função mais tradicional da educação formal, ressaltada por sociólogos clássicos como Émile Durkheim e Talcott Parsons, é de transmitir valores e manter a coesão social, necessários sobretudo nas sociedades modernas e complexas. Durkheim, na França do início do século XX, contrastava as sociedades tradicionais, onde a coesão se daria pela similaridade das pessoas (solidarité mécanique) com as sociedades complexas, aonde as pessoas se complementariam pela divisão do trabalho social (solidarité organique). O jogo dos interesses individuais, dos contratualistas de antes e de hoje, não lhe parecia suficiente para manter a sociedade coesa. Era necessário,além disto, preservar e transmitir a cultura e dos valores, que no passado havia sido o papel da religião, e que, nas sociedades modernas deveria ser função dos sistemas educacionais. Esta idéia seria retomada décadas mais tarde nos Estados Unidos por Talcott Parsons, que atribuía às instituições educacionais a responsabilidade por uma das quatro funções centrais de qualquer sistema social viável, a de manutenção de valores e padrões de comportamento.1
Este tema, do papel da educação como cimento social, ficou por muitos anos fora de moda, superado por outras questões, como as necessidades do mercado de trabalho ou de equidade e justiça de acesso. Nos últimos anos, no entanto, o tema tem sido retomado com grande interesse, a partir dos estudos e pesquisas sobre a importância do "capital social", que seria a base sem a qual as instituições políticas e os mercados não poderiam funcionar (Putnam, Leonardi, and Nanetti 1993; Dasgupta and Serageldin 2000; Fukuyama and IMF Institute 2000). A outra função tradicional e clássica da educação é a de filtrar as pessoas para posições de prestígio e elite, conforme sua maior ou menor aderência aos cânones dominantes. O exemplo histórico mais famoso talvez tenha sido o do Mandarinato chinês, em que os literati se preparavam por anos, estudando literatura e caligrafia, para um exame que os levaria a uma das poucas posições de prestígio e poder na burocracia imperial. Não havia relação clara entre estes estudos e o trabalho que fariam depois. Esta pouca relação entre o conhecimento adquirido e as funções a serem desempenhadas no trabalho persiste até hoje, nos sistemas educacionais modernos. Como nos esportes ou nas artes, as pessoas não são avaliadas, somente, para saber se elas conseguem desempenhar de forma adequada suas funções, mas, também, para saber se elas são melhores ou piores que seus concorrentes. Esta função de filtragem pode ser bastante perversa, pois dá às pessoas uma ilusão de mobilidade social que depende do descenso de outras. Daí a noção, popularizada por alguns autores, de que a educação formal não passaria de um mecanismo de consolidação e reprodução da ordem estabelecida (Bourdieu and Passeron 1970). Na realidade, o fortalecimento dos sistemas de mérito e a valorização da educação fazem parte de uma profunda revolução que substituiu as formas mais tradicionais de hierarquia e prestígio social baseados no sangue e na propriedade da terra por uma nova hierarquia baseada na competência e no desempenho individual. O fato de que tenha havido compromissos e acomodações de toda ordem entre as antigas e as novas elites não diminui a importância desta transformação. Uma vez implantados os sistemas de mérito, no entanto, sua perpetuação pode fazer com que seus efeitos perversos adquiram maior relevo. Para os indivíduos, competir por um melhor lugar através da educação pode ser a melhor estratégia, principalmente para os que não são herdeiros de fortunas e filhos das antigas aristocracias. Para a sociedade como um todo, o crescimento sem limites da escolaridade formal e das exigências educacionais podem não trazer os benefícios que freqüentemente se imagina.2
As avaliações na educação tradicional
A implantação e manutenção destes grandes sistemas de formação, endoutrinação e filtragem das pessoas, por grandes burocracias públicas, não poderia ser feita sem mecanismos que garantissem, de alguma forma, que seus objetivos fossem atingidos. Na entrada do século XX, a maioria dos países da Europa ocidental, assim como o Japão e a Argentina, já haviam conseguido universalizar a educação básica, e avançavam a passos rápidos na implantação e universalização da educação secundária.
Em todos os países em que os governos centrais tiveram papel preponderante no financiamento e coordenação da educação básica e fundamental, os sistemas tradicionais de avaliação por consenso evoluíram para a busca de padrões nacionais que não dependessem exclusivamente das preferências e orientações subjetivas de cada professor e escola. As manifestações mais claras desta tendência foram os exames de conclusão da educação secundária, dos quais o Baccalauréat francês e o Abitur alemão, estabelecidos no século XIX, são os exemplos mais conhecidos. Em ambos os casos, as provas são acompanhadas por procedimentos extremamente complexos, de juizes e comissões de professores, que buscam fazer com que um determinado conceito dado por uma escola seja equivalente, em conteúdo, a conceitos equivalentes dados em todas as outras escolas. Estes exames são a culminação de sistemas permanentes de coordenação. acompanhamento e inspeções das escolas, que procuram garantir não somente que a qualidade da educação seja mantida, mas que todos os estudantes obtenham o mesmo tipo de educação. Assim, os resultados das provas finais seriam uma expressão pura das qualidades de cada indivíduo, independentemente de sua origem ou condição social, e serviriam para definir suas chances e lugar na hierarquia de oportunidades que se abrem aos de melhor desempenho, seja na universidade, seja na vida profissional.3
Estes sistemas foram concebidos em uma época em que poucos estudantes chegavam à escola secundária, e foram sendo flexibilizados na medida em que a educação média ia se expandindo e se diversificando. Hoje, na Alemanha, o ensino secundário acadêmico que conduz ao Abitur só é freqüentado por cerca de 1/4 dos estudantes, enquanto que a maioria segue cursos profissionais e técnicos de outro tipo. Na França, o antigo Bac acadêmico se transformou em um sistema diversificado, cada vez mais complexo, e de futuro incerto.
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