"Nenhum americano já não acreditava que o que era bom para a G.M. seria bom para a América.
O poder da Corporação tinha se tornado uma matéria de grave preocupação"
(Previts e Merino, 1998)
Há algo terrivelmente podre nas empresas americanas agora que nos deixa com náuseas.
Toda a nova-economia mentirosa e fraudulenta que fugiu dos anos 90,
voltou para ferroar-nos no you-know-what"
(Fortune, by Andy Serwer, 18/02/2002).
O objetivo deste trabalho é tentar visualizar aspectos históricos que evidenciam a exacerbação das fraudes contábeis no cenário econômico norte-americano das últimas décadas, relacionada à queda da contabilidade gerencial. A nosso juízo, quatro fatores históricos podem ser associados ao recrudescimento da fraude contábil naquele país: o primeiro, é a perda da competitividade de mercado, associada à baixa produtividade industrial; o segundo, é desenvolvido a partir da Guerra-Fria (corrida armamentista) com a expansão do modelo oligopolista; o terceiro fator, que está intimamente associado aos dois anteriores, é o envolvimento das empresas de auditoria independente com a alta gerência das mega-empresas ("gerenciamento por meio de números"); e o último fator, é a permissividade velada dos institutos auto-regulamentadores das normas e da profissão contábil (AICPA, FASB/FAF, AAA) com esse estado de coisa.
A onda de fraudes contábeis nos EUA não é, como muitos imaginam, algo espasmódico, ou episódico, restrito somente às imperfeições das normas contábeis, ou algo ligado à disfuncionalidade dos aparelhos normativos de auto-regulamentação. Ao contrário, no caso norte-americano, as fraudes contábeis têm raízes mais profundas, cujos reflexos podem ser percebidos através da formação cultural da classe contábil naquele país e do modelo de gerenciamento, em curso desde os anos 30, hoje, vinculado exclusivamente aos interesses do mercado de capitais – principal fonte de financiamento do capital industrial. Os modelos gerenciais, eixo investigativo da racionalização dos custos, perdem a relevância em favor da auscultação das flutuações do mercado de capitais.
A "indústria" de manipulação da informação contábil atinge o seu cume com a espetacular derrocada da gigante Enron, maior empresa norte-americana do setor elétrico. Ela arrastou consigo a Arthur Andersen, gigante da auditoria independente, além de provocar também a queda das Bolsas de Valores e colocar em evidência a credibilidade das Big Five (cinco maiores empresas de "auditoria" do mundo).
As razões da queda do gerenciamento contábil norte-americano
Parece haver unanimidade entre os historiadores contábeis de que "até 1925, as indústrias americanas tinham desenvolvido, virtualmente, todo o processo de contabilidade gerencial conhecido hoje" (Johnson e Kaplan, 1987; Hopper e Armstrong, 1991; Hoskin e Macve, 1994; Anne Loft, 1995; G. Previts e B. Merino, 1998; Ezzamel, Hostin e R. Macve, 2000; R. K. Fleischman e L. E. Parker, 2000 e muitos outros). Mas, os historiadores divergem quanto aos fatores que provocaram tal queda. Historicamente, sabe-se também que o gerencialismo é fruto do pensamento norte-americano, e que a sua origem possibilitou a formação das grandes corporações estadunidenses, embora haja controvérsias quanto a sua eficiência gerencial.
Para Johnson e Kaplan (1987), após a formação dos grandes conglomerados (estruturas verticalizadas e multidivisionais), muda-se o enfoque do gerenciamento dos custos para a contabilidade de custos e, por causa disso, as indústrias norte-americanas perderam a produtividade (1925 até 1980). Hopper e Armstrong (1991) discordam das teses defendidas por Johnson e Kaplan, alegando que:
"Na medida em que as organizações cresceram em tamanho e complexidade, o problema do empenho da gerência intermediária em relação às necessidades do proprietário do capital, foi direcionado pelo desenvolvimento da mensuração do retorno sobre o investimento, para garantir dividendos. Um re-exame do caso da General Motors, relatado por Johnson e Kaplan, indica que a efetividade dessa medida dependia, pelo menos em parte, do ‘sistema dirigido’ de emprego e das campanhas anti-sindicalismo que garantissem aos gerentes intermediários jogar os custos de flutuação econômica e recessão diretamente para a força de trabalho [...] Subseqüentemente, o sistema dirigido caminha para (e parcialmente criou), a recessão Americana de 1930, da qual re-emergiu o movimento trabalhista e com um compromisso do governo [Roosevelt] com algumas medidas de suporte legislativo em favor do sindicalismo e da estabilidade de emprego. Nessas circunstâncias, perde-se a relevância dos sistemas de contabilidade de 1920. As gerências se tornaram menos capazes de agir sobre a informação contábil, que os dizia onde e quanto cortar nos custos diretos de mão-de-obra. Portanto, as grandes corporações, ajudadas pelas posições de monopólio, que elas impunham crescentemente, começam a empregar orçamentos para os mais diferentes propósitos, no sentido de preservar um acordo com suas principais forças de trabalho, por meio do monopólio de política dos preços" (apud: Edwards, pp. 291-2).
A NIRA (New Deal) e a mudança comportamental para o pseudomercado
Após a quebra da Bolsa de Nova Iorque, surge a plataforma política de Roosevelt, baseada na recuperação dos mercados, implementada a partir de março de 1933, quando ele foi eleito presidente. Sua política estava estruturada no New Deal, cuja espinha dorsal, a NIRA (Lei de Recuperação da Indústria Nacional), vigeria por apenas dois anos e teria por objetivo extirpar a "competição predatória" da Era pré-Depressão, apontada por Roosevelt e seus seguidores como sendo a maior causa da falha do mercado (Johnson, 1935, p. 160; apud: McNair & Vangermmeersch, p. 43).
Roosevelt nomeou Hugh Johnson para dirigir todos os programas de re-estruturação do mercado competitivo norte-americano. No todo, 352 itens de programas separados, lidando com o conceito de "custo", foram desenvolvidos durante os dois curtos anos em que a NIRA funcionou [Lyon, e outros, 1935]. A pretensão era estabelecer um sistema de custos uniformes de tal forma que revertesse o processo de deflação (queda dos preços).
McNair & Vangermmersch argumentam que "o elemento essencial da NIRA e de seu impacto sobre a economia de mercado existente na América, antes de 1933, é o acordo implícito para destruir o mercado, com base no preço fixo, substituindo-o pela recuperação do custo cheio mais o "lucro razoável". Como observado amplamente pelos textos do período, a meta da NIRA era definir o conceito de competição "justa", e eliminar os predadores que estavam contribuindo para a destruição da economia [...] As práticas de contabilidade de custo tiveram um papel constitutivo na forma da economia do New Deal e sua pseudo-estrutura de mercado competitivo" (p. 48).
A economia norte-americana se transformou num pseudomercado em que os preços foram monitorados pelo governo por meio de instrumentos contábeis, como o custo uniforme (fixação de preços) e o custeio por absorção. A competição por meio de um sistema livre de mercado laissez-faire foi substituída por regras de custos e regulamentações estabelecidas pelo governo. Essas regras de mercado persistiram no cenário norte-americano até meados de 1970, quando foram acirradas as concorrências do mercado globalizado, tendo por protagonistas principais: as grandes inovações de estratégias de custos criadas pelos japoneses; o avanço tecnológico dos alemães; e depois o aparecimento dos "tigres asiáticos".
A profissão de contador e de auditor se fortaleceu e ocupou espaços na economia norte-americana de maneira jamais vista no mundo ocidental. Grandes corporações de profissionais da contabilidade se desenvolveram, nesse período, em especial, as corporações de profissionais de auditoria. A pretensão era de que a auditoria conseguisse reduzir as fraudes empresariais que se avolumavam persistentemente. Armstrong enfatiza ainda o "papel positivo dos contadores em criar trabalho para eles próprios. Tendo obtido um papel na hierarquia, eles foram capazes de se moverem dentro de posições poderosas no seio da estrutura multidivisional, agrupando sob autoridade deles as técnicas de contabilidade de custos, desenvolvidas pelos engenheiros" (apud: Loft, p. 197). A partir da década de vinte, especialmente no momento de consolidação da presença das grandes empresas de auditoria, a influência do contador-auditor foi mais intensa e decisiva politicamente, no cenário econômico norte-americano.
As conseqüências do pós-guerra
A Grã-Bretanha não conseguiu se enquadrar na nova máquina de produtividade e perdeu o trem da história. "Os métodos americanos eram ‘métodos de rebanho’, comentou um britânico do alto de seu desdém" (Landes, p. 520).
Do outro lado do mundo, devastado pela guerra, o Japão surpreendia o mundo com sua rápida recuperação e uma impressionante capacidade de produção industrial. Relata Landes: "em parte, foram inspirados pelo exemplo norte-americano, sobretudo a doutrina de W. Edwards Deming, que se tornou um respeitado profeta longe de seu próprio país. Mas a idéia, por si só, não teria sido suficiente. Foi a ética japonesa de responsabilidade coletiva – simplesmente, não se deixa o parceiro cair – que promoveu o efetivo trabalho de equipe, a troca de idéias entre os trabalhadores e os administradores, a atenção ao detalhe para eliminar o erro (defeito zero)" (p. 532).
Do ponto de vista econômico, as décadas seguintes (70/80) seriam de grande preocupação para os norte-americanos por causa do espantoso crescimento da produtividade industrial japonesa, ameaçando a sua hegemonia industrial. A Alemanha também se recuperaria dos traumas da guerra, conseguindo alcançar resultados muito expressivos em pouco tempo. A recuperação industrial da Alemanha e do Japão se deu, essencialmente, por causa da produtividade conseguida pelas indústrias, associada a novas tecnologias.
A "era das contradições" e expansão dos mercados norte-americanos
Não era um momento muito consistente para os modelos gerenciais contábeis, que, como dissemos anteriormente, passaram de 1930 até 1970 tentando reencontrar mecanismos que os reconduzissem à produtividade. É possível, contudo, que a expansão de mercado para outros países, especialmente para os menos desenvolvidos, tenha acomodado as preocupações dos industriais quanto à produtividade de suas empresas.
De outra parte, a pareceria entre "grandes empresas/grande estado" (Eisenhower) dinamizaria a economia e o sonho norte-americanos, por meio do complexo industrial militar ("military industrial complex"), montado depois da Segunda Guerra Mundial, para enfrentar o grande inimigo comum: o comunismo. A partir da década de sessenta, o planeta, visivelmente, se dividiu em duas metades: o leste (comunista) e o oeste (capitalista).
Os Estados Unidos se preparam para dominar o mundo e o capital tem um papel fundamental nesse novo cenário. A informática, conseqüência dos elevados investimentos estatais na máquina de guerra, é a pedra angular para a expansão financeira nas décadas seguintes. Mas, o grande obstáculo a ser vencido seria a União Soviética e a China (que a partir das revoluções de Mao Tse Tung, na década de 70, disparou a crescer, economicamente, a taxas em torno de 10% aa). Após a década de 90, com o desmoronamento da União Soviética, o único inimigo poderoso continua sendo a República Popular da China, que ainda hoje mantém taxas de crescimento bem acima da média mundial. Os princípios e procedimentos contábeis são divulgados em escala continental. A base desses princípios é utilitarista e voltada para o interesse dos mercados de capitais.
Direito de propriedade privada e os princípios contábeis norte-americanos
A expansão dos conglomerados já era motivo de grandes preocupações dos economistas daquela época. Previts e Merino relatam que:
"a economia sofria mudanças estruturais fundamentais e permanentes. Alguns teóricos, como Herbert Simon (1947), argumentavam que o melhor a fazer era abandonar a retórica de livre mercado e reconhecer que os Estados Unidos agora tinham uma economia organizacional. Sua mensagem: a mão invisível de Adam Smith não era mais operativa. Corporações poderiam administrar preços; os gerentes das corporações, não o mercado, controlavam a alocação dos recursos da sociedade. Muitos americanos, incluindo os contadores, não estavam prontos para aceitar uma mensagem que parecesse diminuir o princípio fundamental do paradigma dos direitos da propriedade privada" (p.299). "Joseph Schumpeter (1946), o conservador economista de Harvard, expressava sérias reservas sobre a habilidade do sistema de livre mercado sobreviver frente à crescente concentração de indústria. Ele receava que a emergência de uma classe gerencial poderia condenar o capitalismo ao insucesso" (p. 301).
Toda a discussão sobre o poder dos gerentes para administrar a riqueza dos proprietários, com a bênção dos contadores/auditores, preocupava Schumpeter e Penrose por causa do curso tomado pelas corporações enquanto concentração de riqueza, de poder e de corrupção. Uma pesquisa de opinião, feita em 1947, computava que 45 por cento da população acreditavam que as demonstrações contábeis eram mentirosas e 40 por cento acreditavam que os lucros registrados eram falsificados (Previts e Merino, p. 333).
Do ponto de vista político, econômico e social, a temperatura já estava alta: o Congresso tentava controlar a cartelização dos preços por meio de extensivas investigações; a automação ameaçava o emprego dos brancos (os negros permaneciam à margem); os contrastes se avolumavam com a defesa dos direitos civis, ações afirmativas, manifestações contra a poluição ambiental, o consumo, controle nuclear, guerra do Vietnan e o assassinato de Kennedy. Previts e Merino dizem que a década de 50 "foi descrita como a "era das regras"; trabalhadores se tornaram sujeitos de freqüentes testes, como a psicologia industrial e a engenharia humana que tomam lugar nas fábricas" (p. 300). Previts e Merino afirmam ainda:
"a nação entrava num círculo vicioso. As mesmas preocupações que os políticos exacerbaram na virada do século sobre o enorme poder dos capitalistas financeiros, re-emergiam. Outra vez, os contadores estariam sob escrutínio. O direito profissional de estabelecer padrões práticos de contabilidade estava em jogo, e as críticas ao processo de auditoria se aceleravam" (p. 301).
Esse imbróglio caiu no colo das entidades de classe contábil que tentavam buscar uma saída paliativa ao tempero da sociedade americana. Era uma queda de braço entre, de um lado, a população, a Corte e o Congresso norte-americanos e, de outro, as entidades de classe contábeis, que, ainda hoje, conseguem se eximir das responsabilidades inerentes à auditoria. Surge, novamente, o debate sobre o direito de propriedade privada, agora sob o enfoque do resultado contábil (acumulação de capital).
Previts e Merino lembram que DR Scott (1932) tinha previsto que em uma economia administrada, o resultado contábil se tornaria o principal mecanismo de distribuição da riqueza da sociedade, e que George O. May (1952) também teria alcançado a mesma conclusão escrevendo que se o resultado contábil já não tivesse se tornado num fenômeno político estaria muito próximo disso (p. 302).
Alguns alegavam que o resultado contábil era inócuo ao considerar o fato de que os conglomerados estabeleciam os seus próprios preços. "O que o lucro representaria se as corporações administrassem os preços?", questionava Edith Penrose. Claramente, ela respondia, "nada que fosse a eficiência do gerenciamento" (Previts e Merino, p. 302). Na verdade, para esses conglomerados, o risco do negócio não existia, só a certeza do lucro, que estava na medida da capacidade de sua cartelização. Por essa razão as decisões em matéria de resultado auferido pela propriedade privada tornaram-se objeto da esfera política. E o primeiro passo nesse sentido foi a substituição dos dois organismos que tratavam da padronização contábil, o Comitê sobre Procedimentos Contábeis e a Câmara dos Princípios Contábeis, por causa, segundo Previts e Merino, da omissão da profissão em apreciar o quanto a extensão da determinação do resultado e a normalização contábil tinham se tornado politizadas. "As conclusões de Moonitz (1974:23) em relação a CAP não são surpresa. A CAP claramente mostrava que a determinação dos princípios contábeis era mais política do que um processo teórico..." (Previts e Merino, p. 289).
A intromissão de fatores políticos nos rumos da contabilidade
Política, economia e contabilidade eram (e ainda são) faces da mesma moeda. E isso incomodava os interesses da classe contábil (status quo) que, aliada aos gerentes e aos proprietários, ainda preservavam a regra do jogo: manutenção dos ganhos dos conglomerados. Era hora de dar vestes técnicas ("científicas") à contabilidade, ou seja, estruturá-la de tal maneira que pudesse transformá-la em algo complexo e prático, do ponto de vista conceitual. O curso iniciado depois da quebra da Bolsa, em 1929, prosseguia, mas, agora, com maior objetividade em torno da padronização, sem, contudo, cair na uniformização, como fizeram os alemães, os franceses, os belgas, e mais tarde os espanhóis. Era de suma importância para o contador manter o controle da auto-regulamentação das práticas contábeis. Assim, as regras deveriam ser maleáveis o bastante para sempre exigirem a "opinião" do contador. O que estava em jogo era a aliança entre as corporações industrias e as corporações de auditoria.
O processo político para a determinação das práticas contábeis norte-americanos permanecia criando fortes embates entre a SEC (órgão de fiscalização das Bolsas) e as entidades da classe contábil. A tentativa de padronização se dava por meio de conceitos contábeis úteis, não por meio de funções contábeis. Inúmeros pesquisadores foram envolvidos na tentativa de encontrar uma resposta consistente que pudesse expressar, com maior transparência, os ganhos dos proprietários (maior preocupação política daquela época). Nomes expressivos do meio acadêmico foram chamados para dar novos contornos à contabilidade, visto que o problema envolvia variáveis complexas, como por exemplo, a forma de expressão dos valores monetários na estrutura contábil (valores históricos ou correntes).
Resistência à contabilidade e à responsabilidade sociais da corporação
A teoria da entidade, de Paton e Littleton (1940) tentava reconciliar a teoria econômica neoclássica, separando a propriedade do controle. Previts e Merino afirmam: "a teoria assume que os gerentes deveriam ‘balancear os interesses de todas as partes’, entretanto, os gerentes deveriam avaliar o resultado da entidade, não o resultado para os proprietários" (p. 317). Os dois autores relatam ainda que "embora os contadores tivessem tentado responder positivamente às demandas do governo na transparência das informações, para proteção do investidor, eles teriam sido relutantes em estender suas atividades para se tornarem os guardiões da sociedade [...] Muitos contadores se viam aumentando a riqueza social ao facilitar a acumulação de capital dentro de uma sociedade de manufatura-orientada, segundo a visão da tradicional economia neoclássica" (p. 318). Os contadores achavam que seus trabalhos eram simplesmente práticos, não lhes cabendo estabelecer maiores relações com a economia. A análise social do desempenho das corporações não deveria ser considerada dentro do escopo tradicional das responsabilidades do profissional da contabilidade. Carl Devine (1960) sugeria que enquanto os contadores não pudessem aguardar a alteração dos padrões éticos da sociedade, significativamente, o profissional deveria considerar suas responsabilidades sociais e desenvolver uma estrutura prática para auxiliar no preenchimento das metas sociais (Previts e Merino, p. 319).
"enquanto o conceito de ‘responsabilidade social da corporação’ nunca era completamente aceito, profissionais começavam a reconhecer que quando padrões específicos existiam (e.g., combate à pobreza, planejamento da cidade, relatórios ambientais) para implementar metas sociais específicas, o profissional tinha a obrigação de responder. Em 1972, a resposta do Instituto de Auditores – AICPA para exigir medidas de desempenho social foi a monografia "Mensuração Social da Corporação" que propunha um tipo de auditoria social. Entretanto, enquanto muitos contadores mantinham a contabilidade social e a auditoria social, em teoria, os esforços para fazer as mensurações sociais operacionais encontravam significativa resistência. Críticos reivindicavam que os defensores da contabilidade e auditoria sociais apresentavam vagas propostas com poucas idéias para implementação [...] Nesse intervalo em que os direitos de propriedade privada não eram mais considerados sacrossantos, termina bruscamente com o embargo do petróleo em 1970; as preocupações econômicas, uma vez mais, tornaram-se soberanas e o interesse na contabilidade e na auditoria sociais caíram no esquecimento" (p. 319-20).
É possível que a pesquisa contábil norte-americana, naquele momento, tenha perdido a oportunidade do grande salto qualitativo. Os norte-americanos teriam produzido, possivelmente, os instrumentos necessários para redimensionar a magnitude dos recursos humanos, no novo contexto econômico-social, o qual já se desenhava a partir da década de 60 (especialmente, a automação das linhas de produção). Tanto que Lee Brummett, Eric Flamholtz e William Pyle (1968) já tinham delineado os argumentos para a contabilidade de recursos humanos, observando que a mensuração poderia ser um problema significativo. W. E. Deming também sugerira às corporações gastar dinheiro para treinar os trabalhadores em vez de focar sobre a minimização dos custos da mão-de-obra. (apud: Previts e Merino, p. 323). "Essa idéia foi alienada pela cultura corporativa americana" (p. 323). E eles estão pagando um preço elevado por isso. Não ter seguido o curso natural do processo investigativo tem custado aos norte-americanos a perda da relevância da contabilidade gerencial; oportunidade que não foi perdida por outros países, como o Japão, Alemanha, Suíça, França e outros. Certamente, tal atitude pode ser debitada na conta das entidades de classe contábeis norte-americanas que, a pretexto da manutenção do próprio status quo, forçaram outro caminho: o da resistência em abandonar o paradigma dos direitos de propriedade privada, possivelmente, influenciada pela defesa dos ganhos dos proprietários e dos seus próprios, e pelos "relacionamentos autoritários dentro das grandes firmas" (Coase, 1937; apud: Previts e Merino, p. 120) que elas ajudaram a implementar.
Os "profetas de papel" e a indústria da informação contábil
O setor de serviços dos profissionais de contabilidade nos Estados Unidos, nas últimas décadas, ocupa um espaço significativo na economia. Esse setor é comandado pelas firmas denominadas de "big five" (as cinco maiores), antes "big six" (as seis maiores), que prestam serviços de auditoria e de consultoria (tributárias, gerenciais, riscos gerenciais, tecnológicas e vários outros serviços), além de venderem outros pequenos serviços, cujo faturamento não é nada desprezível (veja dados ao lado, da Agência Reuters, publicados pelo Washington Post, em 6/12/01).
As Big Five firmas de serviços profissionais |
||
Companhias |
Receitas ( $bi ) |
Empregados |
PwC |
22,3 |
150.000 |
Deloitte Touche Tohmatsu |
12,4 |
95.000 |
KPMG |
11,7 |
100.000 |
Ernest & Youg |
9,9 |
84.000 |
Andersen |
9,3 |
85.000 |
Fonte: Reuters (Washington Post) |
O faturamento global das cinco empresas é mais de US$ 65 bilhões, as quais empregam 514 mil funcionários. Esse faturamento representa, na data de hoje (mar/2002), quase duas vezes as reservas internacionais do Brasil em moeda estrangeira (US$ 35 bi). Evidentemente, esse faturamento, comparado ao PIB norte-americano (US$ 11 tri), nada representa.
Mas, indubitavelmente, as Big Five ocupam um papel chave (estratégico) dentro da economia norte-americana, na medida em que auditam e orientam, diretamente, os maiores grupos empresariais norte-americanos, além de outros no resto do planeta (na Europa, Ásia, A. Latina). E isso tem trazido, conforme já abordamos, sérios problemas e desconfortos em relação à transparência das informações contábeis para o público investidor e, não raro, fortes choques culturais, em se tratando de outros países.
Sempre que surge uma fraude de proporções relevantes, uma dessas empresas está envolvida, visto que elas estão em todos os continentes sob a forma de contratos do tipo franquia (parecerias contratuais, ou algo parecido), abrindo, assim, o espectro de atuação e diversificação dos produtos ofertados no dito cenário globalizado, como se fossem ervas daninhas (veja Tabela acima, elaborada pelo Washington Post, 06/12/01, para o cenário estadunidense).
A verdade é que as Big Five já deixaram de ser, há muito, empresas de auditoria (papel preponderante: a defesa dos direitos dos investidores) para se tornarem aliadas das empresas multinacionais, além de serem "parceiras" dos Institutos que elaboram as normas contábeis. Quatro, das cinco citadas na Tabela acima, têm em torno de 70% de seus faturamentos concentrados em não-auditoria. Apenas a Ernest & Young ainda mantêm mais de 50% de seu faturamento somente com auditoria.
Os "números sujos" e a manipulação do ranking na Bolsa de Nova Iorque
A queda da contabilidade gerencial norte-americana tem conduzido a alta gerência das empresas (com a conivência "gerencial" das Big Five) ao desespero e ao esgotamento em busca de resultados miraculosos. Tudo tem sido feito para manter suas empresas operando com resultados financeiros positivos, o bastante para fazer o preço de suas ações se destacarem no ranking de classificação das melhores. Caso contrário, a queda no preço das ações significa queda nas atividades operacionais (perda de mercados). Então, nesse jogo do "vale tudo", iniciativas escusas, ilegais e fraudulentas têm sido a tônica de inúmeras mega-empresas norte-americanas, em que Enron/Arthur Andersen não são exceção à regra. É um mar de lama fétida que surpreende até mesmo os mais experientes e moderados: "é duro não ficar irritado", diz Hank Paulson, executivo da Goldman Sach, em entrevista ao Fortune (18/02/02). "Debaixo desses comentários e do estado nervoso na Wall Street, deita a crise de vitalidade da contabilidade" (Financial Times, 01/02/02). Crise que tem sido estabelecida por falta de credibilidade nas auditorias, no Instituto de Auditores (AICPA) e nas normas regulamentadoras (FASB) daquele país (os famosos GAAP Princípios Contábeis Norte-americanos, que são taxados por vários segmentos daquela sociedade de "flexíveis", "inconsistentes" e "vagos").
O Financial Times, do dia 4/03/02, relata que para cada $1,00 que as Big Five ganham com os serviços de auditoria, os contadores ganham $2,69 pelos trabalhos de não-auditoria, segundo pesquisa feita pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC). Larry Rittenberg, professor de contabilidade da University of Wisconsin at Madison, em entrevista ao Financial Times, disse: "a coisa que me preocupa é que você fica abaixo da linha dos interesses entre o auditor e o cliente [...] O auditor começa a ver coisas não muito diferentemente daquelas dos gerentes: ele começa a imaginar que seu crescimento depende do crescimento da companhia". Em outra matéria, divulgada em 13/02/02, o Financial Times relata:
"transações fora do balanço patrimonial tem sido amplamente adotadas pelas companhias nos últimos anos para ocultar dívidas e massagear o desempenho financeiro. As normas contábeis que governam o seu uso, entretanto, tem sido criticadas como muito vagas" (Financial Times, 13/02/02).
O jornal especializado em finanças, Fortune, tem publicado, desde a eclosão do caso Enron, inúmeros artigos tratando das sérias dificuldades por que passa o setor industrial norte-americano nesse momento. Numa seqüência de publicações no Fortune, os articulistas Andy Serwer e Shawn Tully desnudam as manipulações fraudulentas promovidas por uma infinidade de empresas norte-americanas. Shawn Tully, em tom ácido e com indignação e repúdio, convida os leitores a se atentarem para certas armadilhas em torno dos "lucros":
"eles [contadores, analistas e corretores] são vilões de fala mansa que tem um interesse travestido para confundir você [...] As companhias – a Wall Street – querem que você acredite nas versões de lucros inflados, porque lucros robustos fazem os preços das ações subirem [...] Legalmente, muitas companhias não estão fazendo nada de errado. Elas usam táticas perfeitamente aceitáveis para manipular os números oficiais que a SEC exige – chamados lucros GAAP (Princípios Geralmente Aceitos pela Contabilidade). Mas, explorando as regras dóceis dos GAAP as companhias violam seu espírito. E seus lucros não são o que parecem ser" (18/02/02).
Shawn faz quatro recomendações para que o investidor não seja enganado pelas fraudes: "após você ter olhado para a bandeira vermelha ("red flag"), você deve":
Pode-se ainda acrescentar às recomendações de Shawn, as Special Purpose Entities-SPE ("Entidades para Propósitos Especiais") também permitidas pela legislação norte-americana. As SPEs são a válvula de escape para fazer desaparecer transações (fora do balanço patrimonial). Como vários instrumentos complexos, relata Jeremy Kahn (Fortune), "as SPEs foram criadas para desempenhar o papel de uma continuidade, tarefa necessária – isolando e contendo riscos financeiros. Empresas que desejam desenvolver tarefas especializadas – a compra de uma aeronave, uma frota de aeronaves; a construção de um grande projeto imobiliário – poderiam organizar uma SPE, transferindo o financiamento para a nova entidade. Por exemplo, uma companhia deseja construir um gasoduto, mas não quer assumir todas as dívidas, poderia organizar uma SPE – essencialmente, uma joint venture com outros investidores – para construí-lo". No entanto, esse instrumento tem sido utilizado para descarregar transações ilegais uma vez que elas não aparecem no balanço patrimonial, como é o caso da Enron.
Shawn pode acrescentar também à sua lista as transações "hollow-swaps", rotineiramente feitas pelas empresas de telecomunicações, que são legítimas e contabilmente corretas, desde que haja lastro no caixa para poder suportar os compromissos assumidos no futuro. Mas, não é isso que KPNQuest e outras têm feito. As revelações vêm da Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (SEC) ao investigar a falência do grupo de Telecomunicações Global Crossing, incluindo alegações de que hollow swaps foram usados para mascarar os lucros. A KPNQuest, uma rede pan-européia, disse que 15 por cento de suas receitas vêm da capacidade swapping, embora alegue que essas operações sejam legítimas.
O caso Arthur Andersen/Enron: o fundo do poço?
Por sintetizar com muita propriedade o desenrolar das ações fraudulentas da Enron, transcrevemos abaixo um trecho do artigo escrito pelo Prof. Oriol Amat, publicado no LaVanguardiaDigital (em 01/02/02):
Tudo faz pensar que na Enron houve uma maquiagem contábil ilegal, ou seja, uma fraude contábil. Até 2001, a companhia não havia incluído em suas contas as correspondentes a três filiais constituídas nas Ilhas Caiman, que contraíam empréstimos bancários, avalizados pela Enron. Com esses empréstimos, as filiais adquiriram ativos da empresa matriz a preços superiores aos de mercado, com os quais geraram lucros fictícios nesta, no total de 591 milhões de dólares em quatro anos. Com tudo isso, a Enron estava inchando os ativos, além de seus lucros e, simultaneamente, ocultando dívidas. E o tratamento correto de todas essas práticas implica reduzir os lucros da companhia de 1997 até 2000, em 591 milhões de dólares e também os fundos próprios ao final de 2000 em 1,164 bilhões de dólares. A contrapartida dessa redução de fundos próprios é uma elevação das dívidas e uma menor valoração dos ativos [...] No ano de 2000, as ações da Enron estavam cotadas a 90 dólares, o que implicava avaliar a companhia num valor total de 70 bilhões de dólares. Tendo em conta que os lucros declarados desse ano foram 979 milhões de dólares, é um exemplo típico de bolha financeira, já que o valor era totalmente desproporcional em relação aos lucros que a empresa gerava. Quando a recessão fez cair as margens, a companhia começa a sofrer perdas e, ao se saber também que havia um estado de maquiagem das contas dos anos anteriores, os investidores venderam suas ações de forma súbita e o preço dessas sucumbiu. Pouco depois (dez/2001), ela entrou em concordata".
Jeremy Kahn (Fortune, 18/02/02), afirma que a Enron empregou todas essas táticas [SPEs e outras] [...] E ela tinha quase 900 sociedades fora do balanço patrimonial, localizadas em paraísos fiscais, um fato que enganou totalmente os especialistas. ‘Se uma companhia tivesse quatro ou cinco dessas coisas, já seria muito’, diz Allen Tucci, sócio da Tucci & Tannenbaum. Os diretores da Enron, ao perceberem que o barco estava afundando, trataram de vender logo suas ações, faturando mais de $1 bilhão de dólares.
Quando o escândalo veio à tona, a Arthur Andersen, empresa responsável pela auditoria da Enron, num lance suicida, saiu "alterando, destruindo e mutilando" toda a documentação que pudesse comprometê-las (Enron/Andersen). Esse procedimento alcançou diversas cidades norte-americanas e européias, onde a Enron operava. Segundo a imprensa especializada, toneladas de papéis foram destruídas, além de arquivos de computadores e e-mails "deletados" e tudo mais que pudesse ser rastreado pelas autoridades competentes (FBI, Congresso, etc). Em 07/03/02, a Andersen foi acusada pelo Grande Júri de obstrução à Justiça. Isso pode culminar com a falência da Andersen também, exceto, se as negociações de Paul Volker (ex-presidente do FED e atual presidente do IASB) forem bem sucedidas no Congresso.
Nesse ínterim, o PCN Bank levou um golpe de $155 milhões de dólares em suas receitas. Porque? Por que a SEC e o Banco Central (FED) forçaram-no a re-incluir três SPEs no seu balanço patrimonial.
Assim, Andy Serwer conclui que "o preço que nós, o público, pagamos por tudo isso é absolutamente estarrecedor. O anterior chefe de contabilidade da SEC, Lynn Turner, que está agora ensinando na Colorado State University, estima que nos últimos seis anos, o custo para os investidores – em termos de perdas do mercado acionário – de reformulação financeira, é bem superior a $ 100 bilhões de dólares, sem incluir a Enron [...] Nos últimos dias de janeiro, as ações da Tyco, Cendant, Williams Cos., PNC, Elan, e Anadarko foram brutalmente punidas por alegarem ou reconhecerem problemas contábeis ".
A cultura da fraude nas demonstrações contábeis norte-americanas
O cenário das fraudes contábeis norte-americanas, como vimos, tem se ampliado brutalmente nas últimas décadas. As contestações do cidadão comum, as preocupações dos economistas e dos políticos em torno do poder das mega-corporações, desde os anos 40/50, sobretudo, quanto à manipulação de capitais pelos gerentes/auditores, parecem ser procedentes. No final da década de 60, iniciava-se uma explosão de ações judiciais contra os auditores por causa da quantidade de fraudes nos relatórios contábeis. Nas décadas de 70 e 80 o problema das fraudes contábeis se tornou tão grave que o Congresso constituiu uma Comissão, conhecida por Comissão Treadway, para direcionar esse problema, bem como, um número de outras questões resultantes das diferenças entre o que os auditores estavam fazendo e o que o público esperava deles (McMann, p. 114). Em 1985, o Wall Street Journal publicou um artigo relatando: "são arquivadas mais ações judiciais contra os contadores nos últimos 15 anos do que em toda a história anterior da profissão" [Berton, 1985].
Antes da organização formal da profissão de auditor, portanto, antes de 1900, a detecção de fraudes nas demonstrações contábeis era responsabilidade dos auditores práticos. Paul J. McMann e outros (1996), afirmam que nenhum outro problema tem causado tantos danos à credibilidade da profissão quanto os casos onde as irregularidades e as fraudes se espalham sem a detecção do auditor [St. Pierre, 1983]. "... o abandono da responsabilidade de detectar as fraudes nas demonstrações contábeis foi um erro e que os passos que a profissão tem tomado para avaliar a responsabilidade para detectar as fraudes não são suficientes" (p. 114).
Em 1933, quando o Congresso estava analisando a Lei de Ações, houve uma proposta para submeter as demonstrações contábeis aos auditores do governo em vez de auditores independentes. Ou seja, propunha-se a estatização da auditoria. Com efeito, a profissão foi capaz de convencer o Congresso de que os auditores privados seriam capazes de fazer os exames exigidos mais rapidamente e mais economicamente do que os contadores do governo (Miller, 1986). Assim, mais uma vez, os institutos representativos da classe contábil conseguiram virar o jogo.
Segundo os autores do trabalho, ainda não está claro por que os auditores, implicitamente, aceitavam a responsabilidade das fraudes nos relatórios financeiros em anos anteriores de sua prática, mas abandonaram-na anos mais tarde. Os autores enumeram as seguintes razões possíveis:
Por causa das pressões da opinião pública, da Corte Suprema, da mídia e do Congresso norte-americano, o Instituto de Auditores–AICPA elaborou uma norma específica de auditoria que deveria ser seguida por todos os auditores. Mas, parece que a referida norma, ainda hoje, não tem sido levada tão a sério porque as fraudes continuam ocupando espaço de destaque nos cenários econômicos de alguns países desenvolvidos, além dos EUA. As pesquisas feitas pela KPMG nos dão conta disso. Os fatos recentes e o relatório da KPMG evidenciam que, entre os seis maiores países, os Estados Unidos e o Canadá são os líderes na fraude empresarial. Em outra pesquisa realizada mais recentemente (abril/1996), os Estados Unidos ainda permanecem na liderança, mas o segundo lugar ficou com a Inglaterra.
De acordo com a Comissão Treadway (1987), que examinou inúmeros casos de fraude (1981-1986), a conclusão é de que a fraude está no topo da gerência (os gerentes são os perpetradores da fraude).
Após o caso Enron, o Congresso norte-americano reabriu as antigas feridas e formou, novamente, outra Comissão, presidida por Michael G. Oxley, para tratar da transparência das informações contábeis e da responsabilidade dos auditores, cujo projeto leva o nome de C.A.R.T.A. ("Lei da transparência e da responsabilidade das corporações e dos auditores"), ainda em tramitação no Congresso daquele país e que prevê: 1) a proibição das firmas de auditoria de oferecerem certos tipos de serviços de consultoria; 2) criar uma nova entidade de supervisão e de regulamentação (PRO) para certificar os auditores; 3) exigir a divulgação das transações "off-balance sheet" (fora do balanço); além de outras medidas. O projeto não pretende acabar com a auto-regulamentação da profissão, mas aperfeiçoá-la.
As fraudes contábeis nos Estados Unidos eclodem com maior intensidade no momento (1920) em que os contadores/auditores se aliam aos proprietários das mega-empresas em busca de instrumentos contábeis que nada têm a ver com eficiência gerencial, e sim com gerenciamento matemático dos números; e elas recrudescem quando (1960/80) a competitividade internacional e o esgotamento da matemática dos números forçam a maquiagem dos lucros das empresas, com o objetivo exclusivo de alcançar posições favoráveis para suas ações no mercado de capitais. São dois momentos diferentes, com propósitos diferentes, embora o resultado final seja o mesmo: preservar o paradigma da propriedade privada, ou seja, os lucros não são sociais, mas do proprietário; o primeiro momento é aquele em que a avaliação contábil dos ativos contém um significado de esgotamento da capacidade imaginativa dos números, ou negligência da realidade contida na baixa produtividade, com o propósito de valorizar o status quo dos contadores; o segundo momento é o do comprometimento direto da classe com a manipulação dos números, novamente, para manter o modelo de pseudomercado (objetivo: maquiar os lucros). Esse é o ponto fundamental, porque as estruturas empresariais gigantescas dependem desse mercado para financiarem seus ativos. No entanto, a queda abrupta nessa forma de financiamento pode fazer desabar toda a estrutura empresarial. É o caso da Enron e de muitas outras que, para suprirem as suas deficiências de produtividade (exigida pelo mercado), inflam seus lucros com transações ilegais. (É o oposto dos países em que as empresas operam com outras modalidades de financiamento do capital, e não necessitam "engordar" os lucros, e sim "aumentar" as despesas).
Historicamente, o processo das fraudes contábeis norte-americanas ocorre a partir de dois fatores básicos que podem ser sintetizados da seguinte forma: 1) a formação das corporações verticalizadas e multidivisionais "reificou" o contador enquanto figura dominante do conhecimento técnico dos números, culminando, paralelamente, com a consolidação da profissão dos auditores em torno de grandes firmas de auditoria; 2) com a conseqüente perda da relevância da contabilidade gerencial norte-americana advinda dos modelos oligopolistas (fixação de preços – resultado contábil administrado), os quais não priorizavam a produtividade, mas o gerenciamento dos lucros, a figura do contador/auditor passou a ser a peça central no tabuleiro de xadrez das bolsas.
O fato é que as bolsas de valores ainda operam, praticamente, descoladas do contexto real da produtividade das empresas, por absoluta negligência de informações contábeis mais consistentes, mais realistas e mais transparentes. E isso tem sido conveniente porque é, exatamente, esse hiato informacional contábil que tem possibilitado manipular ações fraudulentas. Normas contábeis muito transparentes tolhem o oportunismo das especulações dos insiderholders (aqueles que se valem de informações privilegiadas).
Paralelamente, a emissão das normas contábeis, a partir dos anos 20/30, foi um instrumento útil em defesa dos auditores e com objetivos claramente conciliatórios no sentido da fixação do status quo da classe e da manutenção dos lucros do proprietário. Tudo foi feito segundo o poder lobista das barganhas negociadas, o que é perfeitamente natural para os padrões culturais norte-americanos. A economia e a contabilidade não são tratadas a partir de convicções éticas, mas por meio de regras sociais de convivência. E tal comportamento faz com que as regras se tornem flexíveis o bastante para deixar espaços para "manobras" no seio das demonstrações contábeis. É uma espécie de permissividade velada da autoridade competente dentro de certos padrões aceitáveis. Quando as regras se tornam frouxas demais, permitindo abusos escandalosos perante a sociedade, punem-se os infratores exemplarmente, e elaboram-se novas regras. Mas o princípio fundamental permanece: o poder da auto-norma.
Naqueles países onde predomina, essencialmente, a práxis como elemento de conduta social e não as regras ético-morais, cujos princípios contábeis são prescritos pela lei, (código comercial e outros instrumentos legais) tem havido uma tendência diferente de se perceber o objeto contábil. A contabilidade, nesse caso, é definida como um subsistema da economia, e seu principal papel é dar vestes numéricas aos modelos econômicos. Significa dizer: prescrição de normas por meio das quais as corporações devem expressar a sua riqueza patrimonial. E, nesse caso, a riqueza só pode ser traduzida por resultados contábeis uniformes. E compete à estrutura conceitual, estabelecida por organismos contábeis norte-americanos, o papel normativo da informação contábil uniforme, ainda que as custas do auto-interesse desmedido, como bem defendia o modelo da teoria da agência.
Esses países (Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Austrália), portanto, têm priorizado suas discussões estritamente no valor contábil enquanto referência para a manutenção do capital, relegando ao ostracismo os aspectos estruturais, operacionais e funcionais do capital, como, por exemplo, os aspectos sociais das demonstrações contábeis, os aspectos da divulgação das responsabilidades ambientais das corporações e, especialmente, os aspectos voltados para o gerenciamento da produtividade operacional das corporações.
Por outro lado, o modelo de estrutura conceitual, que pretende manter o capital das corporações, tem sido duramente criticado, inclusive, por aqueles que acreditavam nele (David Somolons e outros). Não creio que se trata apenas de um período de transição de um modo tradicional de contabilidade para outro avançado, mas de uma estrutura arquitetada no sentido de viabilizar um projeto que já se desenhava em socorro da fragilidade de todo um sistema econômico, baseado em mega-corporações, cuja fonte de financiamento e de manutenção técnico-adminstrativa vem dando sinais de erosão. Johnson, Kaplan, Norton, Tony Tinker, Abraham Briloff, Robert Sterling, Richard Mattessich e muitos outros pesquisadores contábeis têm alertado para a importância de se redirecionar os caminhos das corporações. Mas, não se vislumbra qualquer atitude em outra direção porque a própria estrutura conceitual se auto-alimenta no sentido de novos conceitos re-definidores de um cenário em que o eixo central é o valor. E esse processo de re-alimentação proclama agora a idéia de valor justo (fair value), como se os anteriores não o fossem. Ressalte-se, porém, que o valor não produz riqueza, é apenas a sua expressão. Assim, o cerne da questão está no método científico adotado para a elaboração da estrutura conceitual, cuja prioridade conceitual é o valor contábil.
Contudo, até o momento, tem prevalecido o jogo perigo de sobrevalorização dos resultados contábeis. Com isso, a fragilidade do sistema contábil norte-americano, baseado no gerenciamento dos números, ou gerenciamento dos ganhos, como de resto de toda a estrutura, vem sofrendo abalos sísmicos que podem conduzir a situações desconfortáveis no futuro próximo, como desinvestimentos, por exemplo. É sabido que o setor industrial norte-americano vem trabalhando no vermelho nos dois últimos anos (2000/2001).
Assim, as normas auto-regulamentadoras contábeis, diferentemente de outros países, são conseqüência de conchavos de política econômica, cuja equação matemática, no contexto do modelo de verticalização acomodada, pode ser demonstrada como sendo a razão entre as ações dos proprietários e dos auditores no sentido de um resultado forçado, sempre positivo.
Do ponto de vista da relevância do gerenciamento da produtividade, é possível que os norte-americanos se reencontrem a partir das propostas de Kaplan e Norton (Balanced scorecard). Mas, sob a lógica da informação contábil auto-regulamentada, nada deve mudar, para o desespero dos investidores.
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Valério Nepomuceno