O programa Disque-Tecnologia da Universidade de São Paulo (DT-USP) foi criado em setembro de 1991, a partir de uma proposta de democratização do conhecimento existente na USP. Pioneiro no Brasil, desde sua origem contou com a parceria do Sindicato das Micro e Pequenas Indústrias do Estado de São Paulo (Simpi), que, além de proporcionar o contato estreito com as demandas de suas associadas, contribuiu para a formulação inicial do programa. O DT foi pensado para operar de forma a não exigir grandes investimentos, e essa premissa foi integralmente cumprida, com a composição de uma equipe enxuta e disposta a aprender a tratar com as demandas das pequenas empresas.
A primeira fase de operações foi desenvolvida para que, por meio de um atendimento individualizado e sob medida, o DT pudesse prover respostas a demandas por informação tecnológica especialmente de micro e pequenas empresas (MPEs). Assim, os pesquisadores e docentes da USP foram acionados para atender às demandas que, em sua maioria, eram formadas por informações tecnológicas de baixa complexidade.
Registra-se, conforme a figura 1, que 70% das consultas buscam informações básicas, a maioria delas sobre tecnologias ditas apropriadas, ou seja, aquelas já sobejamente conhecidas. A reflexão a que esse fato nos leva é a de que existe em nossa sociedade o que se pode chamar de analfabetismo tecnológico funcional.
Nem mesmo os princípios básicos da aplicação prática do conhecimento são conhecidos. O empreendedor em busca de uma saída para uma situação específica começa o negócio sem os conhecimentos mais simples, e rapidamente a sobrevivência do empreendimento fica comprometida por práticas não adequadas, desperdícios, visões de mercado não focalizadas etc.
Por outro lado, 20% das consultas apresentam demandas por informações focalizadas e mais bem-descritas. Nota-se que as empresas demandantes são mais bem-estruturadas. Os restantes 10%, que chamamos de projetos potenciais, vêm de empresas estruturadas e maiores.
Figura 1.
Distribuição das consultas por grau de complexidade Programa Disque-Tecnologia.
Rapidamente, percebeu-se a inadequação da prática de levar os problemas diretamente aos pesquisadores. A busca por solução levou o programa a dar início ao que hoje chamamos de refinamento da demanda. Começa então a se delinear o trabalho de mediação a que hoje nos dedicamos. Foi criada, então, uma linha de relacionamento com os alunos de graduação, organizados em torno de Empresas Juniores (EJs). As respostas, na maior parte dos casos, passaram a ser fornecidas por esses alunos.
Vale dizer que, no período de 1993 e 1994, o DT foi responsável pela "incubação" de nove EJs na universidade. Iniciava-se assim a segunda fase nas operações do DT. A maioria das consultas era levada até os alunos que, em contato com o demandante, traduziam a demanda para uma linguagem capaz de ser entendida no meio acadêmico. A informação era então decodificada e devolvida ao empresário. Cerca de 30% das consultas seguiam esse fluxo.
Com o desenvolvimento das EJs e conseqüente mudança de seus procedimentos, o DT teve de se adequar novamente. Com experiência e acervo próprios, adquiridos por meio do processo vivido, passou a operar os atendimentos com uma equipe de alunos de graduação e pós-graduação e mesmo com profissionais autônomos. Foi a terceira fase de operações.
Paralelamente, com uma demanda diária média de quinze consultas, o DT teve de enfrentar a questão de como gerir tudo aquilo que chegava até ele. Foi então cunhada a expressão "gestão da demanda" que é entendida como um conjunto de processos, procedimentos, políticas e métodos a serem utilizados na realização do serviço de respostas do DT, para atendimento de modo eficaz e eficiente às necessidades dos "pequenos" em relação ao acesso a informações tecnológicas.
A gestão da demanda pode ser entendida e organizada em dois grandes blocos de atuação:
1) atendimento aos clientes – métodos e técnicas para entendimento das necessidades dos clientes e elaboração de respostas de modo a satisfazer essas necessidades;
2) gestão estratégica das informações – análise da base de dados de respostas para definição e implementação de ações estratégicas para promoção do desenvolvimento do setor produtivo.
Os primeiros resultados dessa prática foram obtidos com a organização do programa Atualização Tecnológica (Atual-Tec), que durante os últimos dez anos editou cerca de seis cursos rápidos por mês, abordando temas tecnológicos concentrados e identificados pelas análises da demanda. Mais de 60 mil pequenos empresários passaram por esses cursos até dezembro de 2003, quando o programa teve suas atividades intermitentes. Na quarta fase de evolução do DT procurou-se ampliar o alcance do público- alvo, tendo sido priorizados atendimentos coletivos. Foi desenvolvido um programa de rádio chamado Clip Tecnologia, veiculado pela rádio USP FM, que trouxe inúmeros ganhos ao pequeno empresário, pois estimulava a ida ao DT e transmitia conhecimento tecnológico em linguagem simples.
Figura 2.
Distribuição na região metropolitana de São Paulo da audiência do Clip Tecnologia. Duas inserções diárias na rádio USP FM Programa Disque-Tecnologia.
O programa Clip Tecnologia na rádio USP FM previa duas linhas de resultados: a primeira foi a transmissão radiofônica de descrições de tecnologias, para fomentar o conhecimento tecnológico através do rádio. Os resultados foram positivos, pois grande número de ouvintes trouxe notícias de aplicações feitas com sucesso, como é o caso do sistema de irrigação para pequenos produtores utilizando bambu no transporte de água, desenvolvido na Unesp de Jaboticabal (SP). A segunda era a propagação dos serviços do DT, em que também se alcançaram significativos resultados.
Em 1998, visando aumentar ainda mais o alcance nas MPEs, o DT desenvolveu as Oficinas Tecnológicas, adotadas pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP) sob a denominação de Oficinas Sebraetec, que visam especialmente à sensibilização tecnológica mediante o atendimento de demandas temáticas que reúnam grande número de interessados.
O DT tem por missão disseminar o conhecimento tecnológico da USP especialmente no ambiente das MPEs. Seu primeiro objetivo é, por essa disseminação de conhecimentos, promover a cultura da inovação nas MPEs já estabelecidas e nos novos empreendimentos. Nesse caso focaliza-se a inovação incremental que muitas vezes pode estar na aplicação de uma tecnologia já bastante conhecida, geralmente denominada "tecnologia apropriada".
A ilustração a seguir procura mostrar uma possível estratificação das MPEs sob a ótica do acesso à informação tecnológica.
O DT tem a opção de trabalhar com aquelas que estão na base da pirâmide, que parecem representar cerca de 70% das MPEs. Como resultado da atuação do DT espera-se que haja um movimento em direção à formalização dessas empresas, que certamente aumentará o número de instituições que pagam impostos, promovendo-se assim uma distribuição melhor da carga tributária e aumentando a capacidade arrecadatória do estado.
Figura 3.
O público-alvo Programa Disque-Tecnologia.
No topo da pirâmide estão situadas as MPEs estruturadas, e nesse caso elas têm acesso a todas as ações de governo para o fomento tecnológico. Têm total acesso aos sistemas de informação e a financiamento das agências de fomento, tais como Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) etc. Geralmente são empresas nascidas em ambientes de incubadoras e seus dirigentes têm alto grau de instrução.
No terço médio situam-se as MPEs que têm acesso a instituições como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Sebrae. Seus dirigentes têm, em média, grau de instrução superior, mas nem por isso são capazes de aplicar o conhecimento tecnológico sem auxílio externo.
A base da pirâmide representa o grande acervo de pequenas empresas que normalmente não têm acesso a nenhuma das instâncias de apoio ao desenvolvimento tecnológico e à inovação.
A maioria dos dirigentes não tem grau de instrução superior e, principalmente, não sabe como buscar a informação capaz de promover a melhoria e a sobrevivência de seus negócios.
O DT preocupa-se, por meio do conhecimento das demandas das MPEs, em desenvolver trabalhos que aproximem ainda mais o conhecimento da universidade das reais necessidades do setor produtivo encaixado no segmento das MPEs.
Para isso, promove estudos da demanda que chega até o programa, visando identificar carências coletivas, potenciais arranjos produtivos locais ou temas transversais que podem ser trabalhados sob a forma de cursos e treinamentos rápidos.
Além disso, procura trazer para dentro da universidade o conhecimento adquirido no trato com esse tipo de demanda, de forma a proporcionar a quem de direito a possibilidade de influência nas ações de formação dos alunos de graduação e pósgraduação.
Resultados alcançados ao longo de treze anos
O DT apresenta três tipos de resultados ao longo de treze anos de existência:
Atendeu em média quinze consultas diárias, e portanto beneficiaram- se do serviço mais de 50 mil pequenas empresas e empreendedores. Em vários casos gerou empregos diretos, pois a aplicação do conhecimento tecnológico contribuiu para a sobrevivência e melhoria de um sem-número de pequenos negócios.
Existem hoje cerca de dezoito serviços no território nacio- 162 nal que, espelhados no DT, prestam assistência tecnológica ao mesmo segmento empresarial.
A experiência do DT contribuiu para reforçar a visão de uma USP de excelente nível e conectada com a sociedade que a mantém. Alem disso, mostrou ao país que é possível o estabelecimento de relações entre universidade e empresa, sem por isso instrumentalizá-la: "Aprimorar o sistema produtivo de forma a gerar empregos ou renda é uma necessidade social e faz parte do pilar da extensão universitária".
O DT mostrou também que nos cursos de graduação e de pós a aplicação do conhecimento enquanto está sendo adquirido contribui para a melhor formação dos alunos.
Com um método de trabalho simples e eficaz, foi a pedra fundamental de inúmeras iniciativas em todo o território nacional e até no exterior, proporcionando a criação de modelos de operação de sistemas de informação tecnológica que têm se aperfeiçoado ao longo destes anos e culminaram numa rede nacional de serviços de informação tecnológica chamada Serviço Brasileiro de Respostas Técnicas.
Auxiliou a criação do programa Sebraetec inicialmente operado pelo Sebrae-SP e hoje parte integrante do Sebrae nacional.
Criou e testou formas de linguagem para apresentação radiofônica de tecnologias simples, mas que nas pequenas empresas significam sensíveis inovações.
Criou metodologia para registro das demandas de forma que elas possam ser gestionadas e produzir informações estratégicas capazes de gerar projetos mais bem-conectados com as necessidades do setor produtivo e mesmo instruir a criação de políticas públicas para o segmento das MPEs.
Um caso de atendimento: a apropriação do conhecimento
O acervo de casos de sucesso nos atendimentos do DT é imenso. Para ilustrar o presente relato e por considerá-lo referência, destaca-se:
O caso da norma técnica
Um microprodutor de blocos estruturais de concreto, destes tão comuns em construções da periferia, procurou o DT:
"Seu Disque", meu bloco está "esfarelando". A gente vai pegar pra colocar no caminhão e ele se desmancha. O que faço?
Em pouco mais de uma hora de entrevista o mediador descobriu que ele não tinha nenhum critério para produzir a mistura de areia, cimento e pedrisco que compõe o bloco. Em sua história ele disse que fora demitido da empresa e com os recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) comprara uma prensa para produção dos blocos, pois via nela uma saída para sua situação, uma vez que morava na periferia, onde a autoconstrução é muito praticada.
Eu consegui a receita da massa com um amigo que conhece a namorada de um servente de pedreiro. Aí misturo tudo, coloco na prensa e depois ponho pra secar na sombra… No começo foi tudo muito bem, mas agora tem um sujeito que está fazendo a mesma coisa, só que melhor, e está levando toda a minha freguesia… Se continuar assim, vou ter que fechar… O mediador então "apresentou" ao cliente o conceito de norma técnica e forneceu-lhe a indicação precisa das normas que se aplicam nesses casos, bem como o endereço de onde consegui- las. Passados exatamente quatro meses do primeiro contato, o mesmo empresário nos procurou novamente:
Sabe, esse negócio de norma técnica é fantástico… Meu bloco está muito melhor e estou gastando menos cimento na fabricação. Recuperei minha freguesia e tive que contratar mais quatro pessoas para me ajudar. Estou até pensando em comprar uma nova prensa… Mas tem um "pobrema": a norma pede que eu faça um teste de impacto! Eu já procurei e existem duas instituições. Eles fazem este teste, mas eu não tenho recursos pra pagar… Será que vocês não podem me ensinar a fazer o tal teste?
O DT conseguiu a colaboração de um especialista, que mostrou uma forma de fazer o teste de impacto no local de fabricação dos blocos.
O que se pode apreender com esse caso é o fato de que em quatro meses o empresário saiu de um patamar de total "analfabetismo tecnológico funcional" para uma compreensão da importância do conhecimento tecnológico, gerando ainda quatro empregos diretos. Temos certeza de que daí por diante esse cidadão exercerá plenamente seu direito de adquirir saberes.
O DT proporcionou o aprendizado para o trato com a demanda: alunos de graduação e de pós-graduação compõem um quadro de "especialistas" apropriado para o atendimento de questões do cotidiano das MPEs. Além disso, sob o aspecto tecnológico, o grau de complexidade das consultas é muito baixo e revela um alto índice de "analfabetismo tecnológico funcional" em nossa clientela. Assim, quando o programa aprendeu a "entender" a demanda optou também por criar linhas de atendimento coletivo em que temas tecnológicos são abordados em cursos, treinamentos e oficinas de curta duração. A linguagem utilizada pelos empresários nem sempre é entendida na academia, e vice-versa. Foi necessário desenvolver uma metodologia de tradução/decodificação da demanda para que ela pudesse ser compreendida e atendida. O contato face a face com o consulente também revelou a importância que o pequeno empresário dá à "mão amiga" capaz de levá-lo suavemente à solução de um problema que para ele é crucial, embora trivial para o mediador que vê de fora.
Todo esse processo facilita a apropriação do conhecimento.
O receptor passa a interagir com ele, e o estímulo cognitivo provoca o efeito citado pelo educador Anísio Teixeira: "Conhecimento pede mais conhecimento…".
A principal lição aprendida no DT é que é possível a promoção do desenvolvimento e de inclusão social, por meio da disseminação e da facilitação do acesso aos acervos de conhecimento de uma grande universidade pública como a USP.
Universidade de São Paulo Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais (Cecae)
Eduardo José Siqueira Barbosa*
ejsbarbo[arroba]usp.br
* Administrador, coordenador do programa Disque-Tecnologia da Universidade de São Paulo (DT-USP).