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Quando os sistemas de dominação locais de tipo semi-feudal vão perdendo sua autonomia, em função do desenvolvimento do poder central, surge a instituição do "coronelismo", sistema de manipulação política que supõe, de um lado, a continuação desta dominação, mas de outro seu enfraquecimento, sua dependência ante o governo. Desde o Império, ainda nos períodos de maior centralização política, os governos só conseguem se estabelecer apoiados nos "coronéis", que comandam o eleitorado à sua vontade; mas estes, por sua vez, só conseguem manter sua ascendência graças ao apoio e favorecimentos que recebem do governo. O coronelismo é assim essencialmente governista, utilizando o poder eleitoral de que dispõe em função de compromissos com o governo. Não que não existam "coronéis" na oposição; mas isto só ocorre como contingência inevitável, fruto da derrota em desavenças locais. Os partidos políticos, fundados em bases rurais, têm suas siglas e programas traduzidos em denominações e nomes locais, despidos de qualquer coloração ideológica. Os governos por eles formados, em conseqüência, têm uma incapacitação congênita para realizar um politica integrada, preocupando-se quase exclusivamente com o atendimento de interesses e reivindicações locais de suas bases, caso por caso.
O sistema de manipulação rural do coronelismo impera soberano até o fim da República Velha, quando os partidos estaduais de Minas e São Paulo se alternam no poder, dentro da chamada "política dos governadores". Até esta época as populações urbanas são marginalizadas politicamente, tanto quanto são marginalizadas em relação à estrutura econômica essencialmente agrária do país. A medida em que crescem as cidades, em que se desenvolvem indústria e o comércio, aumenta a importância das populações urbanas, e os grupos governamentais vão aperfeiçoando um novo sistema de manipulação política apropriado às cidades. Para as classes médias e para a intelectualidade que se forma nas escolas de direito ou nas academias militares, desde muito tempo são abertas as portas da administração pública, através da criação de cargos com a finalidade exclusiva de serem preenchidos politicamente; em troca, esta burocracia que se forma se preocupa apenas com sua posição social e financeira, realizando a política dos "coronéis" e dos interesses financeiros de exportação a eles ligados. É o chamado "clientelismo político". Para as classes proletárias, que começam a se mostrar virulentas, através de movimentos de reivindicação, o governo concede uma série de pequenos benefícios através da Previdência Social, e uma série de privilégios através da Legislação Trabalhista, que organiza a estrutura sindical do país sob a tutela governamental.
São estas as vigas mestras em que até pouco tempo se apoiava nosso sistema político . O período posterior à revolução de 1930, representando de certa maneira o crescimento político das populações urbanas, conserva a estrutura do coronelismo, e é o criador do assistencialismo paternalista. Reintroduzido o regime democrático em 1945, o coronelismo se organiza nos partidos governamentais de base rural, enquanto o assistencialismo é encampado pelo Partido Trabalhista, através da figura característica que é o "pelego", degeneração da liderança popular realizada pela direção ministerial do movimento sindical. Apesar de sua coloração governamental, os possíveis ímpetos "esquerdistas" do PTB são contidos por força de sua estrutura, sobretudo pela manutenção de suas bases rurais.
Apoiado nestes suportes, o Estado Brasileiro funciona como uma amálgama de interesses, pressões e concessões, em que a politica dos chefes locais é realizada sistematicamente, assim como a dos interesses da exportação, empregos são concedidos independentemente de qualquer critério técnico, apoio operário por concessões salariais cujos efeitos negativos, para as classes dominantes, são aplacados pela desvalorização da moeda, gerando novas reivindicações, etc. E completando o quadro, grupos privilegiados criam e se valem de organismos estatais facilidades de transações e empreendimentos através dos quais se realiza a política governamental de desenvolvimento econômico. Pela permanência da estrutura econômica subdesenvolvida, baseada na exportação de um só produto, tal desenvolvimento é contraditório, acentuando crises e contradições.
4. ROMPIMENTO DOS SISTEMAS TRADICIONAIS
Mas com todas as dificuldades e deformações, o desenvolvimento econômico se realiza efetivamente. O sistema capitalista atinge todo o país, e as regiões que não recebem seus benefícios sofrem seus efeitos: o centro-sul cresce, e se desenvolve, o nordeste e sul se pauperizam e mesmo despovoam. No plano político, o desenvolvimento do sistema capitalista significa o rompimento dos sistemas tradicionais de manipulação. No campo, a ligação mais constante com as cidades, a introdução de meios modernos de comunicação, sobretudo o rádio, o aperfeiçoamento da legislação eleitoral e das possibilidades de vigilância de sua execução, tudo isso permite ao eleitor rural receber diretamente a propaganda dos candidatos, se rebelar contra as determinações dos "coronéis", votando conforme sua preferência individual. Nas cidades, o clientelismo não é suficiente para enquadrar as classes médias que crescem dia a dia, adquirindo base econômica autônoma no comércio e indústria, ou mesmo sem esta base. O assistencialismo também vai se tornando incapaz de enquadrar as grandes massas trabalhadoras, que tendem a se rebelar e a abandonar as situações governamentais.
Com a desagregação dos sistemas tradicionais de manipulação política, o quadro, antes tão claro, torna-se turvo. Em quem votarão os eleitores? Quais as formas de ação e organização mais eficazes? Vale mais, aqui, a intuição: os eleitores votarão em quem mais os impressionar, em quem conseguir tocar a sensibilidade popular, de repente responsável por si mesma.
Esta é a ocasião propicia para a ação política em termos ideológicos, que, vise à organização das massas em função de, projetos políticos explicitamente definidos, que rompam cada vez mais com os sistemas tradicionais de manipulação política. Partido Comunista e movimento nacionalista são dois tipos de ação ideológica que conseguem sensibilizar as classes populares urbanas por algum tempo, mas cujas origens ideológicas exógenas ou intelectualistas as tornam incapazes de ganhar as grandes massas, ou quando o fazem, de conduzi-las devidamente.
No vazio político deixado pela decadência dos sistemas tradicionais de manipulação e pela incapacidade dos movimentos ideológicos, grassa a demagogia. A demagogia consiste em um processo de propaganda e convencimento próprios de um momento político em que não existem mecanismos efetivos de participação política das diversas classes sociais. Com efeito, quando os instrumentos políticos, particularmente os partidos, correspondem de forma definida a classes sociais, ou as enquadram de maneira constante, os procedimentos eleitorais expressam esta correspondência ou enquadramento, permitindo perfeita compreensão de seu desenrolar. É o caso do coronelismo e assistencialismo, que exprimem a existência de direções políticas instaladas de tal maneira que só subsidiariamente precisaram lançar. mão de recursos demagógicos.
Distanciados dos centros de decisão, sem ligação com eles senão nas épocas de eleição, sem qualquer forma de vivência política, destruídas as formas tradicionais de manipulação, as grandes massas se tornam presas fáceis de "slogans"e raciocínios simplistas, impressionam-se com propagandas retumbantes, se entusiasmam com gestos de opereta. Ainda que individualmente adultos e responsáveis, globalmente o eleitorado se comporta infantilmente, teme decidir por si mesmo, e não se preocupa muito com as conseqüências de sua decisão política.
A primeira forma de manipulação demagógica, e a mais importante, é o personalismo. O personalismo transforma o problema politico, que é de grupos e classes, em questão de indivíduos. Alguns chefes políticos são promovidos à perfeição, suas qualidades elevadas ao máximo, e apresentados ao eleitorado desta forma . Sem meios de discernimento, o eleitorado vai apoiando e abandonando sucessivamente os chefes políticos que, sem qualquer vinculação efetiva institucional com seus eleitores, não raro os decepcionam: a única ligação direta que têm os líderes personalistas é com os grupos que os apóiam e financiam. Mas mesmo esta ligação pode desaparecer, e muitas vezes o chefe personalista se desgravita e coloca sua pessoa como único juiz do bem e do mal, assumindo a mistificação que utilizava. Em momentos como este, só o acaso impede - quando impede - a instauração do fascismo.
O principal argumento de que se vale o personalismo é o moralismo. Consiste em considerar todos os problemas sob o ângulo da honestidade ou desonestidade, reservando aquela, naturalmente, para si. O moralismo repousa em uma falácia que consiste em ignorar que em qualquer regime político em que uma classe, mais que outra, detenha o poder, existe uma forma de repartição da renda social em favor desta classe, o que com o tempo é institucionalizado e "moralizado". A apropriação privada do produto social, quer através do governo, quer diretamente pela exploração econômica, em suas formas legais ou não, é função da estrutura social, e sua natureza "moral" ou "imoral" depende de que os grupos dominantes tenham tido ou não tempo de justificar e fundamentar sua dominação.
Não que não existam, em cada sistema econômico e social, critérios de honestidade e desonestidade. Mas o moralismo, essencialmente de classe média, não pode compreender que um sistema de que participe possa ser sociologicamente imoral, ou que determinada "imoralidade", por revolucionária, possa ser moral. Identificando sua tranqüilidade particular, o bem de sua classe, com o bem absoluto, as classes médias encaram como "desonestidade" qualquer política que, em seu detrimento, beneficie outras classes na repartição da renda social. Partindo de alguns casos evidentes de corrupção administrativa, as classes médias erigem o moralismo como argumento e critério político fundamental. Porque são incapazes de comandar politicamente, de gerir diretamente, como classe, seus interesses, só lhes resta apelar para as qualidades santas do chefe político E quando o operariado não se estrutura como classe, buscando sempre, ainda que sem conseguí-lo, deixar sua condição proletária pela de pequeno-burguês, o moralismo e personalismo também o atingem e o envolvem.
A evolução da estrutura política brasileira dar-se-á no sentido da criação de novas formas de organização e participação partidária. É totalmente impossível regredir às formas políticas anteriores, assim como permanecer na forma atual, dado o papel educativo das experiências eleitorais que se sucedem.
Do encaminhamento do processo de desenvolvimento econômico depende o tipo de organização política a que evoluiremos. O contínuo crescimento das necessidades de consumo das massas, o, desenvolvimento das cidades e das formas de vida urbanas, tudo isso exige que o desenvolvimento não se detenha, mas progrida ainda mais, liberto da espiral inflacionária Se a atual estrutura institucional for capaz de realizar isto, tender-se-á no plano político à estabilização de um regime liberal, em que poucas chances terão os lances demagógicos ou as formulações ideológicas de tipo revolucionário.
A tendência que parece se observar atualmente é a de consolidação e aperfeiçoamento do Estado liberal correspondente ao predomínio da burguesia. No acordo campo-cidade, cidade vem ganhando o predomínio, e hoje pertencer ou estar ligado a grupos capitalistas é condição essencial para a obtenção de quase todos os altos postos políticos. O Estado burguês busca livrar-se do intervencionismo na economia, dos regimes de exceção e favoritismo que não interessam ao capitalismo solidamente instalado. No plano da administração, procura terminar com o clientelismo, adaptando a máquina administrativa às necessidades técnicas, e assim procurando eliminar o aspecto cartorial do Estado.
Mas as possibilidades de que esta tendência se afirme, a nosso ver, parecem diminutas. A condição de país subdesenvolvido determina uma estrutura econômica deformada, que é incapaz de, por si só, atender às necessidades crescentes da população. Qualquer tendência de liberalização (liberdade cambial, não-intervenção estatal na economia, educação privativista, etc.) repercute sobre o nível de renda e padrão de vida das classes assalariadas, assim como sobre a economia das regiões mais atrasadas. A estreiteza do mercado interno determina contínua pressão das classes médias, de consumo ascendente, sobre o Estado, que não pode deixar de atendê-las de uma ou outra forma, não conseguindo eliminar o cartorialismo.
Quais são, então, as perspectivas para o futuro? Responderemos: aquelas que visem à alteração da atual estrutura institucional, no sentido de maior operosidade para o poder político. Pelo agravamento da alienação política à demagogia, talvez, conduzindo a um regime forte que poderia, eventualmente, realizar um desenvolvimento econômico pela compressão do nível de vida das populações. Ou pelo surgimento de organizações políticas de natureza democrática, com participação direta das massas, que possam englobar suas forças dentro de uma luta de revolução. institucional. O sentido desta revolução estará em superar a condição de subdesenvolvimento através de uma política estatal diretamente vigiada por suas bases partidárias, e que atenda unicamente às conveniências populares.
Como se fará isto, se pelo aperfeiçoamento dos atuais partidos políticos, se pela criação de novos, se por novas formas de organização operárias, camponesas e de classe média, só o futuro poderá dizer. Cabe-nos apenas, a cada um de nós, compreender a necessidade desta revolução institucional e trabalhar para ela.
*Publicado sem assinatura em Mosaico 4, revista do Diretório Central dos Estudantes da Universidade de Minas Gerais, maio de 1961, pp. 104-113.
Simon Schwartzman
simon[arroba]schwartzman.org.br
http://www.schwartzman.org.br/simon
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