Este artigo pretende abordar uma das faces da alienação negligenciada pela Economia Solidária. A partir de dois contos de Machado de Assis (O Alienista e Idéias de Canário), debateremos sobre a perda do controle do produto do trabalho, mesmo em unidades produtivas onde os trabalhadores são os donos dos meios de produção. Em contraposição à proposta socialista de mercado, defenderemos, tomando por base os escritos de Marx e Mészáros, a necessidade de controle unificado da produção pelos produtores associados. Por último, advogamos a necessidade de uso concomitante de duas estratégias metodológicas para escapar da armadilha do fim da alienação. A Lente Microscópica (que olha somente para dentro das fábricas), se isolada da Lente Telescópica, não consegue captar a perda do controle do produto do trabalho numa sociedade regida pela produção de mercadorias. Já a Lente Telescópica (que olha todas as unidades produtivas e suas relações) não consegue verificar as mudanças promovidas pelos trabalhadores dentro dos muros das fábricas.
Palavras-Chave: Alienação, Economia Solidária, Cooperativismo, Autogestão, Planejamento Socialista da Produção, I. Mészáros, M. de Assis
A alienação, no pensamento marxista, é um fenômeno que transcende os limites da firma individual. Mesmo que uma firma passe a ser de propriedade dos trabalhadores, a alienação dos mesmos persistirá, porque o regime de propriedade privada no restante da economia continuará determinando preços e salários, através das forças impessoais de mercado. Por exemplo, eis uma crítica de tipo marxista a cooperativas de trabalho industrial isoladas: Os trabalhadores proprietários, mesmo que não tenham sentimentos de alienação no trabalho, podem tornar-se impotentes perante as forças competitivas do mercado, que são as que determinam, em última instância, as chances do sucesso da empresa e a qualidade de vida de seus membros (Storch, 1985).
Os pesquisadores da Economia Solidária, ao investigar empresas nas quais os trabalhadores são os donos ou arrendam os meios de produção, enfrentam um dilema. Aqueles que observam as fábricas somente para dentro dos seus muros - Visão Míope - perdem outras dimensões da alienação advindas da produção de mercadorias. Aqueles que adotam uma Visão Telescópica não conseguem enxergar a margem de manobra das cooperativas de trabalhadores, mesmo diante do sistema produtor de mercadorias.
Neste artigo, pretenderemos continuar o debate sobre o tema da Alienação iniciada em Os Simões Bacamarte da Economia Solidária [Novaes, 2004a]. Adicionalmente, pretendemos defender a necessidade duas lentes, a Microscópica e a Telescópica (e não uma ou outra) para se observar as continuidades e descontinuidades em cooperativas populares, fábricas recuperadas etc que estão diante sistema produtor de mercadorias.
Para defender a necessidade de uma Lente Telescópica, aproveitamos algumas mensagens (dentre tantas outras) do conto de Machado de Assis denominado "Idéias de Canário". Para derrubar a idéia de classificação dos trabalhadores de cooperativas como sendo desalienados, utilizamos o conto O Alienista.
Basicamente, verificamos que apesar de algumas diferenças e peculiaridades, os empreendimentos autogestionários enfrentam uma limitação da sua emancipação pois estão diante do modo de produção do capital, o que nos leva a crer que há a persistência de muitos traços da alienação em empreendimentos coletivos.
Ao adotarmos a Visão Telescópica, buscamos derrubar o argumento apontado por Singer (2002, p.91) de que o trabalho deixa de ser alienado em cooperativas surgidas de empresas falidas, e também o argumento de Tiriba (1994) de que os trabalhadores de empresas reabilitadas tornaram-se senhores de seus produtos (Tiriba, 1994) e assim extinguem a alienação do trabalhador com a passagem da propriedade dos meios de produção de um capitalista para os trabalhadores (Novaes, 2004a).
Para isso, aproveitamos a idéia do conto O Alienista. Assemelhando-se à Simão Bacamarte, os teóricos da ES buscam em nome da ciência, classificar os trabalhadores de empreendimentos coletivos como sendo trabalhadores que deixaram de ser alienados. Ao contrário disso, o argumento que se defende aqui é que mesmo havendo a possibilidade de extinção de uma das facetas da alienação (através da possibilidade de realização de um trabalho prazeroso, fim da separação entre concepção e execução), tanto trabalhadores de fábricas recuperadas, cooperativas populares quanto de empresas convencionais não serão senhores de seus produtos enquanto não controlarem conscientemente a produção. Para nós, os trabalhadores poderão continuar produzindo mercadorias de uma forma aparentemente diferente se conquistarem os meios de produção mas não se atentarem para necessidade imprescindível do controle unificado da produção (Novaes, 2005b).
Idéias de Canário: diferentes lentes dimensão da gaiola, quintal e mundo
Definições de mundo: Alienação
Visão totalizante/mundo microscópio/mesoscópio e telescópio
Quais dimensões se capta em função da posição do canário Gaiola, jardim, livre
Traços da alienação que podem desaparecer mesmo sem a generalização da propriedade social atividade de criação alienação de parte do produto
Nível da sociedade: descontrole/alienação do produto do trabalho, perda do controle do produto, atividade estranha
Coordenação social da produção/fim da alienação do produto: produção voltada para a satisfação das necessidades humanas, atividade de produção consciente e não produzir para vender
Propriedades de grupo x propriedade social dos meios de produção
Margem de manobra mesmo diante do sistema produtor de mercadorias
Trabalho prazeroso /fim parcial da alienação
AST concepção e execução, idéias novas
Começam a ver os trabalhadores como semelhantes, fim da hierarquia, a cada um de acordo com as suas necessidades
Bens públicos
Dimensão da gaiola : o que ele vê A definição do mundo foi uma delas
O artigo segue o seguinte percurso. Além desta Introdução, são apresentados de forma resumida as mensagens dos contos a) O Alienista e Idéias de Canário (1); b) a apresentação da visão de alguns pesquisadores da Economia Solidária e a crítica à estes tendo por base c) a visão de Marx sobre a alienação e d) a contribuição de I. Mészáros sobre o tema. Encerramos o artigo defendendo a necessidade de um olhar ao mesmo tempo Microscópico e Telescópico (2).
"As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o Dr. Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, não podendo el-rei alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa, expedindo os negócios da monarquia.
—A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.
Dito isso, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas,—únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência,—explicável, mas inqualificável,— devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes.
Mas a ciência tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção,—o recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e ainda no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de "louros imarcescíveis", — expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos sabedores.
—A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico.
—Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila, e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua. Simão Bacamarte entendeu desde logo reformar tão ruim costume; pediu licença à Câmara para agasalhar e tratar no edifício que ia construir todos os loucos de Itaguaí, e das demais vilas e cidades, mediante um estipêndio, que a Câmara lhe daria quando a família do enfermo o não pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou grande resistência, tão certo é que dificilmente se desarraigam hábitos absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sintoma de demência e não faltou quem o insinuasse à própria mulher do médico".
"Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.
[Macedo estava numa loja de Belchior e viu um Canário...]
(...) Perguntei ao Canário se tinha saudades do espaço azul e infinito.
Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?
— Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?
O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.Paguei lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e arame, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.
Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me repetisse a definição do mundo.
— O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.
Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias.
Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico ordenou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia saber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola.
O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto.
— Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?
Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos?
Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.
— Que jardim? que repuxo?
— O mundo, meu querido.
— Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, concluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.
Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já fora uma loja de belchior.
— De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?"
Os alienistas da Economia Solidária
De acordo com Tiriba (1994, p.158, grifo no original), a polivalência e a ausência de pré-determinação das tarefas "vem possibilitando que o trabalhador se torne senhor do produto", o que nos leva a crer que estamos diante do fim da alienação do processo de trabalho e do produto em fábricas recuperadas. Singer também retira qualquer resquício de alienação quando relata as razões do sucesso destas empresas. Senão vejamos:
Por surpreendente que seja, a grande maioria das tentativas de transformar firmas meio ou inteiramente falidas em empresas solidárias tem tido sucesso. Isso é explicado, em primeiro lugar, pelos sacrifícios feitos pelos cooperados, que se dispõem a trabalhar durante meses por ganhos mínimos, algumas vezes apenas em troca de cestas básicas (...) Mas também pela enorme dedicação e amor ao trabalho não mais alienado, do que resultam aumentos inesperados de produtividade e grande redução de perdas e desperdícios. E, finalmente, pelo aprendizado por parte dos novos administradores das técnicas e manhas da gestão de comprar e vender, de receber e dar crédito, de inovar produtos e processos e de tecer relações solidárias com outras autogestões (Singer, 2002, p.91 - grifo meu).
Na apresentação do livro de L. Holzmann, Singer expõe com clareza sua visão:
Lorena Holzmann desvenda como delicadeza e sagacidade o relacionamento humano entre os trabalhadores, que pela primeira vez na vida trabalham sem patrões. O leitor acompanha o dia a dia na fábrica e na fundição, assiste os conflitos que opõem veteranos a novatos, dirigentes eleitos das cooperativas aos que o elegeram, trabalhadores empenhados a colegas que abandonam o serviço e o negligenciam. Assiste o desenrolar de greve em uma das cooperativas, destituição e substituição de diretoria. E terá a oportunidade única de apreciar os efeitos da aplicação dos princípios de Rochdale, a desalienação do trabalhador e as conseqüências de sua aplicação defeituosa e incompleta (Singer, 2001, p.11- grifo nosso).
Poderíamos então perguntar: As possibilidades que a polivalência e a ausência da pré-determinação das tarefas executadas pelos trabalhadores garantem, por si só, o fim da alienação? A dedicação e o amor ao trabalho em empresas de massa falida garantem a ruptura total do trabalho alienado ou persistem outros traços da alienação nestes empreendimentos?
Podemos enquadrar os trabalhadores de Fábricas Recuperadas e de cooperativas populares num grupo separado dos demais trabalhadores por não estarem mais alienados?
Tiriba (2002) é mais cautelosa ao verificar a necessidade de se combinar aquilo que chamaremos mais a frente de Visão Telescópica e Visão Microscópica:
prefiro não adjetivar um empreendimento de "autogestionário". Talvez fosse um pouco mais humilde de nossa parte dizer que nestes processos produtivos os trabalhadores se inspiram nos princípios da autogestão para poder repensar a organização do trabalho. Penso que chamar, de antemão, esses processos de autogestionários é reduzir o significado da autogestão a um processo que é vivido apenas entre as quatro paredes de um estabelecimento. Como vimos em outras mesas deste seminário, a autogestão diz respeito aos processos mais amplos da vida (Tiriba, 2002, s/nº).
A produção associada como uma forma de organização dos trabalhadores (...) não diz respeito a vinte trabalhadores que olham para sim mesmos, para seu próprio umbigo, mas têm a sociedade dos produtores livres como horizonte (Tiriba, 2002, s/nº).
Ela reconhece que o trabalhador se torna uma mercadoria no capitalismo e critica o horizonte dos sindicatos ao reivindicar apenas o emprego e a diminuição da jornada de trabalho. Para ela, é fundamental não esquecer o que significou (e o que tem significado) a constituição de relações de produção calcadas no trabalho assalariado, ou seja, no emprego (expressão do trabalho alienado). Assim, não creio que a luta pela garantia do emprego seja nosso horizonte de luta. É preciso diferenciar "trabalho" e "emprego" (que significa nada mais de "trabalho assalariado"). Para mim, "trabalho assalariado" e "autogestão" são duas categorias contraditórias que não combinam (Tiriba, 2002, s/nº) (3).
Lia Tiriba afirma também que o cooperativismo poderá não sepultar o capitalismo, podendo até colaborar com o modelo neoliberal de acumulação capitalista. Para ela, o cooperativismo não é "o horizonte final das nossas lutas". Segundo esta autora, "o horizonte de nossas lutas é a produção associada, na perspectiva de uma sociedade dos produtores livres associados" (Tiriba, 2002, s/nº).
Podemos afirmar que a visão de Tiriba é mais sofisticada que seus congêneres da Economia Solidária, ao trazer para o debate o trabalhador enquanto mercadoria e a necessidade do fim do trabalho alienado. Ela acredita acertadamente que uma profunda revolução não se realiza com "a tomada ou com a conquista do poder do Estado e com a passagem dos meios de produção para as mãos dos trabalhadores, mas fundamentalmente, com uma mudança radical do sentido do trabalho, do sentido da própria vida em sociedade" (Tiriba, 2002, s/nº). No entanto, podemos presumir que ela não advoga a necessidade do planejamento socialista da produção ou não vê a questão do planejamento como um grande problema da transição.
Vejamos a argumentação de K. Marx e I. Mészáros.
Para Marx (1994), o fenômeno da alienação pode ser entendido em seus quatro aspectos: alienação do processo de trabalho, alienação do produto do trabalho, de si mesmo e da civilização humana (Mészáros, 1981; Agazzi, 2000; Ranieri, 2001).
Acreditamos que a alienação do processo de trabalho (dentro da fábrica) pode ser rompida em parte tanto em cooperativas de trabalhadores quanto em empresas convencionais e independe da propriedade dos meios de produção e do controle coordenado pelos produtores associados (4).
No entanto, independente dos trabalhadores serem donos ou não dos meios de produção e decidir democraticamente problemas das unidades produtivas, a atividade de trabalho voltada para a produção de mercadorias converte a atividade de trabalho do ser humano em trabalho como um meio de subsistência, como o único meio de satisfação de uma das necessidades do trabalhador, ao invés de ser uma atividade magistral, consciente e livre.
Para Marx, o trabalho alienado (5) reflete não só a relação do trabalhador (6) com o objeto mas também sua relação com os outros homens. Se nossa interpretação de Marx estiver correta, um trabalhador de uma empresa coletivizada que aparentemente tornou-se senhor do seu produto por saber todas as etapas de produção, por ter ajudado a reorganizar a divisão do trabalho e por socializar seu saber, rompeu em parte com o estranhamento do processo de trabalho, mas não necessariamente rompeu a alienação (7) do produto do trabalho (8).
Ora, se o controle e as determinações da produção estiverem nas mãos do capital, a emancipação do trabalho frente ao sociometabolismo do capital é por conseqüência incompleta. Vejamos o que propugna István Mészáros.
István Mészáros: para além do capital
Para Mészáros, a transcendência da alienação da produção poderia ser esboçada pela concepção de um processo longo e complexo de modificação, caracterizado pela descontinuidade na continuidade onde os produtores associados regulariam racionalmente o seu intercâmbio.
A necessidade de um "controle social global consciente das condições de auto-realização humana" é imprescindível para que os seres humanos rompam "a tirania da base material" (Mészáros, 1993, p.201).
Mészáros confere aos Conselhos de Trabalhadores e outras formas de mediação o papel na busca de um planejamento genuíno. Lembremos que os Conselhos têm um potencial mediador e emancipador ao solucionar de forma racional os problemas existenciais vitais dos trabalhadores, das preocupações cotidianas com moradia e trabalho, as grandes questões da vida social de acordo com suas necessidades elementares de classe. Entretanto, este autor faz algumas advertências:
(...) os Conselhos de Trabalhadores não deveriam ser considerados a "panacéia" para todos os problemas da revolução, contudo sem alguma forma de auto-administração genuína, as dificuldades e contradições que as sociedades pós-revolucionárias têm que enfrentar se transformarão em crônicas, e podem ate mesmo trazer o perigo de uma reincidência nas práticas produtivas da velha ordem, mesmo que sob um tipo diferente de controle pessoal. Quando da sua constituição espontânea, em meio as importantes crises estruturais dos países envolvidos, os Conselhos de Trabalhadores tentaram se atribuir em mais de uma ocasião na história, precisamente o papel de auto-administrador possível, a par da responsabilidade auto-imposta - que esta implícita no papel assumindo e é praticamente inseparável dele – de executar a gigantesca tarefa de reedificar, em longo prazo, a estrutura produtiva social herdada (Mészáros, 2002, p.457 – grifos no original).
Os Conselhos de Trabalhadores "ou qualquer outro nome" devem cumprir o papel de mediadores materiais efetivos entre a ordem antiga e a ordem socialista almejada (9). Isso porque o sistema do capital é um modo de controle global-universalista que não pode ser historicamente superado exceto, por uma alternativa sócio-metabólica igualmente abrangente (Mészáros, 2002, p.599).
Enquanto as funções controladoras vitais do sociometabolismo não forem efetivamente ocupadas e exercidas autonomamente pelos produtores associados, mas deixadas à autoridade de um pessoal de controle separado (ou seja, um novo tipo de personificação do capital), o próprio trabalho continuará a reproduzir o poder do capital contra si mesmo, mantendo materialmente e dessa forma estendendo a dominação da riqueza alienada sobre a sociedade (Mészáros, 2002, p.601). Todas as funções de controle do sociometabolismo devem ser progressivamente apropriadas e positivamente exercidas pelos produtores associados pois, na falta disso, o comando das determinações produtivas e distributivas da reprodução social continuará sob a égide do capital.
Trazendo o debate para o tema das fábricas e sua integração ao sistema, Mészáros afirma que a fábrica capitalista não é um instrumento isolado mas um sistema poderoso (um verdadeiro "microcosmo"), baseado no "despotismo do lugar de trabalho" (sua estrutura de comando hierárquica interna), em sua conexão orgânica com a "tirania do mercado" que une e integra as unidades produtivas particulares no interior do "macrocosmo" totalizante da estrutura reguladora capitalista (Mészáros, 2002, p. 865).
Nas sociedades pós-capitalistas, a retenção da divisão do trabalho – com sua estrutura de comando autoritária – conduziu para a defesa do "socialismo de mercado" justamente porque não conseguir remediar a inconsistência e a contradição entre as unidades produtivas particulares e a estrutura sintetizante global dos sistemas socioeconômicos estabelecidos (Mészáros, 2002).
Advogando que há uma margem de manobra mesmo diante do sistema produtor de mercadorias, Mészáros afirma que passos podem ser dados rumo a transformação global, sem se esperar pela reversão radical das relações de poder existentes entre capital e trabalho em uma escala global (Mészáros, 2002, p.895). No entanto, o que decide a questão é o modo pelo qual os passos parciais são integrados numa estratégia coerente global, cujo alvo não é apenas a melhoria do padrão de vida, mas a reconstrução radical da divisão de trabalho estabelecida (Mészáros, 2002, p. 630).
Segundo Mészáros, é impossível divisar uma ordem reprodutiva socialista viável mantendo-se as formas existentes e as camadas de complexidades mistificadoras do sistema do capital. A idéia de que "a microeconomia" poderia e deveria ser, com segurança, entregue à fetichizada e desumanizadora tirania do mercado, regulando adequadamente, ao mesmo tempo, a "macroeconomia", sob o slogan de um "socialismo de mercado" fictício, é totalmente incoerente como concepção e totalmente desastrosa como política prática, seja "à la Iugoslávia" ou "à la Gorbachev" ou de qualquer outra forma" (Mészáros, 2002, p. 931). A aceitação desta idéia significa apenas a renúncia total à possibilidade de que os seres humanos possam, um dia, controlar a incontrolabilidade do sistema do capital.
Chamando a atenção o fato de que a expropriação dos expropriadores "deixa em pé a estrutura do capital", Mészáros afirma que a questão fundamental é o "controle global do processo de trabalho pelos produtores associados, e não simplesmente a questão de como subverter os direitos de propriedade estabelecidos" (Mészáros, 2002, p.628). Ou ainda, que a expropriação dos expropriadores é apenas um pré-requisito, não significando quase nenhuma alteração no que se refere à necessidade do controle global do processo de trabalho pelos produtores associados (Mészáros, 2002, p. 628).
Mészáros critica os equívocos da esquerda cooperativista, pois esta não se atentou para a necessidade de promover ataques duplos ao sistema sociometabólico do capital. Vejamos:
De fato, nada é realizado por mudanças – mais ou menos facilmente reversíveis – apenas dos direitos de propriedade, como testemunha amplamente a história das "nacionalizações", "desnacionalizações" e "privatizações" no pós-guerra. Mudanças legalmente induzidas nas relações de propriedade não têm garantia de sucesso mesmo que abarquem a ampla maioria do capital privado, quanto mais se se limitarem à sua minoria falida. O que necessita radicalmente ser alterado é o modo pelo qual o "microcosmo" reificado da jornada de trabalho singular é utilizado e reproduzido , apesar de suas contradições internas, através do "macrocosmo" homogeneizado e equilibrado do sistema como um todo (Mészáros, 2002, p. 629).
Mészáros enfatiza que as relações capitalistas de propriedade representam não mais que o pré-requisito material e as garantias legalmente sancionadas à articulação substantiva desse complexo global de reprodução sociometabólica (10). É este complexo que necessita de uma reestruturação radical, de tal modo que um "macrocosmo" qualitativamente diferente e conscientemente controlado possa ser erigido a partir das autodeterminações autônomas de microcosmos qualitativamente diferentes.
A relação de troca à qual o trabalho está submetido não é menos escravizante que a separação e a alienação das condições materiais de produção dos trabalhadores. Ao reproduzir as relações de troca estabelecidas em uma escala ampliada, o trabalho pode apenas multiplicar o poder da riqueza alienada sobre ele próprio (Mészáros, 2002). E ele prossegue:
A triste história das cooperativas nos países capitalistas, apesar de suas genuínas aspirações socialistas no passado, é eloqüente a esse respeito. Mas mesmo a estratégia de subverter as relações de propriedade de capitalismo privado pela "expropriação dos expropriadores" pode, sem a reestruturação radical das relações de troca herdadas, apenas arranhar a superfície, deixando o capital nas sociedades pós-capitalistas – ainda que numa forma alterada – no controle pleno do processo de reprodução. Deste modo, nada pode ser mais absurdo do que a tentativa de instituir a democracia socialista e a emancipação do trabalho a partir do fetichismo escravizador do "socialismo de mercado" (Mészáros, 2002, p. 629).
Neste sentido, Mészáros acredita que a possibilidade de uma modificação inclusive das menores partes do sistema do capital implica a necessidade de ataques duplos, constantemente renovados, tanto às "células constitutivas ou "microcosmos" (isto é, o modo pelo qual as jornadas de trabalho singulares são organizadas dentro das empresas produtivas particulares) com os "macrocosmos" auto-regulantes e aos limites estruturais auto-renovantes do capital em sua inteireza" (Mészáros, 2002, p.630 – grifos no original).
Para teorizar sobre a dialética da parte e todo e sobre a necessidade de ataques duplos, Mészáros se apóia na crítica de R. Luxemburgo a Bernstein. Para esta pensadora, o problema das cooperativas não está na falta de disciplina dos trabalhadores, tal como advogava Bernstein. A contradição das cooperativas é que elas têm que governar a si mesmas com o mais extremo absolutismo (11). Nelas, os trabalhadores são obrigados a assumir o papel do empresário capitalista contra si próprios – uma contradição que responde pelo fracasso das cooperativas de produção, que ou se tornam puros empreendimentos capitalistas ou, se os interesses dos trabalhadores continuarem predominando, terminam por se dissolver.
Para Mészáros, sob o capitalismo, a disciplina - "regime absolutista natural do capitalismo" - é impiedosamente imposta ao trabalho pelo autoritarismo do local de trabalho e pela tirania do mercado (incluindo, claro, o mercado de trabalho). O impulso de impor emana dos imperativos expansionistas de produção do capital, e deve prevalecer a todo custo, não importa o quanto sejam desumanas e deformadoras as conseqüências (Mészáros, 2002, p. 971).
Neste sentido, a verdadeira questão é, portanto, para Mészáros, "a relação dialética entre o todo e suas partes". Sob o sistema do capital, os escalões do topo de sua estrutura de comando, com a sua perversa centralidade, usurpam o lugar do todo e dominam as partes, impondo a sua parcialidade como "interesse do todo". É assim que a totalidade auto-sustentada do capital pode se afirmar, provocando um curto-circuito não dialético na relação parte/todo, como um sistema orgânico. A alternativa hegemônica socialista, portanto, envolve, a reconstituição dialética objetiva das partes e do todo, das menores células constitutivas até as relações produtivas e distributivas mais abrangentes, de modo não conflitante (Mészáros, 2002, p. 980).
Sendo assim, o sucesso do planejamento depende, para Mészáros:
da coordenação das suas atividades produtivas e distributivas livremente consentida por aqueles que executam os objetivos conscientemente divisados. Portanto, o planejamento genuíno é inconcebível sem uma substantiva tomada de decisão de baixo, pela qual tanto a coordenação lateral como a integração abrangente de práticas reprodutivas se tornam possíveis. E vice-versa, pois, sem o exercício conscientemente planejado e amplamente coordenado das suas energias e habilidades criativas todo discurso sobre a tomada de decisão democrática dos indivíduos não possui qualquer substância. Apenas juntos os dois poderão definir as exigências elementares da alternativa hegemônica socialista à ordem sociometabólica do capital (Mészáros, 2002, p. 980) (12).
Poderíamos concluir, interpretando Mészáros, que a auto-administração dos produtores associados deve ser pensada como uma alternativa hegemônica à ordem social do capital. Ao contrário do que vislumbra a Economia Solidária, Mészáros advoga a necessidade de ataques duplos: por um lado o controle coordenado da produção através da democracia substantiva dos produtores e a necessidade de mudanças qualitativas nos microcosmos (fábricas) e por outro, mudanças para dentro dos muros das fábricas.
Para Marx (1866), o movimento cooperativo,
limitado a las formas enanas, las únicas que pueden crear con sus propios esfuerzos los esclavos individuales del trabajo asalariado, jamás podrá transformar la sociedad capitalista. A fin de convertir la producción social en un sistema armónico y vasto de trabajo cooperativo son indispensables cambios sociales generales, cambios de las condiciones generales de la sociedad, que sólo pueden lograrse mediante el paso de las fuerzas organizadas de la sociedad, es decir, del poder político, de manos de los capitalistas y propietarios de tierras a manos de los productores mismos (MARX, 1866, s/nº).
Já Marx (1986; 1994) destaca os fatores que independem da conquista do poder político para se construir o autogoverno dos produtores associados. Se o marxismo do século XX acreditava que a tomada do poder, por si só, levaria ao socialismo, nos parece necessária uma reinterpretação dos Manuscritos econômico-filosóficos, no sentido de reavaliar que a autogestão não se implementa por decreto.
Por um Olhar Micro-Telescópico?
Definições de mundo: Alienação
Visão totalizante/mundo microscópio/mesoscópio e telescópio
Quais dimensões se capta em função da posição do canário Gaiola, jardim, livre
Economia solidária diante do sistema produtor de mercadorias
Traços da alienação que podem desaparecer mesmo sem a generalização da propriedade social atividade de criação alienação de parte do produto
Nível da sociedade: descontrole/alienação do produto do trabalho, perda do controle do produto, atividade estranha
Coordenação social da produção/fim da alienação do produto: produção voltada para a satisfação das necessidades humanas, atividade de produção consciente e não produzir para vender
Propriedades de grupo x propriedade social dos meios de produção
Margem de manobra mesmo diante do sistema produtor de mercadorias
Trabalho prazeroso /fim parcial da alienação
AST concepção e execução, idéias novas
Dimensão da gaiola : o que ele vê
A definição do mundo foi uma delas
Economia Solidária ao Capital?
Em Novaes (2004a), averiguamos que os empreendimentos autogestionários não podem ser analisados sem se prestar atenção ao em torno em que estão inseridos. Não pode haver uma teoria que se sustente olhando apenas para dentro das cooperativas, celebrando a nova forma de decisão democrática, parlamentarista, na qual os trabalhadores aparentemente decidem coletivamente os rumos de cada empresa sem se observar que a produção de mercadorias é uma forma de ditadura, sem se prestar atenção que as cooperativas estão inseridas em cadeias produtivas que lhes roubam a autonomia aparentemente conquistada ao adquirir os meios de produção. Visto que as condições de produção e controle muitas vezes são externas às empresas industriais individualmente, não se pode analisar os empreendimentos autogestionários sem compreendê-los como pertencentes ao sistema produtor de mercadorias, como estando inseridos num complexo de relações numa cadeia produtiva.
Uma maneira de resolver este problema teórico se daria através da investigação não só das relações de trabalho nas cooperativas – análise na qual se centra a maioria das pesquisas na Economia Solidária - desde a forma como se reparte o excedente, como se dá a divisão do trabalho, etc mas também através da investigação da inserção dos empreendimentos autogestionários nas cadeias produtivas, quem são os fornecedores, quem são os compradores, qual o tipo de governança na cadeia, quais as imposições que se fazem, qual a margem de autonomia etc (13).
Na falta desta análise, cairemos no postulado de que as unidades produtivas autogestionárias são ilhas de socialismo num mar de capitalismo ou ilhas de democracia decisória (parlamentarismo interno no interior dos muros da fábrica) dentro do mar da ditadura do mercado (Novaes, 2005d).
Henrique Tahan Novaes
hetanov@ige.unicamp.br