Nota: Os argumentos e opiniões emitidos no presente ensaio representam apenas os de seu autor e não podem ser considerados como expressando posições ou políticas de quaisquer órgãos governamentais.
1. Da controvérsia passional a um debate tendencialmente "socrático"
A Alca, pelo menos no Brasil, parece ter-se convertido numa espécie de rogue concept, ou seja, no vilão do momento. De fato, esse mero projeto se apresenta como uma perspectiva temida (para alguns, ele já seria uma realidade), ao mesmo tempo em que como um destino recusado pelas mais variadas correntes de opinião, englobando profissionais do antiimperialismo e bispos da CNBB, políticos autoproclamados nacionalistas e industriais protecionistas, sindicalistas tradicionais e ecologistas pós-modernos. Mesmo economistas, usualmente tidos como ponderados, têm recorrido a conceitos como "dominação hegemônica", "assimetria de poder", "desmantelamento industrial", que não costumam freqüentar seu discurso normalmente circunspecto. Não se passa aliás uma semana sem que algum artigo vitriólico, descrevendo o saco de maldades embutido no futuro acordo hemisférico, seja publicado em algum jornal de circulação nacional, aproveitando o autor para cobrar do partido atualmente majoritário (e no poder) as dubiedades ou hesitações em relação a esse antigo projeto de "anexação" da economia brasileira ao território de caça do novo império.
Com tal exibição de paixões econômicas e de fúrias políticas, fica difícil manter um debate racional sobre a mais importante proposta de integração continental desde a primeira conferência internacional americana, realizada na capital do (então nascente) império em 1889-1890. No entanto, esse mesmo caráter controverso indica que estamos necessitando de bons estudos e de pesquisas rigorosas, como forma de devolver um certo equilíbrio a esse debate, que não pode obviamente ficar entregue a parti-pris redutores ou simplismos ideológicos, obscurecendo uma avaliação ponderada sobre a importância da Alca e seu possível papel no futuro das relações hemisféricas e para o próprio processo brasileiro de inserção econômica internacional (que não pode ser confundido como um itinerário para o desenvolvimento, o que a Alca não pode fazer sozinha).
Com uma certa regularidade, nos últimos anos, tenho procurado, de minha parte, fornecer informações objetivas sobre esse processo negociador no qual se encontra engajado o Brasil, ao mesmo tempo em que busco contribuir para a ampliação (racional) e o balizamento (conceitual) desse importante debate para o Brasil e o Mercosul, o que no entanto vem sendo grandemente dificultado pelas demonstrações de superficialismo até aqui disponíveis para o grande público. Um de meus trabalhos de discussão tentativa dos riscos e oportunidades da Alca para o Brasil e o Mercosul, sob o título "Mercosul e Alca na perspectiva do Brasil: uma avaliação política sobre possíveis estratégias de atuação", está disponível em minha página (link: http://www.pralmeida.org/ContatoPage.html), tendo sido publicado, em formato impresso, in Marcos Cintra e Carlos Henrique Cardim (orgs.), O Brasil e a Alca: seminário (Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações: Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, 2002; ISBN: 85-7365-188-1), pp. 97-110.
Deixo de mencionar alguns debates dirigidos a um público mais aguerrido – como minhas considerações a certos documentos da CNBB, que tentavam "orientar", de modo canhestro e obviamente desonesto, o "rebanho de fiéis" para uma ativa manifestação contra a Alca, no "plebiscito" de cartas marcadas realizado em 2002 –, mas não posso deixar de referir-me a um dos capítulos de meu livro A Grande Mudança (ver no link: http://www.pralmeida.org/htmlLivros/2FramesBooks/58GrdeMudanca.html), apropriadamente intitulado "Sinais trocados na Alca: teria a esquerda deixado de ser progressista?" (também disponível para download).
Pode-se argumentar algo em meu favor, à diferença da maior parte dos demais "comentaristas" da questão da Alca, trata-se de uma temática que venho acompanhando com uma certa "intimidade" praticamente desde o nascimento – como aliás o próprio Mercosul –, tanto por curiosidade intelectual como por dever de ofício, sendo diplomata de carreira desde 1977 e, como tal, encarregado das negociações sobre investimentos (também para o MAI-OCDE e na questão dos acordos bilaterais de investimentos) entre 1996 e 1999, ao lado de uma intermitente atividade acadêmica nos intervalos e nos interstícios de uma profissão razoavelmente absorvente. Posso dizer, portanto, que me julgo um conhecedor interno de certos meandros do processo negociador que por vezes escapam ao "público externo", não porque ele seja "clandestino" ou subtraído ao conhecimento da sociedade (como muitos acreditam), mas porque sua complexidade negociadora e a densidade documental (aliás disponível no site da Alca) se furtam a um conhecimento mais objetivo por parte daqueles não diretamente envolvidos no exercício negociador.
Tendo já respondido, nos textos citados, a uma série de interrogações de ordem econômica sobre o potencial "destruidor" e as eventuais virtudes "criadoras" da Alca para o Brasil e o Mercosul, proponho-me agora a tratar de uma série de outras questões, que buscarão tocar na maior parte das alegações contrárias à Alca – não que eu esteja interessado em defendê-la de quem quer que seja, e nem possuo procuração para tanto –, pois que esses argumentos me parecem eivados de contradições lógicas e non sequiturs.
Esclareço, antes de mais nada, que não sou particularmente partidário da Alca e que tampouco creio que as discussões estejam tendo lugar nas melhores condições possíveis. Em minha opinião, aliás, as melhores soluções, para o Brasil, se encontram obviamente na continuidade do processo de aperfeiçoamento do sistema multilateral de comércio e num aprofundamento realista do Mercosul. Proponho-me, porém, nos parágrafos e páginas que se seguem, oferecer minha contribuição em favor de um debate que seja preferencialmente marcado por uma certa racionalidade econômica, em torno dos riscos e oportunidades da Alca para o Brasil. Meus argumentos devem ser vistos nessa perspectiva de esclarecimento objetivo e de um diálogo "socrático" sobre um problema suficientemente complexo para não ser reduzido a conceitos ambíguos como os de "imposição hegemônica" ou de "defesa da soberania nacional".
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