A Cannabis sativa é um arbusto da família das Moraceae, conhecido pelo nome de "cânhamo" da Índia, que cresce livremente nas regiões tropicais e temperadas. Os seus efeitos medicinais e euforizantes são conhecidos há mais de 4 mil anos. Na China, existem registros históricos das suas ações medicinais desde o século III a. C.1(D). No início do século passado, passou a ser considerada um "problema social", sendo banida legalmente na década de 30. O seu uso médico declinou lentamente, pois pesquisadores não conseguiram isolar os seus princípios ativos em função da rápida deterioração da planta. Alguns países começaram a relacionar o abuso da maconha à degeneração psíquica, ao crime e à marginalização do indivíduo. Nas décadas de 60 e 70, o seu consumo voltou a crescer significativamente, chegando ao ápice no biênio 1978/1979.
A maconha é a droga ilícita mais usada mundialmente2(D). Nos EUA, 40% da população adulta já experimentaram maconha uma vez pelo menos3(D). O uso da maconha geralmente é intermitente e limitado: os jovens param por volta dos seus 20 anos e poucos entram num consumo diário por anos seguidos4(D). A dependência de maconha está entre as dependências de drogas ilícitas mais comuns; um em dez daqueles que usaram maconha na vida se tornam dependentes em algum momento do seu período de quatro a cinco anos de consumo pesado. Este risco é mais comparável ao de dependência de álcool (15%) do que de outras drogas (tabaco é de 32% e opióides é de 23%) 5(D).
No Brasil, um levantamento realizado em 1997 com estudantes do ensino fundamental e do ensino médio em dez capitais brasileiras mostrou que a maconha é a droga ilícita mais utilizada. Comparando levantamentos anteriores (1987, 1989, 1993 e 1997), a maconha foi a droga que mais teve seu "uso na vida" aumentado, passando de 2,8% em 1987 para 7,6% em 1997. Também o uso freqüente e o pesado aumentaram estatisticamente ao longo dos quatro levantamentos. O uso freqüente (seis vezes ou mais no mês) passou de 0,4% em 1987 para 1,7% em 1997 6(C).
Em levantamento domiciliar feito na cidade de São Paulo em 1999, com uma população acima de 12 anos, a maconha foi a droga que teve maior uso na vida (6,6%), seguida de longe pelos solventes (2,7%) e pela cocaína (2,1%)7(C).
A Cannabis sativa contém aproximadamente 400 substâncias químicas, entre as quais se destacam pelo menos 60 alcalóides conhecidos como canabinóides. Eles são os responsáveis pelos seus efeitos psíquicos e classificados em dois grupos: os canabinóides psicoativos (por exemplo, Delta-8-THC, Delta-9-THC e o seu metabólico ativo, conhecido como 11-hidróxi-Delta-9-THC) e os não-psicoativos (por exemplo, canabidiol e canabinol). O Delta-9-THC é o mais abundante e potente destes compostos8(D).
Sabe-se hoje que existem receptores canabinóides específicos para o Delta-9-THC no tecido cerebral de ratos, bem como um suposto neurotransmissor para os receptores endógenos, denominando-o anandamida9(D).
As taxas de absorção oral são mais elevadas (90% a 95%) e lentas (30 a 45 minutos) em relação à absorção pulmonar (50%). Os efeitos farmacológicos pela absorção pulmonar podem demorar entre 5 a 10 minutos para iniciarem10(D). Devido à sua lipossolubilidade, os canabinóides acumulam-se principalmente nos órgãos onde os níveis de gordura são mais elevados (cérebro, testículos e tecido adiposo)11(D). Alguns pacientes podem exibir os sintomas e sinais de intoxicação por até 12 a 24h, devido à liberação lenta dos canabinóides a partir do tecido adiposo12(D).
Um cigarro de maconha ou baseado típico contém cerca de 0,3 a 1g de maconha. A concentração de Delta-9-THC nas diferentes apresentações da Cannabis (maconha, haxixe, skunk) varia de 1% a 15%, ou seja, de 2,5mg a 150mg de THC 12(D). Estima-se que a concentração mínima preconizada para a produção dos efeitos euforizantes seja de 1% ou um cigarro de 2 a 5 mg. Os efeitos da intoxicação aparecem após alguns minutos do uso11(D) (Quadro 2).
Déficits motores (por exemplo, prejuízo da capacidade para dirigir automóvel) e cognitivos (por exemplo, perda de memória de curto prazo, com dificuldade para lembrar de eventos, que ocorreram imediatamente após o uso de canabis) costumam acompanhar a intoxicação13(D) (Quadro 3).
O consumo de maconha pode desencadear quadros temporários de natureza ansiosa, tais como reações de pânico, ou sintomas de natureza psicótica. Ambos habitualmente respondem bem a abordagens de reasseguramento e normalmente não há necessidade de medicação14(D).
A maconha é capaz de piorar quadros de esquizofrenia, além de constituir um importante fator desencadeador da doença em indivíduos predispostos. Desse modo, pacientes esquizofrênicos usuários de maconha e seus familiares devem ser orientados acerca dos riscos envolvidos. O mesmo se aplica aos indivíduos com fatores de risco e antecedentes familiares para a doença15(A).
Ainda há pouco consenso a respeito das complicações crônicas do consumo de maconha. As investigações acerca da existência de seqüelas ao funcionamento cognitivo e de dependência da maconha, como as descritas abaixo, têm merecido a atenção dos pesquisadores nos últimos anos.
Há evidência de que o uso prolongado de maconhaé capaz de causar prejuízos cognitivos relacionados à organização e integração de informações complexas, envolvendo vários mecanismos de processos de atenção e memória16(D). Tais prejuízos podem aparecer após poucos anos de consumo. Processos de aprendizagem podem apresentar déficits após períodos mais breves de tempo17(B).
Prejuízos da atenção podem ser detectados a partir de fenômenos tais como aumento da vulnerabilidade à distração, afrouxamento das associações, intrusão de erros em testes de memória, inabilidade em rejeitar informações irrelevantes e piora da atenção seletiva. Tais prejuízos parecem estar relacionados à duração, mas não à freqüência do consumo de maconha17(B), porém um estudo recente comparando usuários pesados de maconha com ex-usuários pesados e com usuários recreacionais constatou que os déficits cognitivos, apesar de detectáveis após sete dias de consumo pesado, são reversíveis e relacionados ao consumo recente de maconha e não estão relacionados ao uso cumulativo ao longo da vida18(B).
A dependência da maconha vem sendo diagnosticada há algum tempo, nos mesmos padrões das outras substâncias. Muitos estudos comprovam que os critérios atuais de dependência aplicam-se muito bem à dependência da maconha bem como de outras drogas19(C).
Devido à dificuldade de quantificar a maconha que atinge a corrente sangüínea, não há doses formais definidas de THC que produzem a dependência. O risco de dependência aumenta conforme a extensão do consumo17(B). Apesar disso, alguns usuários diários não se tornam dependentes ou desejam parar o consumo. A maioria dos usuários não se torna dependente e uma minoria desenvolve uma síndrome de uso compulsivo semelhante à dependência de outras drogas20(B).
Para complementar a formalização da dependência da maconha, a síndrome de abstinência desta droga, apesar de reconhecida como fato pelo CID-1021(D), só havia sido descrita em laboratório. Não é possível ainda determinar a natureza dos sintomas da abstinência22(D) (Quadro 4).
Apesar da existência de muitos efeitos nocivos da maconha permanecer inconclusiva, a recomendação é que os profissionais de saúde informem seus pacientes usuários de maconha sobre os já comprovados efeitos nocivos (risco de acidente, danos respiratórios para usuários crônicos, risco de desenvolver dependência para usuários diários e déficit cognitivo para os usuários crônicos). Os efeitos nocivos inconclusivos também devem ser transmitidos. Intervenções mínimas, de natureza motivacional ou cognitiva, têm se mostrado de grande valia para esses indivíduos23(B). Casos de dependência estabelecida devem ser encaminhados para atenção profissional especializada.
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Marcelo Ribeiro; Ana Cecília Petta Roselli Marques; Ronaldo Laranjeira; Hamer Nastasy Palhares Alves;
Marcelo Ribeiro de Araújo; Danilo Antônio Baltieri; Wanderley Marques Bernardo; Castro Lagp;
Isac Germano Karniol; Florence Kerr-Corrêa; Sérgio Nicastri; Moacyr Roberto Cuce Nobre;
Reynaldo Ayer de Oliveira; Marcos Romano; Sérgio Dario Seibel; Cláudio Jerônimo da Silva
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Associação Brasileira de Psiquiatria
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