No jogo, apenas ganha a regra. Deus obedece a suas próprias regras, mas é, segundo Einstein, sutil, jamais trapaceiro. Satã falseia o jogo. Só Deus pode ser levado a sério: as criaturas humanas são suas marionetes (Platão). Fundador da estética moderna, Kant postula, na Crítica do juízo , ser a arte jogo, porque “atividade desinteressada” ou “uma finalidade sem fim”. Semi-deus, o ser humano só é, conforme Schiller, ele mesmo quando joga, exercitando seu “impulso para o jogo”, origem, por exemplo, das artes plásticas. Don Juan trapaceia. Madame Bovary enreda-se no jogo. Mas un coup de dés jamais n'abolira le hasard (Mallarmé). Os jogos literários estruturam uma civilização. O herói picaresco finge o jogo do pateta. No romance de formação, aprendem-se as regras: o herói luta por seu território e o jogo implica uma estratégia. Eu era rei, e sou louco ( Lear ). Eu me acreditava rainha, eu era peão (Fedra, Ana Karenina). Os milagres falseiam o jogo ou realizam-no (Bernanos), pois, lúdica, a graça é tão gratuita quanto necessária. No clássico Homo ludens , de 1938, Johan Huizinga (1872-1945) promove uma leitura da cultura através da categoria do jogo, em suas dimensões de disciplina, divertimento e reflexão. O instinto do jogo promove as realizações humanas todas: a política, a filosofia, a ciência, a arte... Pondo de lado, portanto, o conceito de jogo como algo inútil, idiota, irresponsável, o historiador holandês argumenta, fortemente, que a atividade lúdica faz parte da natureza humana, assim como da natureza animal, dado que, na natureza e na cultura, tudo é jogo.Atribui-se, por conseguinte, “extremo relevo aos fatores estruturais comuns à arte e ao jogo: múltiplos arranjos dos mesmos elementos, composições simétricas, irrupção do acaso no interior de uma ordem prefixada, espaço e tempo imaginários e, portanto, suspensão do espaço e do tempo ‘reais', lógica imanente ao processo expressivo, fusão de brincadeira e seriedade, paixão...” (BOSI, 1989, p.16) Daí, ter Huizinga, com seu estudo, ampliado o longo elenco das características humanas – homo faber, homo sapiens, homo socialis, homo politicus, homo loquens , homo symbolicus, homo oeconomicus, homo significans, homo oeroticus, homo sexualis, homo pictor, homo ludens...
No jogo babélico das línguas, convém notar, como o faz Roland Barthes, a partir do psicanalista inglês D.W. Winnicott, a sutileza da língua de Shakespeare, que distingue entre “o game (jogo estritamente regulamentado) e o play (jogo que se desenvolve livremente).” (BARTHES, 1982, p. 159).
Equivalente ao latino ludus , o termo “jogo” designa as mais antigas peças do teatro ocidental, englobando tanto jogos litúrgicos quanto peças profanas. Essas peças comungam da mesma definição, na medida em que são diálogos. A oralidade e o gosto da performance que caracterizaram, na Idade Média, a produção cultural verbal, suscitaram a encenação das manifestações religiosas, primeira versão sacra do jogo. Na Europa cristã, o ritmo do ano marcou-se pelas festas litúrgicas – Natal e Páscoa, ocasiões em que o ofício era teatralizado. Já, no século XIII, com o surgimento das cidades, aparece um teatro urbano, cujas grandes manifestações eram organizadas pelas confrarias, comunidades assistenciais, que misturavam clérigos e leigos. Na Renascença, os jogos firmaram-se, sobretudo com o carnaval e as festas dos reis.Em todas as épocas, as obras, designadas com o nome de “jogo”, diversificam-se quanto ao tema, mas implicam, sempre, relações entre forma teatral e tramas ideológicas e estéticas.
Latuf Isaias Mucci
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