Se em vez de terrorista, Osama Bin Laden fosse um acadêmico de prestígio, um frio analista da política mundial, ele teria escrito O Choque de Civilizações, de Samuel P. Huntington. Podemos pegar o livro e lê-lo como um espelho imaginário. Invertidos os juízos de valor sobre a civilização de cada um, o arcabouço metafísico subjacente à análise permaneceria igual: as noções de identidade e superioridade da (sua) civilização, o direito à guerra, justa, é claro, pois se trata de preservação de sua própria cultura e do Bem que ela encarna, o direito à vingança pelos sofrimentos infligidos pela outra.
Explicitamente, ambos veriam no sangue e na religião os principais motores das civilizações. Ambos considerariam todas elas como organismos coesos, singularíssimos e, no limite, inimigos mortais uma das outras. Ambos criticariam o hedonismo, a secularização, a corrupção e o amolecimento atual de seus povos, propondo a regeneração moral pelo retorno às fontes profundas - religiosas, jamais laicas nem racionais - às quais cada um deles deve origem, existência e consciência.
Mas Osama Bin Laden não é um acadêmico. É um homem do dinheiro, um bourgeois conquérant, filho das novas classes dominantes do mundo árabe e do circuito do capital globalizado. Homem da cultura de massa, tem senso de espetáculo suficiente para monopolizar a voz dos que não têm voz e acumularam séculos de ressentimento. Crente, está imune às dúvidas dos pobres mortais e disposto a tudo para fazer valer os ditames de sua fé. Foi, além disso, armado pelo próprio Diabo Azul para lutar contra o Diabo Vermelho - será surpreendente que, após liquidar o segundo, seu Deus queira arrebentar o primeiro? Finalmente, é um homem da práxis, um organizador. Com essas qualidades, haveria alguém mais aparelhado para levar à prática - com a inestimável colaboração de George W. Bush, não nos esqueçamos - o que o Dr. Strangelove de plantão teoriza?
É a prova do pudim da teoria deste, por assim dizer. De fato, sua ação nada teve de tresloucada, mas foi o produto de uma escolha racional, bem fundamentada, a ponto de atingir vários alvos ao mesmo tempo: a) o coração do Império e seus símbolos de poder, espalhando o pânico entre os dirigentes e a população e criando condições para a militarização dessas sociedades de infiéis; b) os “quintas-colunas” da cultura islâmica, isto é, os governos corruptos e vacilantes que o Inimigo sustenta no próprio Oriente; c) o escanteamento dos líderes palestinos moderados e “traidores”; e d) sem esquecer o ganho suplementar que foi jogar na defensiva todos esses movimentos e militantes liberais, socialistas, comunistas, ambientalistas, etc., laicos e mesmo religiosos, dos quatro cantos do mundo que acreditam na razão, no internacionalismo, na possibilidade do diálogo e em valores universais. Profecia autocumprida, sua ação deu imediata aparência de verdade à tese de Huntington, levando-a, ato contínuo, a ser aceita como boa descrição da realidade e linguagem do dia-a-dia da política internacional.
Gildo Marçal Brandão
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