Mia Couto Mar Me Quer
Mar me quer
Primeiro capítulo
Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem cai.
(Dito do avô Celestiano, reinventando um velho provérbio macua)
Sou feliz só por preguiça. A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer.
- Levanta, ó dono das preguiças.
É o mando de minha vizinha, a mulata Dona Luarmina. Eu respondo:
- Preguiçoso? Eu ando é a embranquecer as palmas das mãos.
- Conversa de malandro...
- Sabe uma coisa, Dona Luarmina? O trabalho é que escureceu o pobre do preto. E, afora isso, eu só presto é para viver...
Ela ri com aquele modo apagado dela. A gorda Luarmina sorri só para dar rosto à tristeza. - Você, Zeca Perpétuo, até parece mulher...
- Mulher, eu?
- Sim, mulher é que senta em esteira. Você é o único homem que eu vi sentar na esteira.
- Que quer, vizinha? Cadeira não dá jeito para dormir.
Ela se afasta, pesada como pelicano, abanando a cabeça. Minha vizinha reclama não haver homem com miolo tão miúdo como eu. Diz que nunca viu pescador deixar escapar tanta maré:
- Mas você, Zeca: é que nem faz ideia da vida.
- A vida, Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não-Deus...
Além disso, pensar traz muita pedra e pouco caminho. Por isso eu, um reformado do mar, o que me resta fazer?